O quinteto Alabê Ketujazz, o violeiro Roberto Corrêa e o grupo Pife Muderno, de Carlos Malta, apresentam projetos originais na seara da música instrumental. O Alabê Ketujazz funde o saxofone jazzístico com as percussões do candomblé da nação Ketu; Roberto Corrêa promove duelos entre as violas caipiras brasileiras e a viola renascentista de gamba, tocada pelo músico Gustavo Freccia; e Carlos Malta transporta o universo musical de Gilberto Gil para os sons dos pífanos nordestinos.
Kan. De Alabê Ketujazz. Poeira Music/Memória Discos.
Num tempo que consagrou a demolição de quaisquer fronteiras entre gêneros musicais, o quinteto Alabê Ketujazz vem na contramão e trabalha uma fusão original fundamentada em apenas duas células musicais: a percussão do candomblé, liderada pelo francês radicado brasileiro Antoine Olivier, e o jazz livre do saxofonista brasileiro Glaucus Linx, que já trocou com Carlinhos Brown, Elza Soares, gênios da música negra mundial como o estadunidense Isaac Hayes, o malinês Salif Keïta e artistas africanos de Senegal, Nigéria, Argélia, Togo e Chade. Kan, o segundo álbum do quinteto (o primeiro, auto-intitulado, saiu em 2018), condensa, simplifica e explicita experiências conduzidas no passado recente, como a Orkestra Rumpilezz de Letieres Leite, e remoto, de maestros negros como Abigail Moura (fundador da Orquestra Afro-Brasileira), José Prates (influenciador de Jorge Ben em “Mas Que Nada”) e Moacir Santos.
À tradição já extensa do afro-samba e do afro-jazz, acrescenta-se agora de modo mais explícito o candomblé-jazz do Alabê Ketujazz, que, como o nome indica, se fundamenta na religiosidade da nação Ketu. Kan traz participações musicais de ialorixás (Mãe Nildinha de Ogum), ekedys (Nicinha), ogãs (Licinho, Raoul de Ogum, Eli) e alabês (Lazinho, Joilson São Pedro), entre outros. A ritualidade ascende e assombra em faixas como “Ijexá Gnawa”, “Canto para Xangô” e “Vassi para Omolu em Si Bemol”. Disponível a partir do dia 16 de setembro, também em LP, Kan vem ao mundo por obra do selo Memória Discos, que começou como uma pequena loja em São Paulo e promete centrar-se em títulos nunca lançados em vinil de música regional e instrumental, com foco para influências musicais das tradições africanas e indígenas.
Concerto para Vaca & Boi – Composições para Violas Brasileiras e Viola da Gamba. De Roberto Corrêa. Itaú Cultural.
Mineiro radicado em Brasília, o violeiro, compositor, pesquisador e professor Roberto Corrêa já fincou tradição na viola brasileira, e é a ela que ele se dedica em profundidade no álbum Concerto para Vaca & Boi – Composições para Violas Brasileiras e Viola da Gamba. Desta vez, compôs temas dedicados especialmente a cada um dos modelos nacionais do instrumento, a viola repentista, a viola de buriti, a viola caiçara, a viola machete baiana, a viola de cocho e a viola caipira. A essas, acrescenta agora a viola da gamba, instrumento originário da Renascença e do período barroco, que, segundo Corrêa, “lembra o mugido do boi e da vaca e me traz lembranças de um passado saudoso”. No álbum, o músico Gustavo Freccia se encarrega da viola da gamba, enquanto Roberto se alterna entre as brasileiras. Em suas palavras, trata-se do encontro no tempo de um instrumento da corte com instrumentos do povo.
O concerto é formado por 12 peças, que marcam o encontro da viola da gamba com as violas repentista (“Boi Martelo” e “Potiguarã”), de buriti (“Boi de Rosa” e “Boi Babão”), caiçara (“Boi Saudade” e “Vaca Tirana”), machete baiana (“Fado Boi” e “Vaca Chula”), de cocho (“Boi Brabeza” e “Vaca Flor”) e caipira (“Ramiro” e “Vaca Fera”). O projeto Rumos, do Itaú Cultural, lança simultaneamente um livro digital com as partituras e tablaturas das músicas e comentários do autor sobre o instrumento e o trabalho. Em Roberto Corrêa, a viola caipira, interiorana e popular é a erudição em pessoa.
Carlos Malta e Pife Muderno em Gil – Suíte Viramundo e Carlos Malta e Pife Muderno em Gil – Suíte Tempo Rei. De Carlos Malta e Pife Moderno. Deck.
Os sopros do multiinstrumentista carioca Carlos Malta, já acompanharam músicos como Johnny Alf, Antonio Carlos & Jocafi, Maria Creuza, Edu Lobo, Ivan Lins, Caetano Veloso, Guinga, Rosa Passos, Wagner Tiso, Sérgio Ricardo, Gilberto Gil e, durante 12 anos, o mago Hermeto Pascoal, entre dezenas de outros. Em 1994, ele fundou o grupo Pife Muderno, com o qual tem lançado trabalhos autorais, entremeados a álbuns solo em homenagem a Pixinguinha e Elis Regina. Agora, Malta reverencia o universo musical de Gilberto Gil, que tem historicamente creditado a influência da música afro-indígena da Banda de Pífanos de Caruaru, de Pernambuco, na origem do movimento tropicalista.Em dois álbuns quase simultâneos, Suíte Viramundo e Suíte Tempo Rei, Carlos Malta e Pife Moderno transformam a música de Gil em rito ao mesmo tempo ancestral e hiper-moderno, no encontro dos sopros de Malta e da flautista Andrea Ernest Dias com as percussões de Marcos Suzano, Bernardo Aguiar e Durval Pereira (único nordestino entre cariocas). Também integrante do grupo, o baterista Oscar Bolão morreu no início do ano, em decorrência da covid-19.
Na Suíte Viramundo, é exaltado o Gil originário de “Procissão” (1966), “Viramundo”, “Louvação” e “Domingo no Parque” (1967), “Expresso 2222” (1972) – o homenageado participa falando e cantando nessa última e rappeando na faixa que reúne “Procissão”, “Louvação” e “Viramundo”. Os anos 1970 reinam em “Esotérico” (1976), “Sarará Miolo” (1977), “Logunedé” e “Super-Homem – A Canção” (1979), e os 1980 e 1990 são representações em “Extra” (1983), “A Novidade” (1986) e “Opachorô” (1997).
Na Suíte Tempo Rei, Gil volta declamando a letra de “Oriente” (1972) e cantarolando trechos de “Tempo Rei” (1984), e a curva do tempo se espalha entre “Aquele Abraço” (1969), “Back in Bahia” (1972), “Refazendo” (1975), “O Seu Amor” (1976), “Aqui e Agora” (1977), “Se Eu Quiser Falar com Deus” (1981), “Andar com Fé” (1982), “Parabolicamará” (1992) e “Yamandu” (2018), essa última com participação do próprio Yamandu Costa. A gravadora Deck promete mais dois álbuns da série, sob os títulos Suíte Primazia e Suíte Festa (inclusive uma parceria inédita de Gil e Malta, “Xamã Xapiri”), formando assim um songbook instrumental gilbertiano.