No dicionário, “Contatado” é quem faz ou recebe contato. O novo filme da peruana Marité Ugás, assim intitulado, acompanha parte da trajetória de Aldemar, o Aldo (Baldomero Cáceres), um homem de meia idade que, após fazer sucesso entre alguns seguidores como profeta, vive no ostracismo, em uma casa na iminência de ser tomada por uma obra, dividida por alguns inquilinos de quem ele cobra aluguel (a bela Rita, interpretada pela venezuelana Samantha Castillo, lhe paga em sexo, quedada pela pose de galã do protagonista), a gangorra emocional com a mãe (Lita Sousa) num asilo, oscilando entre o carinho ao dividirem um cigarro proibido e a zombaria dela com a desimportância do próprio filho (que ela diz às amigas ser um importante professor de uma universidade idem), a construção de uma cabana à beira-mar e um cachorro chamado Órion.
O ex-guru pratica um pequeno golpe ao receber dinheiro de duas turistas que chegam atrasadas para uma visita a uma huaca (lugar sagrado ou divindade, na cultura andina peruana; “só em Lima existem 365 huacas, declaradas como patrimônio cultural da nação”, diz um guia) e, mesmo sem ser exatamente um guia, lhes dá algumas explicações e depois some, para em sequência encarar o trabalho e fazer algum dinheiro, no perrengue em que se encontra.
Em meio a tudo isso, Aldo é descoberto por Gabriel (Miguel Dávalos), que manifesta o desejo de vê-lo voltar a fazer suas pregações e reunir novamente seus seguidores. Aldo caiu no esquecimento após revelar, através de supostos contatos com extraterrestres, tremores de terra na região em que mora. O lugar, no entanto, manteve alguns de seus seguidores realizando as práticas ritualísticas e há até mesmo festas em torno do tema e um museu dedicado a supostos contatos com objetos voadores não identificados.
“Quando comecei a pesquisar cultos de ET no Peru, encontrei seguidores que precisavam de uma nova fé, além de líderes que replicavam antigas estruturas de poder. Alguns desses líderes, com discursos perigosamente messiânicos, agora ocupam cadeiras no congresso peruano. Esta operação é repetida em outros países, onde certos cultos adquiriram poder dentro do sistema político”, comenta a diretora no material de divulgação enviado à imprensa.
Apesar de tratar-se de uma obra de ficção (baseada em fatos reais), é impossível não estabelecer um paralelo com, por exemplo, a realidade brasileira (embora isso ocorra também em outras partes do mundo, com o fortalecimento da extrema-direita no planeta). Se não, vejamos o exemplo da ascensão do neofascista Jair Bolsonaro ao poder e o que representa sua defesa e o voto nele a esta altura do calendário: eleito em 2018 com um discurso moralista e supostamente cristão, quatro anos depois não disse a que veio, deixando como legados a corrupção (e os sigilos para que esta não venha à tona), a destruição (do meio-ambiente), o desmonte (das estruturas públicas de saúde e educação) e a morte (o número de brasileiros vitimados pela covid-19 beira os 700 mil, fora os que morrem de fome ou bala).
“Contatado” nos ajuda a refletir sobre a fragilidade humana, que ao acreditar em algo intangível e descolado da realidade, se apega a seres supremos e entrega a divindades o próprio destino, como se a vida plena e em abundância pregada por Jesus Cristo só pudesse ser experimentada no paraíso após a morte física. O filme de Marité Ugás é um alerta sobre o quanto isso é perigoso. Sobre este perigo, aliás, mais que as luzes de óvnis pelos céus, não faltam alertas acesos – só não vê quem não quer.
Serviço: “Contatado” (“Contactado”, Peru/ Brasil/ Noruega/ Venezuela, 2020, 93 minutos), de Marité Ugás. Estreia nesta quinta-feira (13), nas salas de cinema brasileiras.
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