Luiz Melodia em cena de "No Coração do Brasil"

Em exibição hoje (13 de abril) no encerramento do festival É Tudo Verdade, o filme Luiz Melodia – No Coração do Brasil, dirigido por Alessandra Dorgan, tem uma virtude principal: é um documentário sobre um músico que alça a música ao primeiro plano, à condição mesmo de protagonista. Pode parecer uma redundância, mas não é o que acontece numa grande parcela das cinebiografias centradas em estrelas da canção. Quem traz essa peculiaridade para No Coração do Brasil é a diretora musical do filme, a jornalista Patricia Palumbo, de longa história no radiojornalismo musical. A ambientação começa já nas primeiras cenas do filme: primeiro ouve-se o som da agulha pousando nos sulcos empoeirados de um vinil, a seguir um efeito sonoro faz o dial de um rádio imaginário se alternar entre estações, pulando entre influenciadores da sonoridade de Luiz Melodia, como Zé Keti, Elizeth Cardoso e Erasmo Carlos. Compreende-se, de imediato, que o filme transportará o espectador para um tempo e um imaginário que não existem mais.

Morto em 2017, aos 66 anos, o cantor e compositor carioca Luiz Melodia é o outro protagonista do filme, ao lado da música, da sua música. Na primeira aparição, conversando em cima do palco, ele entra em brando confronto com a plateia, intimando-a com alguma irritação a dançar e a cantar “já que a repressão é tanta”. Não haverá refresco, já que Melodia é áspero e pontiagudo, na obra e na vida. Desde Waly Salomão e Torquato Neto, personagens relevantes da cultura brasileira não cessam de subir à tela ao longo de todo o filme, mas o pano musical e poético de fundo (ou de frente) é que completa e integra o sentido, muito mais que as falas desse ou daquele personagem.

Gal Costa, descobridora de Melodia, adentra o filme em raras imagens do show Fatal (1971), que lançou a obra-prima “Pérola Negra”. Maria Bethânia a segue e canta “Estácio, Holly Estácio”(1972), em tom de samba-canção. Gal volta para interpretar “Presente Cotidiano” (1973), em temperatura tropicalista até a medula. “O corpo é natural da cama”, ela canta, já fazendo aflorar a prosódia muito particular do autor. Melodia explica que sua descoberta pelas grandes cantoras de MPB veio quando ele já pensava em desistir. Tal era a dificuldade que um rapaz negro nascido no morro de São Carlos enfrentava para se firmar, se não estivesse a fim de ser sambista ou passista de escola de samba.

É um detalhe nada desimportante. Apesar de apaixonado por samba, Melodia não estava disposto a cantar apenas esse estilo, como as gravadoras multinacionais via de regra pressionavam cantoras e cantores negros brasileiros a fazer. Sua receita recombinava de um modo absolutamente original samba, funk, baião, jazz, bossa, soul, jovem guarda, blues, samba-canção, rock, reggae, salsa, rap… Os atritos com gravadoras, as reprimendas da imprensa, tudo converge para o retrato do jovem artista como um “traidor” da nobre causa do ritmo brasileiro por excelência. “Disseram no jornal, televisão/ que eu não gosto mais de samba, samba/ jornal, televisão está no ar/ mas eu sou bamba, bamba/ a lógica se move, deixa estar/ a luz do sol, a cor do mar não se fabrica/ em minhas veias corre o sangue a batucar”, ele retruca em canção mestiça, em 1978.

“Só louco consegue se manter”, ele constata, referindo-se à pressão que vinha de todas as direções quando “Juventude Transviada” estourou na TV e nas rádios, em 1975. Os de sua estirpe vêm em seu socorro: Jards Macalé (“negra melodia/ que vem do sangue do coração/ I know how to dance”), Sérgio Sampaio (“Luiz Melodia/ dias melhores virão”)… O rótulo que a engrenagem fixou para defini-los foi o de “malditos”, quando eram, na realidade, rebeldes, desacomodados, inconformistas – tudo que a engrenagem mais temeu, teme e temerá. Como resposta ao sucesso causado pela música na novela, Melodia se refugiou na Bahia por um ano inteiro. À mídia, ele tenta explicar que prefere fazer um “sucesso brando”, para preservar o direito de estar incógnito no bar da esquina, na rua – a expressão de incredulidade nos rostos dos repórteres é constante e invariável.

No Coração do Brasil promove jogos que são um parque de diversões para quem se liga em música a fundo. Apenas como ilustração, quando Oswaldo Melodia surge falando sobre o filho, a introdução instrumental é de “Maura”, composição do pai que não chegou a se profissionalizar, gravada por Luiz em 1991. A trilha sonora causa esse tipo de choque elétrico, o tempo todo. O intrincado manifesto racial “Ébano” ganha a cena na interpretação ao vivo do autor no Festival Abertura de 1975, da Globo, com acompanhamento eletrizante dos músicos que logo depois ficariam conhecidos como a Banda Black Rio. Ainda que não verbalizado, entende-se que Luiz Melodia, dificilmente creditado, foi um dos líderes culturais e musicais do movimento black Rio.

A farta ilustração musical despeja faíscas poéticas de alta originalidade e octanagem no colo do espectador/ouvinte: “eu quero é mel”, “quem tem, tem/ quem não tem não se conforma”, “espero de te encontrar com mais saúde”, “o couro que me cobre a carne não tem planos”, “devo de ir, fadas”, “fado é na ponta da língua/ samba é na ponta do pé”, “olha a pichação no muro/ sua ideia é genial”, “os olhos necessitam não/ frases de negou negou”, “falando de pobreza sem ser triste/ falando de tristeza sem ser pobre/ há quanto tempo/ ah, quanto custa hoje em dia”, “no sonho dos meus sonhos quando eu sonho o mundo está pra se acabar”, “se a pobreza te assusta/ a cretinice te rói/ sub-anormal pelo mundo/ que te lapida e destrói”, “se a gente falasse menos/ talvez compreendesse mais”, “quem não pisa na terra não sente o chão/ luz é vida, é pulsação”… Percebe-se como é fragmentário o ideário que Melodia quer transmitir, que resplandece mais em frases-relâmpagos que em textos corridos de começo, meio e fim.

Em certo depoimento da fase inicial da carreira, Melodia se queixa de cansaço em relação à “música de apartamento” – não cita a bossa nova, nem a MPB que a seguiu, mas é dessas que parece falar. A paisagem sonora mostra como o termo “rua” é constante em sua produção e central para sua existência. “Tô na rua fim de semana/ não venha me por medo/ eu já saio um rochedo/ não te vi, não te conheço/ você tá falando grego/ esse filme eu já vi”, interpreta Cássia Eller, já em 1999. Ficam de fora duas das madrinhas musicais de Luiz Melodia, Vanusa (que lançou “Congênito” em 1975) e Wanderléa (que apresentou “Segredo”, no mesmo ano).

“Meus shows estão sempre cheios, graças a mim”, ele zomba da pergunta renitente sobre o por quê de tão poucos discos lançados (em vida foram 15, nem tão poucos, nem tão muitos). Nove entre dez comentaristas aparecem usando o cacoete de classificar Luiz Melodia como um compositor e músico “intuitivo” – um adjetivo que não costuma acompanhar artistas brancos de classe média ou alta. No contrapé, ele surge na tela em invariáveis trajes garbosos, sendo entrevistado trepado numa árvore, em via pública sendo carregado nos braços do povo.

Numa montagem inspirada de No Coração do Brasil, empilham-se cenas da coreografia peculiar do Melodia dançarino, digna não apenas de um precursor do samba-funk e da black Rio, mas também dos elaborados e mirabolantes passinhos do funk carioca. O filme retrata um artista que se rebela constantemente e que está ligado (muitas vezes como influenciador) a tudo que acontece ao seu redor. Repõe na mente do espectador, portanto, que este não é mais o tempo de Luiz Melodia, mas que Luiz Melodia está presente em muito do que há de construtivo e corajoso no mundo atual.

Luiz Melodia, uma playlist: negro gato, pérola negra (*)

1 Gal Costa, “Pérola Negra”, 1971

2 Luiz Melodia, “Pérola Negra”, 1973

Em 1997, Luiz Melodia e Gal Costa se encontram para cantar “Pérola Negra” no Acústico MTV de Gal

3 Maria Bethânia, “Estácio, Holly Estácio”, 1972

4 Luiz Melodia, “Estácio, Holly Estácio”, 1973

5 Luiz Melodia, “Estácio, Eu e Você”, 1973

6 Jards Macalé, “Farrapo Humano/ A Morte” (Luiz Melodia/ Gilberto Gil), 1972

7 Luiz Melodia, “Farrapo Humano”, 1973

8 Lena Rios, “Garanto”, 1972

9 Luiz Melodia, “Magrelinha”, 1973

10 Zezé Motta, “Magrelinha”, 1978

11 Luiz Melodia, “Vale Quanto Pesa”, 1973

12 Luiz Melodia, “Pra Aquietar”, 1973

13 Gal Costa, “Presente Cotidiano”, 1973

14 Luiz Melodia, “Presente Cotidiano”, 1978

15 Luiz Melodia, “Salve Linda Canção sem Esperança”, 1997 (a versão original, de 1974, está indisponível no Spotify)

16 Luiz Melodia, “Juventude Transviada”, 1975

17 Gal Costa, “Juventude Transviada”, 1979

18 Vanusa, “Congênito”, 1975

19 Luiz Melodia, “Congênito”, 1976

20 Luiz Melodia, “Ébano”, 1975

21 Luiz Melodia, “Maria Particularmente”, 1975

22 Wanderléa, “Segredo”, 1975

23 Luiz Melodia, “Segredo”, 1980

24 Luiz Melodia, “Maravilhas Contemporâneas”, 1976

25 Luiz Melodia, “Veleiro Azul” (Luiz Melodia-Rubia Mattos), 1976

26 Luiz Melodia, “Paquistão”, 1976

27 Luiz Melodia, “Questão de Posse”, 1976

28 Luiz Melodia, “Memórias Modestas”, 1976

29 Jards Macalé, “Negra Melodia” (Jards Macalé-Waly Salomão), 1977 (homenagem a Melodia por Jards Macalé)

30 Luiz Melodia, “A Voz do Morro” (Zé Keti), 1978 (original de 1955, por Jorge Goulart)

31 Luiz Melodia, “O Morro Não Engana” (Luiz Melodia-Ricardo Augusto), 1978

32 Zezé Motta, “O Morro Não Engana (Luiz Melodia-Ricardo Augusto)”, 1978

33 Luiz Melodia, “Fadas”, 1978

34 Elza Soares, “Fadas”, 2002

35 Luiz Melodia, “Falando de Pobreza” (Tureko), 1978

36 Luiz Melodia, “Onde o Sol Bate e Se Firma”, 1978

37 Zezé Motta e Luiz Melodia, “Dores de Amores”, 1978

38 Luiz Melodia, “Mistério da Raça”, 1980

39 Luiz Melodia, “Negro Gato” (Getúlio Côrtes), 1980 (original de 1965, por Renato e Seus Blue Caps)

40 Sérgio Sampaio e Luiz Melodia, “Doce Melodia” (Sérgio Sampaio), 1982

41 Sandra Sá, “Amor Meu” (Luiz Melodia-Ricardo Augusto), 1982

42 Luiz Melodia, “O Sangue Não Nega” (Luiz Melodia-Ricardo Augusto), 1983

43 Luiz Melodia, “Só” (Luiz Melodia-Perinho Santana), 1983

44 Luiz Melodia, “Sorri pra Bahia” (Edil Pacheco-Luiz Melodia-Cardan Dantas), 1983

45 Luiz Melodia, “Divina Criatura” (Luiz Melodia-Papa Kid), 1983

45 Lazzo Matumbi, “Destino Coração”, 1983 (também gravada por Melodia)

“Agulha no Palheiro” (1983), do especial A Turma do Pererê, inspirado em Ziraldo (indisponível no Spotify)

47 Zizi Possi, “Pássaro sem Ninho” (Luiz Melodia-Ricardo Augusto), 1984 (original de 1983)

48 Luiz Melodia, “Decisão” (Luiz Melodia-Sérgio Mello), 1987

49 Luiz Melodia, “Que Loucura” (Sérgio Sampaio), 1987 (original de 1976 por Sérgio Sampaio)

50 Luiz Melodia, “Broto no Jacaré” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 1987 (original de 1965 por Roberto Carlos)

51 Caetano Veloso e Luiz Melodia, “Vamo Comer” (Caetano Veloso-Tony Costa), 1987

52 Margareth Menezes, “Negra Melodia” (Jards Macalé-Waly Salomão), 1990

53 Margareth Menezes, “Negro Menino” (Lazzo-Gileno Félix), 1990 (homenagem a Melodia por Lazzo Matumbi, na voz de Margareth Menezes)

54 Barão Vermelho, “Na Calada da Noite” (Frejat-Luiz Melodia), 1990

55 Luiz Melodia, “Codinome Beija-Flor” (Cazuza-Ezequiel Neves-Reinaldo Arias), 1991 (original de 1985 por Cazuza)

56 Luiz Melodia, “Mistério do Planeta” (Moraes Moreira-Galvão), 1991 (original de 1972 pelos Novos Baianos)

57 Luiz Melodia, “Maura” (Oswaldo Melodia), 1991

58 Cássia Eller, “Sensações”, 1992

59 Itamar Assumpção e As Orquídeas do Brasil, “Quem É Cover de Quem?” (Itamar Assumpção), 1993 (homenagem de Itamar a Melodia)

60 Sampa Crew e Luiz Melodia, “Pérola Negra”, 1996

61 Raça Negra, “Salve Linda Canção sem Esperança”, 1997

62 Luiz Melodia, “Sub-Anormal” (Luiz Melodia-Ricardo Augusto), 1997

63 Cássia Eller, “Esse Filme Eu Já Vi” (Luiz Melodia-Renato Piau), 1999

64 Luiz Melodia, “Esse Filme Eu Já Vi” (Luiz Melodia-Renato Piau), 2001

65 Luiz Melodia e Cássia Eller, “Juventude Transviada”, 1999

66 Caetano Veloso, “Magrelinha”, 2000

67 Luiz Melodia e Elza Soares, “Fadas”, 2002

68 Clube do Balanço, “O Morro Não Engana” (Luiz Melodia-Ricardo Augusto), 2004

69 Luiz Melodia, “Contrastes” (Ismael Silva), 2007 (original de 1973 por Ismael Silva)

70 Jards Macalé, “Só Assumo Só”, 2010 (gravada por Melodia ao vivo em 1985 e no estúdio em 1995

71 Pedro Luís, “Hoje e Amanhã Não Saio de Casa”, 2011 (original de 1980)

72 Luiz Melodia, “Cura” (Luiz Melodia-Renato Piau), 2014

73 Luiz Melodia, “Leros e Leros e Boleros” (Sérgio Sampaio), 2014 (original de 1973 por Sérgio Sampaio)

74 Jards Macalé e Luiz Melodia, “Decisão” (Luiz Melodia-Sérgio Mello), 2015

75 Pedro Luís, “Abundantemente Morte”, 2018 (original de 1973)

76 Liniker, “Vale Quanto Pesa”, 2024

77 Mahmundi, “Estácio, Holly Estácio”, 2024

78 Criolo, “Pérola Negra”, 2024

(*) todas as composições de Luiz Melodia, exceto onde indicado

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