O senador Eduardo Gomes (paletó cinza claro) com Flora Lindsay, Mark Lowe e Francisco Sadek, representantes do governo norte-americano

Os senadores do lobby do streaming desistiram, na última hora, de levar a votação no plenário do Senado o Projeto de Lei do Streaming, votação anunciada para a última terça-feira (16) passada pelo relator, senador bolsonarista Eduardo Gomes (PL-TO). Com o recesso, o texto só deverá ser examinado agora a partir de março, o que confere fôlego aos interesses nacionais para se reorganizarem em torno de um projeto progressista e que atenda às demandas da Nação brasileira. Examinamos aqui as decorrências disso:

  1. A suspensão da votação forçará a ouvir as vozes dissonantes. A única interlocução que o Senado fez com as partes interessadas na regulamentação do streaming foi justamente com o principal regulado, a economia norte-americana. Eduardo Gomes recebeu em extática cerimônia, poucos dias antes de levar o projeto a votação, o conselheiro da Embaixada dos Estados Unidos, Matt Lowe, a associada econômica, Flora Lindsay, e um assessor sênior, Francisco Sadek;

2. A suspensão da votação do PL do Streaming, que tramitava em caráter terminativo (ou passava um texto, o do Senado, ou outro, o da Câmara, sem a possibilidade de aprimoramentos), foi um sinal de que as negociações políticas saíram das mãos do Ministério da Cultura e da Ancine, cujo empenho foi criticado por todo o setor (com especial deferência ao vídeo de Wagner Moura, divulgado em primeira mão pelo FAROFAFÁ). Informações do colunista Lauro Jardim, de O Globo, dão conta de que Sidônio Palmeira, o chefão da comunicação do governo Lula, interveio no trâmite por causa das repercussões negativas, para o governo, da possibilidade de aprovação de um projeto entreguista. Os possíveis acordos que possam ter existido entre o grupo que capitaneava as negociações (Márcio Tavares, secretário executivo do MinC; Randolfe Rodrigues, senador; Paula Lavigne, produtora) deverão ser reavaliados, e o MinC afastado do processo;

3. Não há “prejuízos” a serem contabilizados. O argumento de que, com o adiamento da regulação, as big techs sigam mais um ano sem pagar o imposto devido (a Condecine-Streaming), é falacioso: ao terem acesso a recursos do FSA (pela via do incentivo fiscal), essas empresas teriam ascendência sobre a natureza do audiovisual que será fomentado, os temas que serão abordados, além de acessarem recursos que são de direito exclusivo do produtor independente nacional; além do mais, após 15 anos sem pagar um centavo de imposto, não é agora que os cofres públicos começariam a amargar prejuízo (há diversos tipos de prejuízo além do monetário, e perenes);

4. A súbita visibilidade do PL do Streaming (e da questão toda da regulação do audiovisual para o futuro do País) tornou o assunto público e urgente, o que conduz a outro nó do fomento, financiamento e fiscalização do setor: a inação da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Há poucos dias, a Ancine divulgou a ata de outubro do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (fundo onde ficam os recursos provenientes da tributação de empresas), com dois meses de atraso. A ata mostra que não foi lançado nenhum edital novo para produção de cinema em 2025 – o que aconteceu foi que o Comitê realizou uma suplementação dos editais de 2024. E, mesmo assim, esses editais ainda não foram pagos. Produtores estimam que, como os próximos editais sairão em 2026, pode ser que só sejam pagos em 2028. É uma estultice: a Ancine tem uma caixa-preta de inépcia a ser aberta e publicizada (chegou a defender a extinção da Condecine, sua própria fonte de financiamento, no governo Bolsonaro);

5. A suspensão do PL do Streaming também ajuda a sociedade brasileira a entender quais são os diversos interesses que estão em jogo e não convergem com o interesse público. Na semana passada, um grupo de grandes produtoras divulgou um manifesto pela aprovação imediata do PL do Streaming, conclamando o relator, senador bolsonarista Eduardo Gomes, a comemorar com esse grupo, ato contínuo, a aprovação. A maioria dos signatários mantém relações umbilicais com as big techs, e advoga pela exceção das regras de fomento e financiamento;

6. O quiprocó em torno desse tema, o do Video sob Demanda (VoD), ampliou o debate para as questões da propriedade intelectual e dos direitos autorais, que estavam em segundo plano na questão e também são cruciais – as empresas estrangeiras que operam no Brasil não têm por hábito respeitar essas questões;

7. Outro efeito colateral será sentido no cenário eleitoral. Os pré-candidatos do setor cultural a cargos na Câmara ou no Senado em 2026 deverão necessariamente incluir o tema em suas agendas, e só há dois caminhos: ou perdem votos aderindo a uma proposta daninha ao interesse público, ou fortalecem a regulação com contribuições firmes e que privilegiem a soberania cultural. Aqueles ativistas que fizeram corpo mole ou tiveram um papel esquálido no debate certamente também perderam sua tração eleitoral;

8. Escancara a natureza arrivista e nociva da extrema-direita. Deputados extremistas, como Kim Kataguiri, correram a se postar ao lado da aprovação imediata do PL do Streaming, com o argumento de que frustraria a esquerda “subsidiada”; com a manifestação, ficou fácil, para quem ainda não tinha informação sobre o tema, perceber que o que tramitava aceleradamente no Congresso não era uma lei progressista, mas algo na mesma linha retrógrada do PL da Dosimetria – feito com a finalidade específica de beneficiar um determinado grupo ou um avatar;

9. Obriga as bancadas progressistas do Congresso Nacional, assim como a cúpula do governo, a tomarem consciência do tamanho do desafio que têm pela frente. Na era da Inteligência Artificial, de desrespeito programático ao direito do autor, do artista e do produtor de cultura, o desafio de regulação dos temas audiovisuais é de importância crucial para o futuro do País;

10. Desnuda a imprensa mais pragmática (ou cínica), que rebola para passar pano para os atos de censura, perseguição ideológica e golpismo dos últimos anos, chancelando os artífices do período agora como personagens de uma regulação conveniente – talvez para atender aos interesses de alguns dos seus parceiros comerciais mais poderosos, em geral com o sustentáculo de instituições financeiras. Sempre é recomendável exigir um comportamento republicano por parte da imprensa.

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