Luísa Sonza acena à história da MPB em “Escândalo Íntimo”

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Luísa Sonza num dos vídeos de "Escândalo Íntimo" - foto @rafaelaurbanin

Escândalo Íntimo, o terceiro álbum da cantora e compositora gaúcha Luísa Sonza, de 25 anos, chegou às plataformas de música na noite desta segunda-feira, 29, dando continuidade a uma agressiva estratégia de divulgação, organizada em etapas múltiplas e contínuas, para saciar a crueldade e a sede de sangue das redes sociais.

O momento de lançar Escândalo Íntimo através da celeuma aconteceu com 15 dias de antecedência, quando saiu o single e clipe hiper-sexual “Campo de Morango” (assinado por Luísa com sete parceiros), motivador de críticas, chacotas e gatilhos pelo mau gosto kitsch e pelo excesso de sangue (ou calda de morango) que jorra nos menos de dois minutos do clipe. A quase-vinheta, de menos de dois minutos de duração, embaralha signos sensuais e agressivos, estabelecendo nítidas insinuações de violência sexual.

Era tudo jogo combinado: na sequência de “Campo de Morango”, uma semana antes do lançamento do álbum, saiu “Principalmente Me Sinto Arrasada“, escrita pela artista com sete parceiros e tida como uma letra passada pelo filtro da psicanálise, de uma Luísa mais, digamos, madura (se isso for possível aos 25 anos), como que reagindo às reações indignadas que todo mundo envolvido sabia que “Campo de Morango” ia causar.

A veia psíquica, típica de divas pop anteriores como Britney Spears Amy Winehouse, se esparrama por outras faixas, como o lânguido blues-trap “Surreal“, em duo com o rapper baiano Baco Exu do Blues (de Luísa e dez parceiros, inclusive o também psíquico Baco), a infanta-feminista “A Dona Aranha” (“eu vou comer você, eu vou lamber você/ e quando eu me satisfazer [sic], eu vou largar você”) e as finais “Lança Menina” e “Não Sou Demais”. “Eu acho legal essa coisa de artista/ e sei que não sou nenhuma especialista/ mas se me der um palco pra eu cantar/ desmonto e derrubo todo esse lugar”, canta “Lança Menina”, entre a psicanálise e a ostentação.

A tática de fomentar controvérsias para estar sempre nos “trending topics” não foi inaugurada com “Campo de Morango”. Luísa começou a mirar no terceiro álbum há pouco mais de um ano, quando passou um pito na base de fãs no (então) Twitter, ao perceber que alguns de seus interlocutores não haviam entendido sua citação musical ao verso “estamos indo de volta para casa” em um tweet.

Luísa e a MPB

“Gente, meus fãs, pelo amor de Deus, comecem a estudar música brasileira, artistas brasileiros como Cássia EllerCazuza etc… Se não, vocês não vão me acompanhar nos raciocínios”, ela iniciou o bate-boca. Estava dada a primeira senha: Luísa Sonza estava estudando música brasileira. (A propósito, a citação era a “Por Enquanto”, rock de 1985 de Renato Russo, regravado em 1990 por Cássia Eller.)

Escândalo Íntimo chega nutrido por essa expectativa, e o exemplo mais nítido da tentativa de extravasar conhecimento musical brasileiro acontece na faixa “Luísa Manequim”, assinada pela artista e mais seis parceiros, um deles Abílio Manoel, cantor e compositor nascido em Portugal em 1947 que se tornou um ídolo breve no Brasil nos anos 1970, na cena espontânea que depois veio a se chamar samba-rock.

Emoldurada por cuícas, a voz sampleada de Abílio (que morreu em 2010) abre a canção, em versos de “Luiza Manequim” (1972), um dos dois hits suingados que ele legou à posteridade (o outro é “Pena Verde“, de 1970). A nova “Luísa Manequim” também persegue o suingue, mas por outros (e gostosos) caminhos. Estava na 12ª posição nas 50 mais tocadas do Spotify na quinta-feira, 31, atrás de outras seis canções do álbum de 18 faixas.

Outro momento evidente é “Lança Menina“, que se serve do refrão de “Lança Perfume“, de Rita Lee Roberto de Carvalho, listados entre os dez parceiros de Luísa na nova canção. Ela havia estabelecido uma aproximação com Rita Lee nos últimos tempos de vida da cantora e compositora paulistana, e a inserção vem com as bênçãos póstumas de Rita, e também as de Roberto.

De quebra, Luísa insere em “Lança Menina” a voz da ídola, usando o célebre chiste transformado em meme, de quando Rita discursou seu desgosto por figuras femininas do tipo “namoradinha do Brasil” (“chata paca!“, fulminou). Luísa mira, assim, nas cantoras “boazinhas” tipo Sandy, cada vez mais raras na cena pop nacional (a não ser talvez no sertanejo e no gospel). (A propósito, já existiu um rock chamado “Lança Menina“, lançado em 1981 pela dupla/casal de ex-jovem-guardistas Eduardo Araujo e Silvinha, cujo propósito, oposto ao de Luísa Sonza, era esculhambar o suposto oportunismo pop de Rita Lee.)

Outras citações à música brasileira percorrem Escândalo Íntimo. No interlúdio “Dão Errado“, uma voz distorcida canta o pós-samba-rock-MPB “Não Me Deixe Só” (2002), da matogrossense Vanessa da Mata. A faixa-título, que abre o álbum, é uma vinheta instrumental creditada a dois veteranos do underground, o gaúcho Beto Ruschel (compositor de trilhas para o cinema e co-autor de “A Madrasta”, balada melosa que Roberto Carlos defendeu num festival da canção de 1968) e o paulista interiorano Hareton Salvanini (que lançou alguns discos experimentais nos anos 1970, compôs trilhas para cinema e TV e morreu em 2006). “Escândalo Íntimo“, a vinheta, inicia o álbum homônimo em tons dramáticos, cinematográficos, calculadamente semi-eruditos.

Citações mais ligeiras alcançam Cazuza e Bebel Gilberto (na citação de “preciso dizer que te amo” em “Surreal”), João BoscoAldir Blanc e a conterrânea gaúcha Elis Regina (na menção a uma “beba equilibrista“, em “Carnificina“, um dark pop bem menos sangrento que “Campo de Morango”), novamente Rita Lee (no “te amar por telepatia” de “Iguaria“, romântica apesar de ácida) e Chico Buarque (no “Chico, se tu me quiseres/ sou dessas mulheres de se apaixonar”, em “Chico”, que, no entanto, trata do namorado homônimo de Luísa).

“Diziam pra mim/ que essa moda passou/ que monogamia é papo de doido/ mas pra mim é uma honra/ ser uma cafona pra esse povo”, canta a narradora, já cobrando monogamia do novo namorado. “Chico, se tu me quiseres/ debato política/ tomo o teu partido”, a temática se aprofunda de encontro a Buarque. (Em “Chico”, a propósito, Luísa tem poucos parceiros: apenas quatro.)

Luísa acena, enfim, à brasilidade contemporânea, trazendo a mineira Marina Sena, uma favorita da pop-MPB dos 2020, para cantar “Romance em Cena“, balada melosa e prejudicada pelo desnível de interpretação entre as duas cantoras. Essa tem sete compositores (inclusive Marina), todos brasileiros, em contraste com quase todo o resto do álbum. A leve “Ana Maria“, que elogia Vanessa da Mata e Ana Maria Braga, é duo com a pernambucana Duda Beat (que não consta entre os oito parceiros).

Mas não para aí a Luísa Sonza popular brasileira. A futura edição de luxo de Escândalo Íntimo, com mais seis faixas já anunciadas além das 18 de agora, terminará com “You Don’t Know Me”, supostamente uma cover extraída do mitológico disco Transa (1972), de Caetano Veloso, e já se antecipa que “O Amor Tem Dessas (E é Melhor Assim)” virá com menção ao samba romântico de Alcione. Como de hábito, a versão “deluxe” tentará ampliar nichos de público rumo ao rap, num dueto com KayBlack (“Sagrado Profano”), e ao sertanejo, num trio com Maiara & Maraisa (“Bêbada Favorita”, da longa tradição do sertanejo alcoólico).

Uma outra conexão que a artista estabelece com a história da música, dessa vez não necessariamente a brasileira, reside na forte valorização do formato álbum e na preocupação central com a questão conceitual, desimportantes para a maioria dos artistas de agora. Luísa tem insistido que quer contar uma história com começo, meio e fim em Escândalo Íntimo, cujo imaginário não é original (ponto negativo de grande parte da produção nacional), mas nitidamente decalcado do filme Pearl (2022), de Ti West, estrelado pela atriz inglesa Mia Goth. (A propósito, Mia é neta de uma seminal atriz do cinema marginal brasileiro, a carioca Maria Gladys.)

Mia Goth em "Pearl"
Mia Goth como “Pearl”, matriz para o clipe de “Campo de Morango” e para o álbum recém-lançado

Luísa e o pop industrial

Como nota irônica à guerrinha em prol da música brasileira com os fãs (que certamente saberão melhor destrinchar referências ao pop e ao hyper-pop mundial), Luísa Sonza traz a norte-americana de tradição Disney Demi Lovato para cantar em… português. A balada melodramática “Penhasco2” vem com oito parceiros (inclusive Demi, o produtor funkeiro Papatinho e a cantora ultra-pop Carol Biazin) e deixa um cheirinho de inteligência artificial, no português perfeito proferido pela parceira estadunidense.

Escândalo Íntimo tem sido comprado como trabalho hiper-autoral de Luísa, um feito difícil de alcançar em tempos de música hiper-industrial. Como exposto acima, a maioria das faixas do álbum é assinada por Sonza com mais sete, oito ou dez parceiros, no empilhamento de tijolos musicais pré-moldados que caracteriza o pop industrial atual.

Vários desses parceiros são estrangeiros e compõem a base de operários da indústria musical norte-americana, casos de Roy Lenzo (um dos produtores do álbum Montero, do endiabrado Lil Nas X)Tommy Brown (que já trabalhou com T.I.Justin Bieber Ariana Grande)Cole M.G.N. (Bat for LashesBeckSnoop DoggCharlotte Gainsbourg), Yehonatan Aspril (Demi Lovato) e Njomza Vitia (Ariana Grande).

A automatização mata qualquer voo autoral, o que se evidencia na maior fragilidade do pop industrial atual, reproduzida em Escândalo Íntimo: salvo exceções esparsas, os versos de Luísa (e seu exército) são muitas vezes carentes de poesia, assemelhando-se mais a um paredão de palavras-tijolos coalhadas de lugares-comuns.

Ainda assim, as letras formam o setor mais pessoal e autoral do álbum. “Será que eu sou uma fraude?/ bom, já, já vamos ver/ certeza que eu tô à beira de enlouquecer”, pergunta a narradora da suíte quase épica “Principalmente Me Sinto Arrasada”, entre o desejo de libertação e a autocomiseração. A (não-)humilde “Não Sou Demais” encerra a sessão: “Nem sagaz, nem idiota/ nem simples, nem exótica/ quem odeie, tem quem gosta/ não sou demais, nem pouca bosta”.

“Fraude” não parece ser o caso, mas seja como compositora crua, tijolo por tijolo, seja como cantora ainda amarrada nas interpretações impostadas à moda de sertanejos locais e de divas pop internacionais, Luísa Sonza tem muito a crescer (e muito tempo para fazê-lo). “Reage, maluca, sai da viagem/ tu não é mais um nenê”, procura se auto-convencer em “Principalmente Me Sinto Arrasada”. O hyper-pop não é para os fracos, e mói gente à beça pelo caminho. Traço nada incomum entre divas e divos pop que sobrevivem à máquina, é possível que o quinto ou sexto álbum de Luísa Sonza revele uma compositora afiada.

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