Em entrevista rara, cantora fala sobre parcerias com Cartola, Baden Powell e direitos autorais
Em julho de 1979, Elis Regina desabafava: “A arrecadação de direitos no Brasil é uma coisa descomunal. E é incorreta. Não é perfeita ainda por culpa das próprias editoras que não estão interessadas nisso. Não estão interessadas em que fique tudo certo. Não é problema de Ecad, nem de Conselho de Direito Autoral, nem de Ministério de Educação e Cultura.” A “Pimentinha” (apelido criado por Vinicius de Moraes) estava mais ardida do que nunca ao falar sobre a questão de direitos autorais em uma entrevista à Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A ideia original era comentar o disco “Essa Mulher”, lançado naquele ano, e que trouxe a célebre “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc (antes já apresentada em compacto simples), logo apelidada de “Hino da Anistia”. Vivíamos o fim da ditadura militar. É, segundo a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), uma rara entrevista, que volta agora a ser veiculada em um site especial (clique aqui) para marcar os 68 anos de nascimento da gaúcha de Porto Alegre.
O disco, o primeiro pelo selo WEA, trazia a gravação de “Basta de clamares inocência”, composição inédita de Cartola, a quem ela se referiu como “é a maior graça, uma pessoa calma, tem uma sabedoria. O Cartola é uma pessoa maior”, e “Cai dentro”, também inédita de Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro. A essa altura da carreira, Elis já era reconhecida em todo o Brasil, mas refutava o título de “popular”. “Eu acho realmente tudo muito simpático, tudo muito engraçado, acho as pessoas todas maravilhosas, mas eu na realidade estou procurando a minha turma, tô procurando reeencontrar minha turma. Estou descolada mais duas”, afirmou, comentando que não se sentia como parte da elite, nem das classes mais populares, mas tinha identidade com essas últimas. “De uma certa forma, a elite não aceita as pessoas vindas de camada inferior, que até não têm o currículo universitário. E você assimila uma série de comportamentos desse outro tipo de categoria social e, de repente, também é olhada com outros olhos pelo pessoal que não teve chance de chegar até a universidade, e que na realidade é 99% da população. Então estou fechando com a maioria.” Elis afirmou que o disco “Essa Mulher” marcava o feliz reencontro com o produtor e diretor artístico Mazolla e o produtor musical André Midani.
Mas a surpresa fica por conta da fala franca que Elis usou para abordar o tema dos direitos autorais. Ela explicava a criação da Assim (Associação de Intérpretes e Músicos) e de como essa questão já havia se tornado uma dor de cabeça para os artistas brasileiros, uma categoria que ela se prontificava a ajudar, mas que lhe virava as costas. Vale a pena reproduzir trechos dessa parte da entrevista:
“A Assim era destinada a tomar conta, a se preocupar com o direito autoral do músico. O intérprete já tem, bem ou mal, quem toma conta de seus interesses. O disco toca em rádio, parque de diversão, restaurante, televisão, sei lá o quê, e as taxas são pagas e o percentual vem para gente. A cada três meses você vai lá e recebe. É uma quantia que eu, particularmente, acho ridícula, mas é o que me é dado nesse latifúndio. Então, sabe, você esperneia, mas também não vai deixar no caixa. Se eu não levar, outro leva. Até o ano passado, eu recebia por 14 anos de gravações e execução no Brasil a fortuna de 1.500 cruzeiros por trimestre*. Agora está bom, estou recebendo 20. Está ótimo. O último recebimento foi 24. Quer dizer, tudo bem bicho, eu toco pouco. Ninguém escutou ‘Águas de Março’, nunca, nem ‘Romaria’, ninguém toca essas coisas. Sabe, bicho, como toco pouco, tenho que realmente assumir que toco pouco e receber pouco. O dia em que eu for popular, que eu tocar bastante no rádio, quem sabe eu recebo 30 (risos). A Assim vai fazer a mesma coisa com o músico, porque o músico não recebe por execução. Ele grava o disco, e recebe o seu cachê pelas horas de estúdio que ele gastou. Ou seja, mão-de-obra. No momento, que ele grava o disco, assina um recibo de quitação de todos os direitos. Isso, de certa forma, é uma coação.”
Na entrevista, Elis prosseguiu dizendo que o músico que se sente prejudicado sempre pode entrar na Justiça, que certamente ele vai ganhar, mas penará por três anos ou mais com um processo judicial. Decidida a mudar o curso da história, afirmou que passou a lutar pelos direitos dos artistas, mas acabou por desistir diante do solene silêncio dos colegas. “A gente fez 3 mil formulários. Eu mandei fazer do meu bolso e mandamos para os músicos de Rio e São Paulo. Há um ano. Ninguém mandou de volta. Então, bicho, sabe, como é que é? Não estou brigando por uma coisa minha, eu já recebo. E também não estou ganhando nada com isso. O que eu ganho é do show que faço, do disco que gravo, da televisão. Ponto. Tô na ativa”, criticou. Por fim, ela traçou um raio-X da questão que até hoje é um problema sem solução no Brasil:
“Todas essas entidades de classe são dirigidas, via de regra, por pessoas que não estão mais na ativa, o que aliás é muito curioso. Sabe, salário, verbas ‘xis’, quantidade incomensurável de dinheiro na mão, não sei se você sabe a arrecadação de direitos no Brasil é uma coisa descomunal. E é incorreta. Não é perfeita ainda por culpa das próprias editoras que não estão interessadas nisso. Não estão interessadas em que fique tudo certo. Não é problema de Ecad, nem de Conselho de Direito Autoral, nem de Ministério de Educação e Cultura. O problema é das editoras, elas querem que volte o negócio, elas arrecadando, para elas poderem manipular do jeito que melhor lhes aprouver. Agora bicho tô na ativa, não preciso. Estou brigando porque acho uma injustiça, uma safadeza, mas o nego não me dá respaldo? O cara por quem estou brigando não está me dando cobertura, vou continuar brigando? Sou suicida? Não sou camicase. Se eu fosse japonês, continuava sentada dentro da bomba e detonava comigo dentro. Mas não sou louca. Nasci no Rio Grande, meu pai é filho de índio, minha mãe é filha de português. Até que ponto vale a pena continuar. Será que porque sou cantora? Será que é?”
Elis concluiu dizendo que por causa dessa luta em vão ficou dois anos em uma “lista negra e mil coisas esquisitas aconteceram” com ela.
Entrevista imperdível!
* o equivalente a 871 reais, valores atualizados pelo IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas, no site do Banco Central
Hoje tanta gente tem esse tal currículo universitário,e o Brasil deu marcha ré culturalmente falando.
Como elis se colocaria perante o mercado de hj e direitos autorais? Provavelmente teria uma posiçao parecida com a de joao marcello, liberal e antenada à tecnologia e qualidade.