made in japan

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quanto este texto saiu publicado na “rolling stone” 5, de fevereiro de 2007, vi-o suscitar muita discussão pelo suposto excesso de atenção que a filial brasileira da revista estaria dando ao cansei de ser sexy. era isso, ou então alguns debates acalorados sobre se a tal reportagem mereceria (ou não) estar na capa da “nossa” “rs” (aliás, como se discute a capa da “rolling stone”, hein?).

o que não consegui detectar muito, em contrapartida, foram disposições de deixar para lá a forma, os adereços, os gostos & antipatias pessoais, para debater um pouco o conteúdo da reportagem dita cuja, as idéias ali expostas, o imaginário. seria agora a hora, antes tarde do que nunca?, vamos?

MADE IN BRAZIL

Cultuados no exterior e não tão bem vistos assim por aqui, novos artistas independentes mostram um Brasil universal que vai muito além da excentricidade verde-amarela. O samba, nossa legítima matéria-prima, agora divide espaço com o rock, o funk e o eletrônco para gringo ver – e isso é muito bom

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Você acreditaria se há uns dois anos eu lhe dissesse que em pouquíssimo tempo bandas “indie” brasileiras, daquelas com trejeitos e manhas tipicamente paulistanos, seriam mundialmente conhecidas e viveriam em intermináveis turnês planeta afora? Aposto que não, eu também não acreditaria. Mas este mundo está mesmo virado e, como você já sabe, isso está acontecendo com pelo menos duas bandas do underground “made in Brazil”. O Cansei de Ser Sexy põe o pé na tábua com o aval do selo Sub Pop, que no início dos anos 90 alavancou grupos como Nirvana, Mudhoney e Soundgarden. O Bonde do Rolê vem na cola e deve lançar seu álbum de estréia em abril próximo pelo selo Domino, atual santuário de bandas populares como Franz Ferdinand e Arctic Monkeys.

Saltimbancos, os nossos meninos andam peregrinando pelo mundo. Na mesma semana em que o DJ Rodrigo Gorky e a cantora Marina Ribatski estão dando sopa em Curitiba (a cidade natal do Bonde), tenho de levantar às 7h da manhã da sexta-feira para conseguir plugar ao telefone uma das CSS (pronuncia-se “ci-és-és”, é claro), Ana Rezende, em linha direta entre São Paulo e um hotel na… Nova Zelândia. É mais um ponto de parada (e de shows) na corrida nômade entre um natal em São Paulo, um ano novo na Austrália, umas apresentações no Japão, uma volta rápida a São Paulo, mais uma bateria de novas viagens à vista…

No segundo e-mail trocado com Adriano Cintra, bendito fruto masculino entre as cinco meninas do CSS, ele acusa o zumbido no ouvido pelo fuso horário frenético, direto de uma escala no Chile: “Estou aqui no aeroporto de Santiago. Pra mim, são cinco e vinte da manhã de domingo, aqui é uma e vinte da tarde de sábado, e eu não dormi nada no vôo. Ai, essa coisa maluca da linha internacional da data, viu? Saí amanhã e cheguei ontem!”.

Seria só mais uma frase corriqueira disparada no “mondo” pop-rock internacional, não fosse pronunciada em português. Aqui no Brasil, ainda não estamos acostumados a saber que uma banda “nossa” fez, desde julho do ano passado, cerca de 150 shows quase ininterruptos nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Irlanda, França, Países Nórdicos, Espanha, Itália, Grécia, Austrália, Nova Zelândia, etc., às vezes “35 shows em 30 dias”, como lembra Ana.

Passada aquela tentação inicial comodista de nem pensar no assunto, para não ter de assimilar que o novo e o imponderável não apenas acontecem como já estão acontecendo a pleno vapor, me pego boquiaberto diante da extensa lista da turnê CSS. É quase irresistível para mim, jornalista musical há 14 anos [comentário posterior: jesus, de onde eu tirei essa conta? eram 12 anos, e olhe lá…], soltar algum suspiro nostálgico do tipo “poxa, eu praticamente vi essas crianças crescerem!”

Vi, ao menos de longe, e hoje não sou só eu que fico de queixo caído ao pensar no assunto com um pouco mais de cuidado: o advento do sucesso do CSS e, na (con)seqüência, do Bonde do Rolê deu um nó na cabeça de toda a (mal)dita cena “indie” brasileira. Diante de tais agendas e da presença dessas bandas em moto contínuo na imprensa que (pensa que) dita as modas musicais do planeta, a própria definição do que sempre foi “ser indie” no Brasil soa datada.

Agora, não há mais desculpa. Se tal sucesso, ainda que limítrofe, está acontecendo com bandas como CSS e Bonde (que, segundo a avaliação ressabiada de muitos indies e não indies locais, em público ou em privado, nem são tão “boas” assim), então pode acontecer com qualquer um. [no texto original, vinha a seguir a frase “Inclusive com você.”, mas ela ficou de fora na edição.]

A Internet está na gênese dessa mudança lenta e gradual de atitude entre nossos artistas mais jovens, a julgar pelo depoimento de Eduardo Ramos, 28 anos, que começou a se envolver no meio musical aos 15, ao enviar cartas adolescentes para selos gringos como Sub Pop, Rough Trade, Matador, etc. O importante passo seguinte para Eduardo, lá nos primórdios de desenvolvimento do idioma internetês, foi participar da lista de discussão Indie Brasil, que era coordenada pela banda baiana Brincando de Deus.

De lá para cá, ele se formou em direito, abriu com o irmão Bruno Ramos o selo artesanal Slag, virou funcionário do departamento internacional da Trama (a gravadora nacional que viria a bancar a estréia do Cansei de Ser Sexy em disco, em 2005) e hoje empresaria o CSS e o Bonde (este em parceria com o irmão).

Enquanto o mundo nem sonhava em dar palhinha para o indie rock paulistano, ali na Indie Brasil se encontravam virtualmente pessoas como Eduardo, Adriano Cintra (então líder do grupo Thee Butchers Orchestra), Rodrigo Gorky, o escritor André Takeda, o jornalista Marcel Plasse e, acredite, Marcelo Camelo, futuro dândi pop nacional(ista) do grupo Los Hermanos.

Eduardo não mede palavras ao descrever aquele momento: “Na minha opinião, foi a coisa mais crucial que aconteceu. Um monte de gente começou a falar ‘caramba, tem gente igual a mim em Porto Alegre, no Recife…'”. A minoria indie descobria, como vêm descobrindo as mais variadas minorias brasileiras, que, sim, era minoria mesmo, mas que um monte de gente se escondia junta-e-separada naquela mesma minoria.

De passo em passo, chegou o momento em que, gravado o primeiro (e até agora único) álbum do CSS, Eduardo mandou cópias para quatro selos-mito do cenário indie mundial, Rough Trade, Sub Pop, Matador e Domino. “Mandei e expliquei que era foda, que eu ia dedicar 100% da minha vida a essa banda, tal, tal, tal…”, conta, somando ao final de frase bem paulistano um deslumbramento explícito e nada escamoteado quanto às relações (sub)pop que tem colecionado na música e no jornalismo do Primeiro Mundo.

Segundo ele, a Sub Pop foi a única que respondeu – mas avisando , após algum lero-lero, que ia contratar o CSS. Eduardo se entusiasma: “E aqui falam que é sorte? Não é sorte, é trabalho, trabalho, trabalho. Existe muita banda brasileira legal, mas de gente muito classe média, que tem trampo, é artista de fim-de-semana. Quando eu tinha 15, 16 anos, a primeira geração indie era de caras que se frustraram absurdamente, Pin Ups, Second Come, Killing Chainsaw… Não rolou, porque as pessoas eram encostadas e não existia comunicação. As bandas copiarem outras é comum, mas na hora de competir não tinha como as daqui competirem”. (Como vou confirmando mais e mais a cada nova entrevista, o “fogo amigo” indie e geracional é marca registrada brasileira, feito Pelé, café e Sonia Braga.)

De fato, o cara parece trabalhar sem parar, e faz isso com a convicção de que há muito tempo perdido a ser recuperado, à velha base do “faça você mesmo” (“a gente vive o pós-punk no Brasil, eu tenho certeza de que é isso. O que está acontecendo aqui é o que aconteceu em 1978 na Ingleterra”).

É a esse rapaz, por exemplo, que Sérgio Dias credita a pilha inicial para a recomposição dos Mutantes, a única banda pop-rock brasileira verdadeiramente adorada lá fora antes do CSS (detalhe: isso só aconteceu mais de duas décadas depois de os Mutantes terem deixado de existir). Foi a partir de seu assédio sobre o diretor artístico do Barbican Center, que se preparava para sediar em Londres, em 2006, a mostra Tropicália – A Revolution in Brazilian Culture, que começou a se consumar a reunião dos Mutantes originais (menos Rita Lee e Liminha), outra das bandas de cá que hoje acumulam datas de shows em regiões longínquas do planeta. “Liguei para o diretor, falei que não queria saber o que eu ia fazer nem se iam pagar, mas que queria ajudar, porque, se é para fazer, pelo amor de Deus, faz direito”, narra Eduardo, dando de bandeja mais um exemplo do “faça você mesmo” à moda pós-pós-punk verde-amarela.

É curioso, ponho-me a matutar, que o fogo amigo entre as gerações queima solto entre pais e filhos, mas se abranda entre avós e netos. É legal, continuo matutando, que a turnê de reentrada dos novos-velhos Mutantes, acrescida da presença conciliadora de Zélia Duncan, seja contemporânea (e conterrânea, se é que ainda existem fronteiras nos jardins da razão) do “debut” do CSS nas passarelas planetárias. “Cê tá entendendo?”, perguntaria na bucha Arnaldo Baptista.

OK, uma novidade como esta de a música brasileira incrementar cada vez mais seu poder de comunicação lá fora é tão velha quanto os filmes que Carmen Miranda, falsa baiana, portuguesa verdadeira, carioca quase verdadeira, coadjuvou em Hollywood na primeira metade do século pasado. A música brasileira goza de uma vocação inata para se comunicar com o mundo, coisa que não acontece nesse grau de intensidade em qualquer país do mundo.

A peculiaridade do ano que passou é que esta é a primeira vez que os balangandãs musicais para exportação não se chamam samba, nem bossa nova, nem tropicália, nem vêm necessariamente embalados em laços de fita verde-amarela. De uns anos para cá, o chapéu do exotismo têm caído por cima de um tal de “favela sound”, que encontra no funk carioca um ponto culminante, mas recai também sobre artistas de identidade periférica, como Carlinhos Brown, Seu Jorge, DJ Marky e, por que não dizer, os meninos de classe média Bonde do Rolê e CSS. O pendor ao exotismo resiste, mas é inegável que esses artistas já conseguem eventualmente soar mais globais do que locais.

De fato, isso tem acontecido, e não é só nos currais da música pop. No incrível zoológico das diversidades deste início de século, o ganho de autoconfiança que permite a entrada de nossas primeiras bandas de funk-punk carioca (ou paulista, ou curitibano, ou…) nas paradas mundiais é o mesmo que anda tornando mais e mais freqüentes casos de ascensão como os de Tom Zé e de Bebel Gilberto, do DJ Marky e do DJ Patife, de Seu Jorge e do filme Cidade de Deus, do DJ Marlboro e de Carlinhos Brown, de Rodrigo Santoro e Gisele Bündchen, de Daniela Cicarelli (via YouTube) e Ronaldo(s), e assim por diante – afinal, não funcionam mais ou menos num mesmo modelo as indústrias da moda, do futebol, da música, do cinema, da televisão, do entretenimento?

“O Lula mudou o Brasil, a gente tem que falar isso”, afirma Eliete Mejorado, metade feminina do Tetine, duo paulistano-mineiro de art music que se radicou em Londres no final do século passado e tem aberto trilhas underground por onde as comissões pop depois passarão alegremente. “Lula tem um papel no mundo que o brasileiro não sabe que ele tem. Um ministro da Cultura que é tropicalista e é negro também causa uma coisa que dá um frio na espinha, é fodido. Na exposição Tropicália, tinha outdoors do [artista brasileiro radicado na Inglaterra] Eli Sudbrack espalhados por Londres inteira. O rosto da Rita Lee escorrendo com o do Sylvester Stallone [ooops!, mais um adendo póstumo: o “stallone” ali foi por conta da revisão da “rolling stone”; trata-se mesmo de sylvester, astro da disco music do final dos anos 70, dono do hit “you make me feel (mighty real)”, de 1978] é algo que vai além da paródia”, continua Eliete, de passagem por São Paulo, onde ela e Bruno Verner fizeram três shows de fortes teores underground, um deles testemunhado pelo pessoal do CSS.

Como você sabe, se assiste à Globo ou lê a Folha regularmente, o fundamento “lost in translation” rege a esfera governamental no triângulo (des)amoroso de turras entre Lula, a mídia brasileira e um monstrinho que para resumir chamaríamos de “resto do mundo”. Os ruídos de tradução, por vezes selados até mesmo numa única línuga, parecem se repetir tal e qual na esfera pop. De um modo geral, o Brasil dá de ombros ou olha de soslaio para os pequenos darlings made in Brazil. “Tem o povo que nos odeia, a gente não consegue entender. Já vimos coisas comparando a gente com Mamonas Assassinas e dizendo que só falta a gente morrer de acidente de avião”, exemplifica Ana, dos CSS. É um dos casos em que o mirrado jornalismo de desdém, tão em voga no Brasil, seja na música, no esporte, na economia ou na política, atravessou as raias do mau gosto.

O Bonde do Rolê ainda percorre os passos iniciais dessa trilha acidentada, mas já vive primeiros baques provocados por reações negativas. Gorky fala para mim, representante episódico da Rolling Stone brasileira, sobre o pito levado aqui nessas páginas mesmo, por causa do single de “James Bonde” e “Solta o Frango”. “Ganhamos uma estrela da Rolling Stone, será que foi meia estrela por música? Não entendi, mas achei divertido”, desdenha, para então se queixar: “Falam da gente, ‘nossa, como são ruins’, mas não falam da nossa música. Não entendi”.

Ana explicita outra das rusgas entre o CSS e o país que o pariu: “No Brasil a gente nunca tocou em rádio. Aí tem que pagar jabá, e a gente nunca fez isso. É complicado ser um artista médio no Brasil, ninguém vive aí vendendo 10 mil discos. O que mais incomoda é que a gente nunca pagou jabá, e já saiu por aí que a Trama pagou a Sub Pop para lançar a gente. A gente não ganhou dinheiro de verdade até agora, como é que a gente tá pagando?”.

Se os jornalistas locais se alternam [no original, era “nos alternamos”] entre os que desdenham em voz baixa, os que apreciam envergonhadamente, os urubus explícitos e uma minoria de jornalistas ultrapop que apoiavam a banda desde os primórdios, o meio de campo também fica embolado nas internas da cena musical indie. “Tem banda que só reclama que a gente dá certo e ela não dá. Vai lá e trabalha, faz alguma coisa. Foi o que a gente fez”, provoca Ana. Ocasionalmente, ao se queixarem de colegas e de jornalistas conterrâneos, os CSS parecem se esquecer que o desdém costuma ser recíproco, uma via de mão dupla. Alguns mal-entendidos vão se produzindo pelo caminho, como os que Adriano Cintra protagoniza em seu desbocado e sinceríssimo blog, que peita embates diretos de que costumam fugir 9,9 em cada dez valentes locais, mas por vezes critica brasileiros como se estivesse criticando o Brasil todo de uma vez. “No começo da tour, eu falava que nunca mais queria voltar pro Brasil. Claro que era estupidez do momento, de estar deslumbrado com o mundo. Eu só fui me ligar que certas coisas soavam indelicadas quando estávamos em Nova Iorque pela última vez, completamente moídos da tour com o Ladytron, tendo que fazer dois shows por dia no CMJ e fomos dar uma entrevista pro Guardian, e o cara chegou com várias perguntas a respeito de por que odiávamos o Brasil. E eu: ‘opa, pera lá, eu não odeio o Brasil. De jeito nenhum. Eu odeio meia dúzia de infelizes que fazem o Brasil ser um lugar pior no mundo’.”

Essa interpretação a quente não é compartilhada por quem está na estrada há muito mais tempo que a geração da hora. Mais realistas e ácidas em sentido inverso são, por exemplo, as opiniões do percussionista João Parahyba, que peregrina pelo mundo com seu Trio Mocotó desde quando Jorge Ben e Wilson Simonal viajavam a bordo da sedução exercida por suas inventivas fusões de samba com soul, de samba com jazz, de samba com rock e daí por diante. De trajetória intermitente no seio da MPB, o Trio Mocotó ganhou novo gás em anos recentes, e nos últimos cinco anos fez, segundo João, mais de 200 shows por locais tão díspares quanto Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, Suíça, Áustria, Holanda, Noruega, Suécia, Dinamarca, Bélgica, Portugal, Itália, Macedônia, Eslovênia, Grécia, Singapura, Austrália, Polônia… “Somos muito mais valorizados no exterior do que aqui. O porquê é que é um pouco complicado. Primeiro, tem o hábito cultural de ex-colônia que olha para o Primeiro Mundo como se ele fosse melhor. Ainda hoje, a maioria dos brasileiros ainda prefere o importado ao nacional, independente se é melhor ou não. Segundo, com os vaivéns dos planos econômicos destes últimos 30 anos, o mercado de entertainment simplesmente virou um salve-se quem quiser”, ensaia João. E continua: “O fator cultural de ex-colônia é muito importante na visão do emergente. A prepotência cultural e econômica do europeu e do americano de Primeiro Mundo também ajuda a eles nos olharem com leniência e paternalismo, pois para eles, afinal, somos índios. Ainda tem muita gente que pensa que moramos em arvores. Sem contar que a mídia prefere dar ênfase muito mais a matérias de mortes, pobreza, guerras, catástrofes do que de cultura, né? Como se nada disto existisse por lá”.

Parahyba oferece também o contraponto, falando do que mudou e melhorou desde que Jorge Ben divulgava um idílico País Tropical lá fora, quase 40 anos atrás: “A maior mudança é a aceitação de músicas brasileiras cantadas em português. Nos últimos 30 anos, muitos músicos migraram à procura de trabalho, e o turismo cresceu no Brasil, tornando o país muito mais conhecido. A internet também ajudou bastante”.

Em freqüência serena, mas otimista, vibra o pernambucano-carioca Lenine, outro cuja balança comercial pende cada vez mais para o lado de fora. “Ter participado e continuar participando de festivais como Womad, Eurockeene e Paleo é sempre garantia de encontros maravilhosos. Tocar nos teatros durante o inverno também é bacana, porque é outro público, sem aquela famosa ‘celebração ao sol’ do verão europeu. Desde 1995, quando começaram as excursões para o exterior, vivi muitos momentos bacanas, algumas roubadas no início, outras engraçadas, mas a maioria é só alegria. Com as roubadas a gente aprende logo e não repete os erros”, diz.

Lenine comenta o fator exotismo na atração gringa pelos sons brasileiros: “Varia muito de lugar para lugar. Em alguns países, como França, Japão, Itália e Inglaterra, já saímos do nicho do exótico e já despertamos outros interesses, em outros segmentos, que não só o dos iniciados. Acho que isso se deve a uma sucessão de pessoas que vêm ao longo dos anos reafirmando o refinamento que nossa arte tem”.

Melhoras à parte, permanece delicado esse ponto do exotismo. É dessa maldição que alguns CSS gostam de se imaginar livres, não sem uma dose de razão já que, de fato, não há muitos elementos na caldeirada rock-pop-funk-punk-electro que produzem para caracterizá-los imediatamente como brasileiros. Ana Rezende leva um susto quando pergunto se, queiram ou não queiram, os CSS estão conscientes de sua posição como micro-embaixadores do Brasil lá fora, a cada vez que têm de falar do Brasil a jornalistas gringos ou explicar, ainda que superficialmente, que diacho é isto aqui, afinal. “Pensar na gente como representante do Brasil no mundo de hoje é algo esquisito. As pessoas estão interessadas em saber como é, mas ser brasileiro no mundo é como passear cachorrinho na rua, ‘ai, que bonitinho’. A maioria acha legal, mas existe o povo que não entende.”

Aparentemente ferido com críticas que espocam “pelaí”, Adriano pisa hesitante nesse meio-fio: “Nunca ninguém nos desrespeitou por sermos brasileiros. Sempre que mencionam o Brasil, o fazem com muita curiosidade. O mundo não tem idéia do que é o Brasil do mesmo jeito que eu não tinha idéia do que era a Grécia. Cheguei a Atenas sem ter idéia do que era aquela cidade e vejo que, no caso do Brasil, é a mesma coisa. Eles sempre perguntam de São Paulo, quantas pessoas tem na cidade. Quando a gente fala ’18 milhões’, nego fica maluco. Querem saber se é perigoso, como é a vida cultural. É muito legal falar disso, é nossa terapia”.

A jovem Marina Ribatski, cantora endiabrada do Bonde do Rolê, percebe algo parecido, mas de modo mais lancinante. “É um mistério, nem Alah explica o que as pessoas lá fora viram na gente. Acho que vêem que a gente é puro, o que eles gostam é da música. Mas também tem o encanto zoológico, exótico. Tem circo, sim, ‘nossa, vocês são brasileiros?’. Nos Estados Unidos falavam ‘nossa, vocês são brancos e são brasileiros?’. São respeitosos, mas não entendem, ‘realmente tem cidades no Brasil?’, ‘vocês falam mexicano?’. Gente ignorante tem em qualquer lugar do mundo, né? Mas sempre tem alguém que entende, isso é legal.”

Sim, sempre tem alguém que entende. Não dá para negar que o Bonde do Rolê chacoalha em seu bolo anarco-punk-de-butique a maioria dos ingredientes que nos fazem babar de apetite por qualquer boa banda punk-rock. Em outubro passado, em meio à noite musical do festival de diversidade sexual Mix Brasil, Marina e Pedro D’Eyrot (o outro vocalista do trio, tão encapetado quanto a parceira) ensandecem, jogam água mineral para todo lado e pifam o equipamento sonoro do Sesc Pompéia, inflamando a ira da direção do espaço. (É nessa noite, a propósito, que o colega Lúcio Ribeiro me atiça, discorrendo sobre o rolê do Bonde e do CSS pelo mundão: “Isso é só o começo”.)

Mas, rock, punk e pós-punk à parte, o trio moleque faz se arregalarem olhos estrangeiros também por conta do flerte corrosivo que faz com o funk carioca. Eis aí a tal “nova música eletrônica brasileira”, segundo a definição inteligente cunhada por defensores supranacionais do polêmico gênero que há bem mais de uma década viceja nos morros do Rio de Janeiro. Peculiaridade adicional é que o Bonde, ao contrário do CSS, canta predominantemente em português. “Lá fora falam que adoram nossa música, mas que não conseguem entender as letras. A gente diz: ‘É português! Aprende português!”, explica Gorky, entre irônico e embevecido.

O trio tinha apenas três músicas quando precisou finalizar repertório para um show inteiro, não muitos meses atrás. “Fizemos mais músicas para viajar de graça para Florianópolis. Colocamos no MySpace, deu no que deu”, resume Marina. Nos mais esculhambados fundamentos “bastard pop”, sampleiam AC/DC, Alice in Chains e The Darkness, mas sampleiam também “O Passo do Elefantinho”, na versão infantil do Trio Esperança, esculacham Tieta e parodiam axé music. Gorky busca a galinha dos ovos verde-dourados: “Faço questão de que a gente cante em português. Por que cantar em inglês? O funk carioca é uma música dançante que não é feita em nenhum lugar do mundo, só no Brasil. É brasileiro, apesar de termos roubado dos Estados Unidos”.

A miscelânea de referências musicais do trio é sintetizada por Gorky, e dá dimensão do efeito mistureba que, talvez, também esteja na origem do fascínio que exercem muito além das fronteiras curitibanas: “Minhas influências de música brasileira acabam não entrando no Bonde. Tenho toda a coleção do Paulinho da Viola, ouço Batatinha, Ed Lincoln. Não escuto heavy metal, no Bonde acabam aparecendo influências que não tenho. Marina é mais rock, gosta de Hole e Courtney Love, ela é ‘riot girl’. Pedro eu conheci como DJ de electro que tinha uma banda hardcore”. Marina confirma a vocação pluralista, e preenche o bate-papo com pulso adolescente: “Gosto muito de bossa nova, mas música brasileira nunca foi meu forte. Gostava era das bandas riot brasileiras, daqui de Curitiba. Caetano é um troço que eu nunca gostei na minha vida, o que é esse cara? Adorava Planet Hemp quando era adolescente, mas agora ficou datado. Mas gosto do Black Alien, D2. Tenho problema com música brasileira, porque comecei com rock, era xiita. E vim acabar no funk, que é a música eletrônica brasileira”.

Pois é, a “música eletrônica brasileira”. Exportada diretamente das gargantas e colagens de Bonde do Tigrão, Deize Tigrona, Mr. Catra, Tati Quebra Barraco e inúmeros outros, essa desfruta de posição ímpar na cena musical atual, seja aqui ou alhures, e motiva mais um sem-fim de situações “lost in translation”, em mais de um continente do planeta. O gênero que nos livrou do pensamento único da eletrônica estática dos anos 90 segue causando repulsa classista e racista no Brasil. Mas, de dois anos para cá, os filhos mais puristas e puritanos deste país tiveram de amargar o sapo engolido de que o gênero, de repente transtornado num ovo de Colombo esquentado por várias chocadeiras ao mesmo tempo, também é, sim senhor, produto de exportação.

O pavio da exploração cruel de talentos regionais permanece atiçado de Carmen Miranda a Deize Tigrona, mas essa última parece constranger seus conterrâneos por motivos bem distintos dos quindins de iaiá daquela. Onde Carmen era só submissão, resignação e obediência, as funkeiras cariocas ostentam uma forma desordenada e violenta de rebeldia ultrafeminista “made in favela”, como define, derramada, a fã confessa Eliete Mejorado, do Tetine: “O funk tinha as meninas voltando ao vocal, com uma atitude que eu nunca tinha visto na música brasileira, e fazendo ponte com tudo que estava acontecendo lá fora”.

“Parece que ninguém percebeu o óbvio: essa é a musica mais quente do mundo de hoje. Nem os funkeiros imaginaram isso. Em alguma medida, sempre produziram para o mesmo público”, afirma a empresária carioca Adriana Pittigliani, que se prepara para conduzir a turnê norte-americana de seu artista Sany Pitbull, um DJ de funk com 20 anos de história, um DJ Marlboro menos pop (ao menos por enquanto).

Filha do homem de gravadora Armando Pittigliani, que nos anos 60 ajudou a orientar carreiras em formação como as de Jorge Ben, Elis Regina e Jair Rodrigues, Adriana fotografa a cena ao se referir dos agenciadores de apresentações de Sany na Georgia (Estados Unidos): “Não são brasileiros, nem falam português, nem sabem direito qual é a capital do Brasil. Mas são funkeiros cariocas nota 10”.

Há um quê de Tetine na descoberta do funk por praias geladas da Europa, como há também bastante de Tetine na exposição de sexualidade desenfreada que hoje é trunfo corrente de nove em cada dez novas bandas brasileiras, estejam elas já sujeitas à exportação ou ainda não (casos de Montage, Daniel Belleza & Corações em Fúria, NoPorn, Multiplex, etc.). Em pique 99% underground, o duo-casal partiu do Brasil na virada do século, arrombando lá, como arrombava cá, as portas e janelas da sexualidade, rumo a posturas mais pautadas pela transgressão e pela diversidade – tudo aquilo, enfim, que CSS e o Rolê hoje espalham pelo mundo nas mais pop das (sub)versões.

O Tetine estava em Londres, às voltas com a parceria com a multi-artista ultravanguardista francesa Sophie Calle em Samba de Monalisa (2002) e com o (anti)belicoso álbum autoral Men in Uniform (2003), quando Eliete passou por São Paulo, foi ao hoje já extinto clube electro Xingu, ouviu o genialíssimo funk “Elas Estão Descontrolada” e… ficou descontrolada (eu estava por perto, eu vi). “O disco com Sophie Calle foi visto na Europa como de electro, mas não era para pista de dança, tanto que fizemos shows em galerias de arte, teatros, museus. Show em clube ficava cabeça demais”, Bruno refaz a trilha. “O ápice da carnavalização foi quando descobrimos o funk e tínhamos que fazer um show de Sophie. Ela tinha feito o filme No Sex Last Night, e, com o funk, parecia que a gente dava um ‘sex last night’ para ela. O funk deu um troço, virava um carnaval”, completa Eliete.

Encantado com a atitude punk e sexualmente libertária do funk, o duo montou uma série de quatro episódios dedicados ao gênero no programa que apresentam na cultuada “art radio” londrina Resonance. A geringonça ultranacional começava a girar, fora de controle, só para variar (e contrariar). Dali por diante, o Tetine produziu a coletânea européia de funk carioca Slum Dunk (pelo selo Mr. Bongo, de David Butler, “um advogado e médico que atende pacientes de AIDS com homeopatia”, nos dizeres de Eliete) e, em 2005, fez baldeação autoral no funk, com o geralmente desdenhado (ao menos aqui no Brasil) Bonde do Tetão, pai de DNA ainda não testado dos nascentes combos de “white funk” Bonde do Rolê e Bonde das Impostora.

Pais e filhos assumidos ou não, Tetine e Rolê fazem declarações de simpatia recíproca (que, confesso, me soam algo constrangidas). Mas, para o empresário do bonde curitibano, Eduardo Ramos, os DNAs não conferem: “Minha crítica ao Tetine é que musicalmente é muito estudado. Quando entraram em baile funk e electro ficou estranho, acho que falta laço”. Catuca pai, catuca mãe, catuca filha…

O Tetine também ciceroneou o DJ Marlboro em giras européias e gravou “I Go to the Doctor”, uma (per)vesão do funk “Injeção”, da então empregada doméstica carioca Deize Tigrona, com participação em inglês da própria. De repente, Elite se pegava transvirada em DJ, tocando funk carioca para uma platéia “all star” em Miami. “O que a Sophie Calle levou a gente para o museu, o funk levou para o clube. Em 2004 aconteceu isso na minha vida, eu tocando em Miami, duas horas e meia de funk carioca. Só tinha DJ famoso, Diplo e M.I.A. na platéia averiguando tudo”. Ela refere-se ao jovem e incensado DJ norte-americano e à discípula anglo-cingalesa que tornou as paradas mundiais mais… étnicas em 2005, com o formidável hit “Bucky Done Gun”, todo fundado num sample de… “Injeção”. Supranacional, o fogo amigo se espalha pelo funk, pelo electro, pela ponte aérea “lost in translation” Primeiro Mundo-Terceiro Mundo. De lá para cá, Diplo tocou e zanzou por aqui, visitou favelas cariocas, fez contatos paulistanos com a Slag de Eduardo e Bruno Ramos, saiu de líder em turnê norte-americana com CSS e Bonde do Rolê. É ele, aliás, quem detém o passe fonográfico do trio de funk curitibano, que há pouco se tornou o primeiro lançamento de seu selo Mad Decent (a Domino será a distribuidora do Bonde, assim como a Sub Pop tem distribuído os lançamentos Trama do CSS). Mandei um e-mail com perguntas simpáticas a Diplo sobre funk carioca, Tetine e baldeações entre países. Fui solenemente ignorado.

Na “Interlândia” (copio o termo utilizado por Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado) entre o underground e o maninstream, o Tetine não camufla contrariedades quanto às ferozes cadeias predatórias do pop transnacional. “O funk mudou nossa carreira radicalmente. Eliete é mais política, eu sou mais conceitual, mas o jeito que a gente via o funk era muito romântico. A gente não faz mais DJ set de funk desde 2005”, tateia Bruno. Mais direta, Eliete dá o papo reto: “Acho que roubar pobre é sacanagem. Imitar a Deize a tal ponto que não dá o feijão para ela é pesado para mim. M.I.A. ganhou o dinheiro que a Deize podia ter ganhado com ‘Injeção’. Essa hierarquia de classes não é nem discutida, mas existe. É um fardo pesado, parece que estou com inveja do sucesso dos outros. É muito fácil ser chamado de explorador sem ter visto um tostão disso. Não entendo por que o Brasil importa o seu próprio café”.

Após andar um tempo no fio da navalha dessa cadeia alimentar, a dupla ainda lançou em tiragem limitada, no ano passado, o libelo (quase-pós-)funk L.I.C.K. My Favela, em que o funk carioca ganha conotações políticas nunca dantes visitadas. “Olha, esse cara tá querendo te encontrar/ pensa que tu é escrava/ olha só, vou te contar/ chegou da Alemanha ontem/ tá querendo namorar/ trouxe espelho, trouxe brinde/ só não soube se explicar/ eu tô cansado dessas ‘buxa’/ que só qué colonizá/ vem pra terra das palmeiras/ onde canta o sabiá/ tu só qué colonizá/ (…) 00 55 21 tá pra vender!”, brada o duo no p-funk (não-)carioca “Zero Zero Five Five (Se Vende)”, nitidamente decalcado do rock anos 80 “Aluga-Se”, de Raul Seixas, e aparentemente endereçado a acho que você sabe quem.

Como deve acontecer desde que Villa-Lobos ouvia os choros de Pixinguinha e vice-versa, o fogo amigo se alastra por entre o underground e o mainstream, ou como você queira apelidar esses dois irmãos bivitelinos. É que, via de regra, nem o underground gosta de ver que sem ele o “primo rico” não existiria, nem o mainstrream quer reconhecer que, sem o know-how prévio do “primo pobre”, o primo pobre seria ele mesmo, até hoje. É o que separa Caetano e Gil de Tom Zé, Rita Lee de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, D2 de BNegão e Black Alien, e assim por diante, de A a Z. O relacionamento humano é coisa complicada, você e eu já sabemos de cadeira.

Mas deixemos de lado um minuto as vanguardas e os mil artistas de todas as áreas que (quase) lotam os shows do Tetine, seja no Brasil, seja na Planetália, e pensemos no heavy pop um pouquinho mais. Certo, o fato de termos uma meninada verde-amarela fazendo bagunça pelo mundo pop pode causar desdém, orgulho bobo, incômodo, nervosismo, raiva, comoção… Mas e se aproveitarmos que o show bizz autofágico está pertinho de nós como nunca esteve para saber um pouco mais sobre como é ser o que eles são? Será, pergunto eu, que a vida nos fulcros do star system é um roseiral de felicidades, a estrada de tijolos amarelos de Dorothy? Sim, em muitos momentos é, como Luiza Sá demonstra, exalando alegria e surpresa, ao concluir uma tentativa de resumir em poucas palavras por que tanta revolução foi acontecer justo com o CSS: “Talvez nós estejamos unindo coisas que não haviam sido unidas antes. Só que ainda é uma loucura olhar as listas e estar lá”. Mas, não, onde há flor costuma haver espinho também. Desenvolver uma vida amorosa dentro do glamour, por exemplo, não é tarefa das mais fáceis, como confidencia Ana. “Namorar é megacomplicado. Muito, muito, muito complicado. Você faz amigos, três dias depois vai embora, é um monte de relação interrompida”.

Adriano também dá seu depoimento, primeiro as partes boas: “O melhor é saber que vamos poder continuar fazendo esse trabalho por muito tempo. É muito bom ir para a Grécia, ficar num hotel cinco estrelas, fazer um show sold out para mil gregos, ir para o Japão, Nova Zelândia, Escandinávia, e sempre ter boas respostas”. A seguir, as não tão boas assim: “O mais penoso é ter que se desapegar de ter uma casa, pensar que todas as minhas coisas estão encaixotadas nas casas dos amigos. É desapegar de dormir na minha cama, com meus travesseiros. É ter saudades dos meus cachorros, que agora não são mais meus”. Saudade dos seus cachorros, você sabe lá o que é isso? Aposto que sabe.

Luiza também procura se dividir com eqüidistância entre os prós e os contras. Um contra: “É realmente cansativo e estressante ficar indo ao aeroporto e pagando excesso de bagagem, fazendo mala, dormindo mal, às vezes comendo mal. Psicologicamente falando, é uma situação um pouco invasiva… Quer dizer, você quase nunca está sozinho”. Um pró: “Ir para o Japão é um sonho realizado, tudo compensa as dificuldades. É muito bom poder trabalhar com o que você acredita em boas condições, conhecer artistas que você admira, ver o mundo. São muitos amigos pelo mundo, tem tanta coisa boa. As ruins te fortalecem, mas aprendemos o valor do descanso, até pra música”. Ela prossegue, num mix de (mais) prós e (menos) contras: “Pra ser sincera, pelo menos metade desta vida que venho levando há um tempo parece um sonho. Abrir tour e tocar pra gente que não foi lá pra nos ver foi uma coisa boa, que nos deixou mais fortes. Quanto a colegas de profissão, essa parte é o maximo, criamos relações e nos repensamos, mas todas as bandas com quem fizemos tour, por exemplo, resultaram em uma enorme amizade. A primeira tour com o Diplo e o Bonde foi uma familiazona. Sou superpróxima ao povo do Ladytron. Conhecemos o Tilly And The Wall em festivais, eles são ótimos. Os Rogers Sisters são uns queridos. Foram só boas experiências”. Enfim, mais um contra, para contrabalançar: “No final da última tour européia, em dezembro, eu estava ficando completamente maluca, estava sem menstruar fazia quatro meses e nem me reconhecia mais. Engordei, dei uma pirada e meus hormônios estavam malucos, mas a própria banda sempre aliviou muito qualquer coisa, porque somos amigos e nos divertimos. Acho que é pra viver e se divertir pelo menos 20% de cada dia, não?”.

O depoimento é rico, também, se partir de alguém que já está alguns ciclos adiante daqueles da conquista e da descoberta, quando banda e mídia mais afeita ao famigerado hype ainda formam um casal em plena lua-de-mel. É o que pode testemunhar o DJ Marky, cria da periferia paulistana e até hoje respeitadíssimo como um dos formuladores centrais do drum’n’bass mundial. Passados alguns anos, o d’n’b não é mais a última novidade nem o mais quente grito da moda, e Marky sabe disso. Ele atende ao telefone paulistano e conversa comigo mansamente, alternando o português quase perfeito das frases com o inglês de pronúncia bem mais que perfeita dos nomes de DJs, artistas e clubes com que se relaciona desde que o planeta eletrônico caiu de quatro diante de um hit seu em parceria com Xerxes, que sampleava um esquecido não-sucesso de Jorge Ben e Toquinho no longínquo 1969: “Carolina Carol Bela”, rebatizada por eles “LK”. “É lógico que meu foco é o Brasil, eu sou brasileiro, pô”, diz Marky, que está em casa com o filho bebê, Gabriel, cujo choro intermitente interrompe docemente o fluxo de perguntas respostas. O assunto “música” e o assunto “filho” brotam juntos e misturados, reunidos numa pessoa só. “Acabei tocando muito mais lá fora que aqui em 2006. No Brasil as pessoas vão muito por moda. Só contratam DJs que tocam esse determinado estilo. Chega uma hora que o estilo cai. Depois ficam metendo pau em funk carioca ou não sei o quê. Os clubes às vezes não deixam a gente tocar o estilo que a gente toca, ‘ah, não, agora a gente quer outro estilo’.”

O bebê se impõe e se interpõe, na conversa e na vida, e nos enternece inesperadamente. “Cuido dele sozinho quando estou no Brasil e ele está comigo em São Paulo. Não deu certo com a mãe, ela mora em Curitiba. Meu foco principal é meu pequenininho. No ano passado, pensei em morar na Inglaterra. Mas o fator principal do meu sucesso no mundo é o fato de eu ir e voltar. Se meu empresário fala que estou disponível, chovem convites na hora. Se estivesse lá, eu não teria esse glamour todo”, mata umas tantas charadas numa cartada só.

Seja qual for o curso da cada história, Marky é peça essencial de um tabuleiro em que o Brasil vai se colocando no mundo de modo cada vez mais atirado. Num passado já remoto, Carmen Miranda brilhou à mesma medida que virou motivo de chacota para exploradores gringos e conterrâneos nada solidários. Em passado bem mais recente, indies brasileiros se ressentiram de não serem admirados, ao mesmo tempo em que faziam (fazem?) questão de demarcar o quanto odeiam a música nativa de seu país – ora, se eles odeiam, por que seus fãs em potencial haveriam de adorar?

Agora, em tempo presente, nossa chance é afirmar (ou não) que já não somos os mesmos nem vivemos balançando os balangandãs como mãe Carmen. Nessa labuta, estão artistas tão diversos como Marky, Seu Jorge, Joyce, Marcos Valle, Tetine, Deize Tigrona, Tom Zé, Mutantes, CSS, Bonde do Rolê e tantos e tantos e tantos outros. Em maior grau, são todos expressões de um país em movimento, lutando para explicar para o desmiolado mundo “rico” que sem ele a favela não existiria, assim como não existiria o abuso de fausto e luxo de Daslus e palacetes europeus se não fosse a espoliação das favelas daqui, dali, de todo lugar.

Ufa. Sob o pulsar de tantas alegrias e aflições, o fio do raciocínio vai minguando vagarosamente em minha cabeça. Cansado, acesso mais uma vez o moderníssimo e impalpável Gmail. Não, não chegou nenhum e-mail de Lovefoxxx, a linda e incendiária vocalista dos CSS. Chegou só um de Eduardo Ramos, esse nosso Malcolm McLaren paulista às pampas, em resposta ao meu desapontamento já pressentido: “O que rolou é simples. Deu uma mega treta no aeroporto em Auckland. Era para eles já estarem aqui e ainda estão lá”. Ãhã, os controladores de vôo da Nova Zelândia também devem estar em greve e em ritmo de apagão aéreo-cibernético, imagino. O mundo deve ser mesmo uma aldeia…

Quase conformado, lembro que é Lovefoxxx quem produz cenas até há pouco inimagináveis no cenário coreografado do show bizz mundial, de menina maluquinha de ascendência oriental que de vez em quando inventa de cantar numa língua distante denominada “português”, no mais distante dos sotaques, o do Brasil, da Eurásia brasileira, de São Paulo. Lembro que Eduardo Ramos, hum, havia me dito que “no seu caso é diferente”, mas admitira que, sim, ele procura preservar Lovefoxxx do assédio da imprensa, já que “o mundo inteiro só quer falar com Lovefoxxx”. Penso que, pô, sobrou logo para mim, que queria falar com todos os CSS (mas só consegui falar com metade). Lembro do que já me disse mais de uma vez Eliete Mejorado, que “nós todos ainda vamos falar muito, e por muito tempo, de Lovefoxxx”. Reconheço, com prazer, que tudo que Eliete e Bruno prevêem pela boca híbrida e multidisciplinar do Tetine costuma virar fato, de fato, ainda que muitas vezes aconteça “apenas” ali no quintal dos vizinhos. Penso em Lovefoxxx ainda uma vez, desejo a melhor fortuna do mundo a essa incrível menina híbrida mutante de Deborah Harry e Baby Consuelo, reconheço para mim mesmo que já aguardo ansiosamente os tempos imponderáveis que virão pela frente, para sacudir definitivamente do marasmo nós todos que, espalhados pelo mundo, fazemos o Brasil ser o que o Brasil é, dentro (e fora) do mundo. E (não) vou dormir quase em paz.

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