Um passeio doloroso pela obra musical do grupo roqueiro santista Charlie Brown Jr. e de seu líder, Chorão, que morreu em São Paulo, no último dia 6 de março, aos 42 anos.   

 

A morte de um ídolo pop é um momento cruel para o jornalismo cultural – que, talvez por isso mesmo, costuma reagir ao instante com euforia e grandiloquência. Repórteres têm de cumprir um papel ingrato, meio de coveiros, meio de abutres, e revoar ao redor de personagens relacionados ao ídolo morto em busca da chamada “repercussão”. Os ditos críticos culturais explodem em análises frequentemente apressadas sobre a obra, a vida e a morte do cara. De ambos os lados, pululam frases e frases de efeito sobre legado, importância e o diabo a quatro.

Atuando há duas décadas como repórter e crítico musical, tenho me debatido há dez dias entre escrever e não escrever sobre a morte, aos 42 anos, de meu contemporâneo Chorão, líder e letrista principal do Charlie Brown Jr. Nos dez anos em que atuei na Folha de S. Paulo, entre 1994 e 2004, aprendi rapidamente que a hora da morte do pop star é um momento de “sucesso” para o crítico, mais ainda se ele escreve no calor da emoção, da pressa e da superficialidade, como sempre acontece. Meus textos sobre Chico Science (1997), Tim Maia (1998) e Cássia Eller (2001) ribombaram, e eu tinha orgulho deles.

Já não sinto tanto esse orgulho, mas sim certa náusea, que me faz chegar por último ao caso Chorão. Por mais difícil que seja o momento, ele é também fácil demais para o lado de cá. É fácil demais comover você, que provavelmente já está predisposto(a) a se comover pela morte precoce demais, triste demais, chocante demais de uma celebridade. A tarefa vira um passeio se o escriba era apaixonado e está inconformado com a morte do artista, como foi meu caso, especialmente, com Cássia Eller (a quem, a propósito, o Charlie Brown dedicou o disco Bocas Ordinárias, de 2002). Nessas horas, choramos todos juntos.

Um caso como o de Chorão é agudo por uma razão a mais: quando estava vivo, a chamada imprensa especializada não era de manifestar simpatia por ele. A incompatibilidade e o distanciamento recíproco resvalavam em certas letras da banda, como as de “Vivendo a Vida Numa Louca Viagem” (2007, “tamo aí na luta sem perder a sanidade/ vencendo o desamparo com personalidade”), “Champanhe e Água Benta” (2004, “você é bonito e eu sou feio/ sua mãe te ama, mas eu te odeio”), “Não Uso Sapato” (2003, “eu não sei fazer poesia, mas que se foda/ eu odeio gente chique, eu não uso sapato, mas que se foda”) ou “Papo Reto (Prazer É Sexo, o Resto É Negócio)” (2002, “otário, eu vou te avisar, intelecto de cu é rola”). A célebre briga de 2004 com Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante, do grupo Los Hermanos, mais afinado que o CBJr. com a MPB e a crítica musical, também poderia se encaixar nesse contexto.

As camadas mais afeitas aos emepebismos (às quais me incluo, às vezes com certo desgosto) desprezam Chorão e sua banda escudadas em pretextos raramente explicitados – ora o excesso de peso da mistura rap-hardcore-skate-pauleira do Charlie Brown Jr., ora o sucesso maciço que costuma afastar a música pop da crítica de “intelecto”, em enfadonha e repetitiva rotina. Nos dias em que me mantive quieto, ouvi sem parar e com atenção redobrada a discografia do Charlie Brown, coisa que nunca havia feito antes.

O que primeiro encontrei nessa viagem retardada de conhecimento foi uma obviedade: a diferença entre Chorão e aqueles que ele xinga de “playboys” em suas letras é bem mais uma refrega entre classes sociais que questão musical ou estética. “Ela tem carro importado e telefone celular/ eu só tenho uma magrela e um apê no BNH”, o cara cantava em 1997, no primeiro álbum, em “Tudo Que Ela Gosta de Escutar”. “Sempre quis falar, nunca tive chance/ tudo que eu queria estava fora do meu alcance”, protestava em “Não É Sério” (2000), que contém a mais séria proposição da história de Chorão e do CBJr.: “Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem, não é sério/ o jovem no Brasil nunca é levado a sério”. Como discordar de Chorão, se até mesmo críticos de jornal e revista e intelectuais de esquerda só fazem tachar de “ignorantes” os jovens produtores brasileiros de cultura, sem sequer ouvi-los?

“Você me diz que sou desajeitado, que eu não sou ninguém/ me tira o sono só pra se sentir bem”, reagia o artista periférico paulistano radicado santista desde a adolescência, em “Você Vai de Limusine, Eu Vou de Trem” (2001). O título e a acusação de que o de cima sobe cavalgando os ombros do de baixo expõem a fratura social escondida atrás do rock cru, cruel e agressivo de Chorão.

Em “Somos Poucos, mas Somos Loucos” (2002), ele explicitou algo que certamente tem muito a ver com o apelo popular que conquistou. Cantou, ali, que seu som “toca na ferida tipo rap nacional/ como fez o Mano Brown, revolução mental”. E completou: “O barato vai batendo no estéreo do meu carro/ quando tá rolando rap eu só escuto, eu não falo/ eu sou um cara branco, eu admiro a negritude”. O último verso tem implicações tanto musicais quanto sociais e ideológicas. A inventividade do CBJr. sempre residiu, em grande medida, no fato de o grupo promover o muitas vezes indesejado encontro musical entre a brancura roqueira e a negritude expressa em tempo de reggae, raggamufin e, principalmente, hip-hop.

Chorão era um rapper branco, ou um roqueiro negro – não à toa, era e é respeitado e admirado por RZO e Sabotage (convidados pelo CBJr. para participar de “A Banca”, em 2000), Mano Brown, MV Bill (que em 2002 incorporou “Não É Sério” a seu rap “Cidadão Comum Refém”), Dexter e outros. O Rappa também gostava do CBJr., que também flertava sem muita resposta com o culto ao manguebit pernambucano.

A identificação periférica cresceu nos últimos anos, a ponto de o disco derradeiro, Música Popular Caiçara (2012), se concretirzar como um manifesto de orgulho santista desde o título. Talvez rap-rock caiçara fosse um apelido justo para o som do CBJr., mas nós não o percebemos, e coube à própria banda erguer a bandeira. O manifesto de orgulho caiçara seria certamente o afiado “Na Palma da Mão (O Ragga da Baixada)” (2005), gravado com o grupo Conexão Baixada (alguém aí conhece?).

“Vem cá, seu cu de burro, eu vou te dar um esculacho/ sua atitude é de playboy porque sua vida é muito fácil”, esbravejou Chorão em “Tamo Aí na Atividade” (2004), externando sem escamoteações o ódio interno guardado. Pareceria chocante a ouvintes mais sensíveis, mas tal atitude certamente aproximou o CBJr. do público também marginalizado a que o grupo se dirigia. “Fico sem saber pra onde eu vou/ quando vejo a situação do mundo em que estou/ destilar meu ódio ou só falar de amor?”, debatia-se Chorão em “Onde Não Existe a Paz Não Existe o Amor” (2005). “Hoje o oprimido é quem oprime/ uma alma carregada de ódio e amor/ mas muito mais ódio que amor”, acrescentava em “Be Myself” (2007), com desassombro incomum.

Há aqui um dado de transparência que também notabiliza a trajetória de Chorão. Suas letras tornam-se mais moralistas e atormentadas com o passar dos anos, mas ele não cai na armadilha frequente no pop, de tentar conservar os motes e o discurso pré-sucesso na fase pós-sucesso. Logo após “Você Vai de Limusine, Eu Vou de Trem” (2001), ele reparou, em “Papo Reto” (2002), a mentirinha: “Eu não sou simpático a ninguém/ hoje eu vou de limusine, mas já andei de trem”. O conflito de ir lentamente se tornando uma imagem distorcida daqueles que criticava cobrou preço alto a Chorão, como sabemos.

A propósito, especular sobre o papel das drogas na vida e morte de Chorão, como muito se fez nesses dias, é inútil e matéria de jornalismo sensacionalista. Tudo esteve sempre dito nas letras, desde “Não É Sério”. “A polícia diz que já causei muito distúrbio/ o repórter quer saber por que eu me drogo, o que é que eu uso/ eu também senti a dor e disso tudo eu fiz a rima”, revelava Chorão no século passado, por entre os vocais suaves da pop-rapper Negra Li.

Uma canção que só pelo título afastaria críticos mais elitistas, digo, intelectualizados é “Cheirando Cola” (2004), outro dos mais representativos testemunhos deixados por Chorão. Começa particular, pequenina, choramingona: “Quero jogar um videogame e estou aqui cheirando cola/ sou o lixo do mundo, a sociedade me ignora”. E termina gigante: “Os gringo tão mandando no Brasil”, “o Brasil virou freguês do gringo americano/ há 500 anos nós entramos pelo cano”. Veja bem, era um roqueiro norte-americanizado (como quase todo roqueiro), às vezes artificial e diluido, denunciando-se a si mesmo sem autocondescendência. Como propagandista de si próprio, Chorão era advogado ora de defesa, ora de acusação.

Por ironia (ou não), sua canção-testamento fica sendo “Céu Azul”, única faixa inédita de estúdio incluída no final do ao vivo Música Popular Caiçara e uma das mais doces e tristes que ele cantou. “Uma palavra amiga, uma notícia boa/ isso faz falta no dia-a-dia”, canta, num tema enganosamente ensolarado, também marcado pelo arrependimento (“eu estava errado e você não tem que me perdoar”). Parece uma linda canção agora que ele morreu, mas confesso que eu não gostava de ouvir até outro dia, quando tocava na novela da TV Record.

Termino este texto tendo dito boa parte que me ocorreu ao ouvir Charlie Brown Jr. com mais atenção, exclusivamente motivado pelo impacto da morte de Chorão e pelo barulho midiático a seu redor (não há romantismo nenhum em nada disto). O que não consigo dizer, nem responder, para mim ou para você, é por que esperei para fazê-lo apenas quando o artista conturbado que agora me motiva não pode mais nos escutar.

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

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2 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns gostei muito do texto,mas Vc se esqueceu de citar a música do CD Bocas Ordinárias – Com a Boca Amargando,que pra mim traduz a morte de Chorão. Procure ai por favor a letra e depois me diga. Abraço!

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