Coube a um grupo amador, Os Comediantes, a proeza de inaugurar o teatro moderno brasileiro, com a encenação de Vestido de Noiva. O clássico texto de Nelson Rodrigues estreou oito décadas atrás, em 28 de dezembro de 1943, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a direção de Ziembinski. Décio de Almeida Prado rasgou elogios à época: “Com intuição admirável, adivinhou e valorizou tudo o que o autor quis dizer”. Quinze anos depois, em São Paulo, uma outra montagem arrancou mais palavras afetuosas do crítico teatral: “Sergio Cardoso conseguiu realizar o milagre em que ninguém acreditava: reapresentar Vestido de Noiva como se Ziembinski e o expressionismo nunca tivessem existido”. Eis o tamanho do desafio de montar esse texto desde então.
O Grupo Oficcina Multimédia desafiou-se a remontar Vestido de Noiva, assentado numa premissa infalível: manter a dramaturgia original rodrigueana. A peça é especialmente conhecida por sua técnica inovadora de trabalhar com três planos de realidade intercalados. Ao mergulhar nas memórias e na mente perturbada da personagem Alaíde, que é atropelada por um carro e se vê entre a vida e a morte, Nelson Rodrigues construiu um texto de pura sofisticação e complexidade. Num fluxo que saltita entre a realidade, a alucinação e a memória, o espectador é convidado a refletir sobre questões profundas da psicologia humana. Temas como morte, desejo, traição e tabus sociais se inserem na obra.
A trama, não-linear, cria uma representação fragmentada da mente da protagonista, mesclando elementos do Teatro do Absurdo e do Expressionismo. Alaíde estava prestes a se casar, mas ao sofrer o grave acidente, já internada num leito hospitalar, passa a transitar entre o plano de suas memórias, de seu próprio passado, e o do sonho, onde residem as emoções e os conflitos internos da protagonista.
Na montagem, em cartaz no CCBB-SP, após uma bem-sucedida temporada em Belo Horizonte, o Grupo Oficcina Multimédia, de Belo Horizonte, com uma trajetória de 46 anos de vida, se vale de um elenco de duas mulheres e quatro homens. Camila Felix, Priscila Natany, Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho e Victor Velloso se revezam nas cenas entre os diferentes personagens, sem distinção de gênero, valendo-se, assim, de duplos e trios para dar conta de representar todos os personagens da peça.
Sempre que se estuda o teatro de Ziembinski, Vestido de Noiva é referenciada por seu caráter inovador. O diretor imprimiu um tom expressionista, como é o próprio texto costurado por Nelson Rodrigues, e recriou, no palco, climas soturnos e alicerçados num eficiente jogo de luzes. Eram elas que guiavam o espectador no zigue-zague proposto por Nelson Rodrigues com os três planos distintos. Na montagem do Grupo Oficcina Multimédia, sob direção, concepção cenográfica e figurino de Ione de Medeiros, o ambiente frio é recriado a partir de cadeiras, mesas e macas hospitalares de aço inox. Vídeos, de tempos em tempos, ajudam a desemaranhar o fio dessa complexa trama, com um narrador que ajuda a contar a história.
Se Vestido de Noiva é o début do teatro moderno brasileiro, A Falecida, é outra dramaturgia de peso do universo rodrigueano. Escrita em 1953, com estreia no mesmo ano (há sete décadas, portanto), ela oferece uma visão única e provocativa das complexidades que permeiam a condição humana. Essas duas obras-primas redefiniram a linguagem teatral, desafiando as convenções estabelecidas, e só por isso já valeria a ida ao teatro.
Vestido de Noiva. Com o Grupo Oficcina Multimédia, no CCBB-SP, de quinta e sexta-feira (às 19 horas), e sábado e domingo (17h). Até 24 de setembro. Ingressos a 30 reais.