Entrevisto o pilantra que atirou no dramaturgo. Ele deixa o revólver engatilhado em cima da mesa, além de um maço de Belmonte. Tem um cachimbo de crack na orelha. Boné falseta da Van Dutch.

Por que você atirou?
O Cara tava me encarando.

Mas é assim mesmo, o Cara é daquele jeito. Eu conheço ele há 23 anos. Não é que ele esteja encarando, ele é daquele jeito, é o jeito da madeira. Ele senta de costas para a parede no bar. E é capaz de olhar daquele jeito até para quem ele ama.

O Cara achou que era herói.

Mas ele é herói, porra! Ele faz teatro no Brasil, portanto é herói. Ele faz teatro na Praça Roosevelt. E ele veio do Jardim do Sol. Você já foi ao Jardim do Sol? Você tava procurando o quê?

Dinheiro, porra!

Mas só tinha R$ 200 no caixa! É teatro, não é filme do Batman!

Mas é dinheiro. Era só dar o dinheiro.

Você sabe o que é dramaturgo?

Não. Mas me disseram que o Cara escrevia numa página na internet que chamava Atire no Dramaturgo. Aí, bacana, eu só fiz a vontade dele… Tô errado?

Néscio! Vou te dizer porque o blog dele chama Atire no Dramaturgo. Sabe por quê? Porque tem um livro que se chama Atire no Pianista, do David Goodis. É uma homenagem do Cara a um livro policial dos mais bonitos.

E no livro, eles atiram no pianista?

Atiram. Mas erram.

Eu nunca erro.

Você também nunca pensa. Você gosta de faroeste?

Gosto mais de filme do Bruce Willis.

Bom. Sabia que no Velho Oeste, antigamente, tinha uma placa onde tava escrito NÃO ATIRE NO PIANISTA? Sabe por quê? Porque não havia pianista para reposição no Velho Oeste. Ninguém era burro o suficiente para atirar em pianistas. Quem é que ia tocar a música no salão depois? Como as garotas dançariam sem música?
Sabe o que mais? Dramaturgo, e ainda por cima livre, é mais raro. Que tipo de imbecil atira num dramaturgo?

Se você diz… E você, bacana, você faz o quê?

Eu sou jornalista.

Que nem o William Bonner?

Não, que nem eu mesmo.

Aparece na TV?

Não.

Também não gosto de jornalista. Menos ainda de quem não aparece na TV.

Bom, jornalista não é para gostar mesmo. É feito para desgostar.

Jornalista também é raro?

Não, tem de monte.

Você era amigo do Cara, certo? Escrevia textos para bombar as peças dele, de brodagem?

Não, o cara nunca pediu nada disso. Em 23 anos, nunca me pediu nada. O cara jamais pediu uma sílaba para ninguém. Teve uma peça dele, Medusa de Ray-Ban, que chegou a ficar em cartaz uma temporada inteira sem ter saído uma linha sequer na imprensa. E sabe o que mais? Nem por isso ele ligou para pedir.

O sujeito olha de um lado a outro da mesa, como que assistindo a um jogo de pingue-pongue. Súbito, toca a sirene da fábrica de colchões na vizinhança, e o cara toma um susto. Pega o revólver, o maço de Belmonte e desaparece pela porta dos fundos.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

10 COMENTÁRIOS

  1. Cara, tô chateado até agora com essa patifaria. Mas o Marião é casca grossa e vai sair desse. Tenho fé. E vi a cara do filho da puta, na TV. Espero que tudo isso termine da melhor maneira e vida longa a Mr. Bortolotto. Abração.

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