não sou eu quem me navega…

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na estréia de sua temporada no novo teatro fecap, na noite de 14 de setembro de 2006, paulinho da viola evocou emocionalmente um samba antigo de cartola, “fiz por você o que pude”, narrando a mitologia por trás da linda canção.

segundo ele, cartola a compôs em homenagem à escola de samba do coração, após um duradouro período de ostracismo (foi reencontrado pelo jornalista stanislaw ponte preta, lavando carros em ipanema, como a história sabe e registra) e de um convite para voltar a trabalhar em sua estação primeira de mangueira.

o que acontece, como lembrou paulinho, é que na letra de “fiz por você o que pude” cartola cometeu (ato falho?) um erro de linguagem, um erro de português (um “erro” de lavador de carros dentro dum mundão de doutores?). trocou, explico eu (paulinho, malicioso, não explicou), o verbo “premia” pelo verbo “premeia”, que assim ficou capenga, mas rimando sublimemente com “veia” e “semeia”. leia, leia, leia aí a letra do samba de cartola:

fiz por você o que pude
(cartola)

todo o tempo que eu viver
só me fascina você, mangueira
guerreei na juventude
fiz por você o que pude, mangueira
continuam nossas lutas
podam-se os galhos, colhem-se as frutas
e outra vez se semeia
e no fim desse labor
surge outro compositor
com o mesmo sangue na veia

sonhava desde menino
tinha o desejo felino
de contar toda a tua história
este sonho realizei
um dia a lira empunhei
e cantei todas tuas glórias
perdoa-me a comparação
mas fiz uma transfusão
eis que jesus me premeia
surge outro compositor
jovem de grande valor
com o mesmo sangue na veia

pois cartola compôs a declaração de desistência (desistência da burocracia mangueirense, veja bem). e, segundo paulinho-semente, os críticos furibundos apressaram-se em apontar o erro semântico no samba do poeta-&-lavador-de-carros. aposto eu que o fizeram de modo sibilino, belicoso, demofóbico, gotejante de veneno. cartola, contou paulinho, ficou desgostoso e nunca mais cantou esse que, para ele, é um de seus mais lindos sambas. “eu, sempre que posso, canto”, emendou o príncipe portelense, a esta altura também já apartado de sua escola de coração.

escrevo este tópico para sublinhar a genialidade e a generosidade desse pequeno gesto de paulinho, de resgatar do passado não só cartola, não só “fiz por você o que pude”, mas também o “erro” em “fiz por você o que pude”, o “erro” em cartola, o “erro”, os erros. poucos teriam coragem de louvar o “erro” nestes avançadísismos anos da graça dos 2000, pois não? sussurro o que certamente sussurrariam baden powell & vinicius de moraes: a bênção, paulinho da viola.

mas não é só isso, ainda. o que eu mais queria comentar, na verdade, é o que ainda não comentei. a crer nas memórias de paulinho (& do samba, & do brasil, & deste mundão de doutores-e-lavadores-de-carros), “fiz por você o que pude” causou horror no ato de seu lançamento, e o horror que causou se concentrou no poder de ferir feito punhal que tinha a palavrinha “premeia”. certo?

errado. aposto que a palavrinha “premeia” e, ao redor dela, o “erro” de linguagem de mestre cartola, não eram o punhal, mas sim a cortina de fumaça que turvava a cena que estava deveras acontecendo.

o horror que “fiz por você o que pude” poderia causar, eu aposto, não está concentrado em “premeia”. espalha-se difuso pelo poema inteiro. é o conteúdo, não é a forma. é o conceito, não a filigrana. é a faísca de gênio, não o esgar de mediocridade. é a poesia bruta contida no gesto de cartola de aceitar (com resignação? sem resignação?) a dança das gerações [desilusão… desilusão, danço eu, dança você…], a continuidade do sonho humano por sobre o envelhecimento e a morte dos indivíduos.

“guerreei na juventude”, “e no fim desse labor surge outro compositor com o mesmo sangue na veia”, exclama o poeta, prenhe de doçura & amargor. “fiz uma transfusão, eis que jesus me premeia: surge outro compositor, jovem de grande valor, com o mesmo sangue na veia”, morde-e-assopra o gênio altivo no mesmo instante em que se curva, modesto, ao “sambista mais novo” [alô, édson & aloísio, na voz potente de alcione, por sobre a dança das gerações: “não deixe o samba morrer!, não deixe o samba acabar!”].

e a partícula “premeia” levaria sobre si toda a carga da fama ifame? quem aí teria/teve/tem/terá a coragem de rejeitar o todo pela parte?, praguejar pelo apodrecimento da colheita por pejo & nojo à temporã?, colher o fruto e ceifar a machadadas a árvore que o produziu?, nutrir-se de samba e incendiar o pomar?

cartola-da-viola não o faria, não o fez, não o faz, não o fará. ele ama o pomar, dentro dele a árvore, nela os frutos todos, entre eles também a linda fruta proibida que por azar-e-sorte premeiou-se em nascer mais (ou menos) desajeitadinha [todos juntos reunidos numa pessoa só?, ó, dr. arnaldo(baptista)-estamira?].

e é isso o que paulinho da viola tem a nos declarar, inseguro, neste momento de contagem regressiva, poucos minutos antes de o brasil eleger a um só tempo o último governante de uma velha linhagem & o primeiro governante de uma próxima linhagem [estamos todos juntos reunidos numa pessoa só?, ó, dr. arnaldo(baptista)-estamira?].

e é isso o que paulinho da viola tem a declarar neste momento em que, hesitante, resgata cartola e se faz cartola e revigora a antiga constatação perplexa de cartola (de todos nós) diante da rapidez com que a vida corre.

e é isso o que paulinho da viola tem a retificar em cartola, decidido, (quase) no mesmo momento em que sai do palco com seus músicos e deixa o holofote aberto para o solo de um único violonista restante, e ele é seu filho (e neto de césar faria, e sobrinho de raphael rabello) joão rabello, jovem de grande valor com o mesmo sangue na veia bem(n)-brasileira.

@

[p.s. do outro lado do espelho, no espírito do tempo: o vizinho blogueiro nelson de sá também tratou hoje do tema prole, no tópico “foi-se o tempo“, tratando de caetano & filhos, de gil & filhos, de marilena chaui & ferréz etc. e tal. é a torrente do presente (alô, madamada!), que se espalha agora pelo ar comum que respiramos.

o nelson falou de proles, mas se esqueceu da prole dele mesmo – citou ferréz & os novos, mas não citou esta janelinha aqui, que tem aberto janela privilegiada para “intelectuais orgânicos” de “sangue ‘novo'” como ferréz, seu jorge, mv bill, marcelo yuka, maria alice vergueiro (& seus netinhos), gog, estamira, ceguinhas de campina grande etc. etc. etc.

pois o nelson não cita nem conta, mas eu vou contar e citar: quando editor da “ilustrada”, foi nelson de sá quem me obrigou (não sem certos traços autoritários) a prestar atenção no rap, no discurso do rap, na importância política do rap, no avanço que o rap trazia. foi só aí, em plena “folha de s.paulo”, que aprendi, atrasadíssimo (e nunca livre de certos excessos autoritários), que um fenômeno crucial acontecia bem diante do meu nariz e eu nem sequer percebia. fui a campo, em tempo, correr atrás do prejuízo, a pedido(-exigência) do “chefe”…

enfim… posso não ser exatamente prole do de sá, mas certamente sou uma das proles de seu faro sensível diante da revolução que o rap (e o funk carioca, e o tecnobrega paraense, não sejamos bairristas, né?) significa dentro da música popular brasileira. obrigado, mestre-companheiro nelson!]

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