Passageiro, o álbum de estreia do cantor e compositor mineiro Caio, é um produto típico de seu tempo, ainda que o artista não deixe de prestar tributo às normas da velha MPB. A matriz fundadora do trabalho é o samba em várias variáveis, forrado por sons de tambores afro-mineiros, mas numa produção econômica centrada quase totalmente em violão, teclado, programações e samples. A garantia de que o apego ao samba e à MPB não será sinal de tradicionalismo e conservadorismo é dada pelos dois produtores principais de Passageiro, o paulistano Douglas Moda (que assina trabalhos de produção e composição com Iza, Luísa Sonza, Luccas Carlos, Lexa, Vitão e Hodari) e o catarinense/ paranaense Nave (produtor de hip-hop e parceiro de nomes como Marcelo D2, Kamau, Max B.O., Rodrigo Ogi, Karol Conka, Emicida, Criolo, Don L, Rashid, Flora Matos, BK, Bivolt, Ebony…).

Caio, autor solitário de oito das dez canções de Passageiro, canta com voz grave e calma e prioriza promover acasalamentos entre correntes do samba e entre o samba e brasilidades diversas. Misturam-se e encaixam-se aí, sem incompatibilidades, samba-enredo (em “1001 Noites do Samba”), música caipira/sertaneja (“Passageiro”) e moda de viola (“Tô com Tu”), ijexá e samba de roda da Bahia (a mesma e eclética “Passageiro”), samba-canção (“Samba a Sós”), samba-rock (“Vai Dar Zebra”), pagode de mesa (a mesma “Vai Dar Zebra”), forró (“Meu Juízo Final”), bossa nova (“Deixei pra Lá”)…

Assim como os sambas se desenrolam precisos para um tempo sem fronteiras de gêneros musicais, o sincretismo religioso se espalha pelo repertório de Passageiro. O candomblé ergue-se altivo em “1001 Noites do Samba” (“um chocalho/ carnaval/ grito calado da voz ancestral”) e “Despachei Você“, um partido alto cerzido em batuque mineiro na tradição da conterrânea Clara Nunes. Esse último, em particular, soa como um sobrinho-neto nascido da cruza entre o tema de “Banho de Manjericão” (1979), a ambiência de “Feira de Mangaio” (1979) e a melodia de “Tristeza Pé no Chão” (1973) – essa mesma semelhança melódica já havia marcado o samba-rap “Linha de Frente” (2011), de Criolo.

O catolicismo barroco mineiro marca presença no nordestino “Meu Juízo Final” (“se esse é o fim do éden eu não sei lhe dizer/ mas meu juízo final vai ser dançar com você”), neta do “Juízo Final” (1973) de Nelson Cavaquinho. “Olho Mágico” (uma das faixas não-autorais), por fim, aborda o sincretismo explicitamente (“eu já fui cético e até ateu/ tentei ser ético, mas não deu”), entre sons rituais orientais, batuques de candomblé e o encontro com Deus numa encruzilhada.

O ambiente arejado e despojado extravasa para a sexualidade e permite que Caio, absolutamente fora do armário, trate dela com naturalidade, em especial na gostosa moda de viola “Tô com Tu“: “Eu fui feito pra você/ você foi feito para mim/ pega a mala, vem cá me ver/ cabe mais um nesse jardim”. Além da viola nessa faixa, são discretas as entradas de instrumentos identificados com o rock (baixo e bateria em “Vai Dar Zebra”, uma guitarra em “Cair de Pé”) ou com o forró (a sanfona que norteia “Meu Juízo Final“, que remete ao mesmo tempo aos baiões de Luiz Gonzaga e à MPB de seu filho Gonzaguinha).

Visualmente, Caio se coloca entre cigano, beduíno, astro do glam rock, hippie dos anos 1970… – fotos: Tinho Sousa

A faixa que condensa de modo mais completo a modernidade e os múltiplos sincretismos de Passageiro é “Vai Dar Zebra“, um samba-rock (ou sambalanço, como prefere Caio) na sonoridade, mas sob um divertido tema narrativo, típico dos pagodes de mesa e dos partidos altos de fundo de quintal (pense em “No Pagode do Vavá“, 1972, de Paulinho da Viola): “Vai dar zebra na feijuca de família lá na casa da Tereza/ a parentada toda lá se juntou em mais um dia de domingo normal/ a matriarca foi quem convocou a zoeira lá pro seu quintal”.

A zebra se consuma no confronto entre a parafernália afro-sambista domingueira e a atmosfera neopentecostal que reina na família de Tereza: “Mas na casa só tocava louvor e a primaiada puxou um berimbau/ foi quando a discussão começou, se Deus é preto ou branco na real”. O sururu recebe adendos impossíveis nos tempos do feijão da Vicentina do “Pagode do Vavá”: “‘Deus é mulher’, a neta berrou”. Ao final, um entregador de laranjas de feições indígenas soma-se à confusão, subvertendo em festejo e picardia o clamor por igualdade d'”O Canto das Três Raças” (1977) de Clara Nunes.

O mesmo esforço de síntese encharca o samba-enredo de abertura, “1001 Noites do Samba“, a única faixa a beliscar de levinho a brasa política que torrou o Brasil na última década: “Nascido debaixo do pano sem regra ou plano e uma bola no pé/ das mãos de nativos e pretos mordaças, segredo e uma dose de fé/ eu vi o gigante Brasil se pintando de vermelho e azul anil/ nas 1001 noites do samba/ dançando sua dor tamanha”.

Em cerca de meio século, “O Canto das Três Raças” cresceu e se ampliou nas “1001 Noites do Samba” de Caio, abraçando no presente uma infinidade de etnias, sexualidades, crenças, identidades e geografias. Sério e maduro aos 33 anos, Caio retrata o caldeirão cultural dos anos 2020, e ainda encontra tempo e espaço para lembrar a transitoriedade da vida humana e fazer uma elegia singela ao processo de envelhecimento, na também sintética faixa-título de Passageiro.

PUBLICIDADE

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome