A plateia semi-ocupada do paulistano Cine Cortina numa noite chuvosa de terça-feira (18 de abril) parece retratar a desconfiança do público pós-MPB do cantor e compositor pernambucano Johnny Hooker diante de sua decisão de construir um show em respeito à memória da deusa sertaneja goiana Marília Mendonça, morta em 2021, no auge do sucesso popular, aos 26 anos. Johnny, atualmente com 35 anos, dissipa a desconfiança dos presentes já no início da apresentação do espetáculo Clube da Sofrência, exibindo um vídeo de Instragram de 2018 em que Marília acompanha com fervor o canto do artista na gravação de “Alma Sebosa“, uma das sofrências pop-brega-rock que o lançaram em circuito nacional, em 2015, num álbum despudoradamente batizado Eu Vou Fazer uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito! Ali, a jovem cantora e compositora confirmava publicamente a admiração pelo colega, que já havia manifestado em particular.
Marília, que lançou um EP de estreia em 2014, percebeu primeiro a semelhança entre os imaginários do jovem gay de Recife (hoje com 35 anos) influenciado pela música brega paraense e nordestina e a menina sertaneja de humores feministas (ou “femineja”, segundo foi apelidada com intenções pejorativas) de Cristianópolis. No show, Johnny conta que compôs “Escolheu a Pessoa Errada para Humilhar” (2019) pensando num dueto e atribui sua não-concretização à onda de ataques reacionários que Marília sofreu em 2018, ao se afirmar antibolsonarista. “Filha da puta, agora chora, chora”, provoca ele cantando “Escolheu a Pessoa Errada para Humilhar”, um dos vários números do próprio repertório inseridos no tributo-crossover a Marília.
Ao colocar lado a lado as duas modalidades de sofrência, Johnny atesta quão coberta de razão Marília estava ao romper preconceitos de gênero musical e declarar sua admiração para além dos limites da canção sertaneja. “Amante de Aluguel” (2022), dele, dialoga com “Amante Não Tem Lar” (2017), dela, por exemplo. “O preço que eu pago é nunca ser amada de verdade/ ninguém me respeita nessa cidade/ amante não tem lar/ amante nunca vai casar”, formula Marília. “Amante de aluguel/ me prometeu o céu nessa cama de motel/ amante de aluguel/ que você usa e manda embora”, confirma Johnny, autor de dores de cotovelo profundas, mas sempre (auto)críticas e irônicas.
“Se acaso, de madrugada, chegar algum ‘volta para mim’/ hackearam-me/ hackearam-me dizendo ‘ainda te amo’/ é alguém que sabe que eu te perdi”, despista Marília-Johnny, em “Hackearam-Me” (2020). E Johnny-Marília complementa, na mesma clave, com “Você Ainda Pensa em Mim?” (2015): “Agora eu quero ver você me procurar, você se arrepender/ agora eu quero ver você olhar pra trás e humilhar/ já sei por quê/ você ainda pensa em mim quando você fode com ele”.
A interpretação de garganta rasgada de Johnny, das melhores entre os artistas masculinos do Brasil atual, explicita a pitada de deboche que já existia, mais acanhada, nas versões autorais de Marília. É um traço forte e distintivo da obra de Johnny Hooker, que em Clube da Sofrência se reaproxima da parte mais desbragada e destemida do próprio repertório, concentrada com ferina candidez nos anos iniciais e iluminada pela inclusão de “Volta” na trilha sonora do libertário filme Tatuagem (2013), do pernambucano Hilton Lacerda.
No encontro com Marília Mendonça, Johnny Hooker adota uma roupagem brega-rock (cheia de ecos de axé, piseiro, arrocha, MPB etc.) que pode confundir públicos distintos de ambos os lados, mas os efeitos do deslocamento certeiros na mosca em ambos os lados. As canções ainda românticas de Marília ganham novas camadas, como no caso de “Como Faz com Ela” (2016), cujos versos já voyeurísticos ganham tonalidades bissexuais em interpretação masculina: “Eu sei que tá querendo me levar na conversa/ mas se você soubesse o que realmente me interessa/ é saber se você faz amor comigo como faz com ela/ se quando beija morde a boca dela/ fala besteira no ouvido como faz comigo”.
O repertório do Clube da Sofrência privilegia Marília, mas não se atém ao repertório dela (com “Alô Porteiro”, de 2016, e “Eu Sei de Cor”, 2017, e “Troca de Calçada”, 2021) ou ao dele próprio (com “Volta”, de 2013, e “Segunda Chance” e “Você Ainda Pensa?”, 2015). Inserem-se no clube dos corações partidos o hino boêmio “Garçom” (1987), de Reginaldo Rossi, a batida “Evidências” (1989), celebrizada na interpretação de Chitãozinho & Xororó, e uma versão bilíngue impagável de “Wicked Game” (1989), de Chris Isaak.
Ao cantar a lancinante balada dramática “Amor Marginal” (2015), que compôs quando tinha 15 anos, Johnny homenageia o parceiro baixista André Soares, morto de covid-19 aos 35 anos, atribuindo a perda ao ex-presidente fascista que Marília também tentou combater. Segue com a romântica “De Quem É a Culpa?” (2017), de Marília: “Sem você a vida não continua/ não finja que eu não tô falando com você/ ninguém entende o que eu tô passando/ quem é você, que eu não conheço mais?/ me apaixonei pelo que eu inventei de você”. O ciclo se encerra em viés de não-sofrência, com seu hino à liberdade sexual e amorosa, “Flutua” (2017): “Ninguém vai poder querer nos dizer como amar”.
Exercendo tal liberdade em plenitude, Johnny embaralha signos e desanuvia sentidos, surgindo desta vez com visual mais convencionalmente masculino que feminino, enquanto canta os versos de Marília como foram compostos, na primeira pessoa feminina (algo que ele próprio já fez, em “Você Ainda Pensa?” por exemplo). Deixando distante o tempo opressivo em que intérpretes adequavam termos masculinos e femininos para preservar uma heterossexualidade compulsória, Johnny Hooker arremata uma feliz homenagem (ou mulheragem, como prefere classificar a compositora Cilmara Bedaque) com “Supera” (2019), um dos hits máximos de Marília Mendonça: “Ele tá fazendo de tapete o seu coração/ promete pra mim que dessa vez você vai falar não/ de mulher pra mulher, supera”. A superação está em curso, mesmo que a sofrência (des)amorosa ainda conserve sua predominância, seja em gênero feminino, masculino ou neutro.
Não conheço o repertório da Marília Mendonça,mas o texto é muito bom.
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