Começa nesta quarta-feira, 15 de junho, a 14ª edição do In-Edit Brasil (Festival Internacional do Documentário Musical), com 67 documentários musicais inéditos, entre títulos brasileiros e internacionais. Até 26 de junho, em sessões presenciais (em São Paulo) e virtuais (para todo o Brasil), serão exibidos filmes sobre gêneros musicais tão diversos quanto música erudita e música caipira, rap e heavy metal, rock de várias épocas e manguebit, forró e rock’n’roll, e assim por diante. A variedade de artistas focalizados abrange Thelonious Monk, Tina Turner, Tião Carreiro, Chico Buarque, Belchior, Léa Freire, Sidney Magal, Rick James e Sinéad O’Connor, entre muitos.
A flautista, pianista, compositora e arranjadora paulistana Léa Freire vem ao primeiro plano em A Música Natureza de Léa Freire, dirigido por Lucas Weglinski, num sereno documentário sobre o apagamento da figura feminina na tradição musical brasileira. Pouco difundida no país natal, a artista de 65 anos é celebrada em depoimentos emocionados dos flautistas e educadores estadunidenses Jane Lenoir e Keith Underwood, e o segundo afirma em cena que Léa é compositora no mesmo nível de Tom Jobim, Egberto Gismonti, Milton Nascimento, João Bosco, Pixinguinha e… Wolfgang Amadeus Mozart. A artista em pessoa define o lugar híbrido que ocupa num ecossistema que não a detecta com muita facilidade ou boa vontade: “Para o erudito, sou popular, e para o popular, sou erudita. Para o choro, sou jazz, e para o jazz, sou choro”.
A Música Natureza de Léa Freire descortina uma trajetória de solavancos, iniciada com a rejeição da família à profissão e o abrigo na casa da cantora de bossa negra Alaíde Costa e o trabalho precoce em duo de flauta e violão com o músico paulista Filó Machado, em unidades da cruel Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem). Adiante, lutou para se impor em meio francamente masculino, fosse num novo duo, com o pianista paulistano Guilherme Vergueiro, ou na Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp) Tom Jobim, em ambiente que descreve como de “rejeição”, “dificuldades” e “machismo”. Ao longo de todo o trajeto, a flautista ouviu repetidas vezes a pergunta “foi você mesma que escreveu essa musica?” e conta que nos últimos tempos perdeu a paciência com a expressão de descrédito: “Sou mais mal educada hoje, digo ‘não, quem escreveu foi sua mãe'”.
Em meio a exibições de criações como “Labirinto”, “Copenhagen”, “Nas Cristas do Vento”, “Choro na Chuva”, “Em Trânsito”, “Turbulenta”, “Mamulengo”, “Risco” e “Samba de Mulher” (as duas últimas posteriormente dotadas de letra por Joyce Moreno), por ela mesma e/ou por gente como o padrinho musical Amilton Godoy (do Zimbo Trio), Arismar do Espírito Santo, Silvia Góes, mulheres instrumentistas mais jovens como Joana Queiroz, Érika Ribeiro, Thais Nicodemo, a israelense Hadar Noiberg e a sueca Elsa Nilsson, além de orquestras diversas.
Em 1986, grávida, Léa parou de tocar e passou 11 anos afastada da música (exceto pelo piano, único instrumento que manteve em casa). “Fiquei doente, claro”, constata no filme. O que ela chama de segunda parte de sua vida começou em 1996, com a fundação do selo musical próprio Maritaca, pelo qual lançou seu primeiro álbum, chamado Ninhal. “Vento em Madeira”, sua primeira experiência sinfônica, foi incluída no álbum Cartas Brasileiras, de 2007.
O cineasta Lucas Weglinski conduz com maestria o roteiro, fechando o arco entre o trabalho da adolescente com os ditos “menores infratores” tratados como criminosos na Febem e o presente com as crianças e jovens de 6 a 18 anos do Projeto Guri, vários dos quais depois conseguem promover a ascensão social de suas famílias e correm mundo nas asas da música. Nos trabalhos com Léa Freire, seria justa a troca de nome para Projeto Guria.
PARDINHOS & AFROCAIPIRAS
Embrenhando-se num campo ainda cercado de grossos preconceitos, o média-metragem Sobre Pardinhos & Afrocaipiras, de Daniel Fagundes, documenta as raízes indígenas e afro-brasileiras da música nacional dita caipira, colocando à mesa logo nas primeiras falas o túmulo de violência e genocídio por cima do qual paulistanos e paulistas (e não só eles) pisam distraídos há 522 anos. Partindo da infame estátua que lisonjeia na capital o bandeirante Borba Gato, o filme situa o escritor Monteiro Lobato na formulação racista da figura do “jeca tatu” (indígena e mulato, segundo Daniel Fagundes) e o papel do ator e comediante Mazzaropi na fixação do tipo “caipira”, para então iniciar a investigação sobre os artistas chamados caipiras.
Adentram assim o In-Edit as músicas negras, indígenas, caboclas, “mulatas”, “pretas velhas” etc. de Elpídio dos Santos, João Pacífico, Cascatinha e Inhana, Tião Carreiro e Pardinho, Parafuso, Índio Cachoeira (descendente de Pataxós e ex-integrante da dupla Cacique e Pajé), o Grupo Paranga (formado por dois filhos de Elpídio) e Mestre Genininho, substituídas paulatinamente, ao longo de décadas, pela música sertaneja branca ou embranquecida de agroboys, latifundiários e congêneres.
Entre os entrevistados estão o violeiro e pesquisador Ivan Vilela, o escritor indígena Daniel Munduruku, o músico e historiador Salloma Salomão, o batuqueiro e historiador Antônio F. Junior, o violeiro e pesquisador Ricardo Vignini. “Meu avô não era muito a favor de um casamento entre a minha mãe e um negro”, afirma Alex Marli Carreiro, filha de Tião Carreiro, abordando o cerne da questão. Trata-se de um baú que mal começa a ser destampado no In-Edit, mas de importância ímpar para a construção de qualquer possível identidade brasileira.
TÍTULOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS
A produção brasileira de documentários musicais em longa ou média metragem fornece para o 14º In-Edit opções plurais. Em música sinfônica, A Orquestra das Diretas aborda a participação da Orquestra Sinfônica de Campinas no movimento Diretas Já. Em jazz, A Musical Storyteller se debruça sobre o saxofonista Ivo Perelman. Passar uma Chuva, sobre o violonista paraense-amapaense Nonato Leal, Berimbauzeiro, sobre o percussionista gaúcho Mestre Churrasco, e Música para um Filme, com o pianista Benjamim Taubkin, tematizam a música instrumental. Em forró, Castanheiro do Forró. apresenta o pernambucano Castanheiro. Sidney Magal representa a música dita “brega”, com Me Chama Que Eu Vou.
O rock comparece com Lenha, Brasa e Bronca, sobre a garage band mato-grossense dos anos 1960 Jacildo e Seus Rapazes, Guitarrista de Rock, sobre Luís Carlini (do Tutti Frutti, banda de apoio de Rita Lee entre 1974 e 1978), A Face do Mao, sobre o líder dos Garotos Podres, Sinal de Alerta, sobre a gaúcha Lory F, Queremo Róque!, sobre a banda catarinense Repolho, e Um Disco Normal, sobre a banda grindcore Test. Geruzinho contempla a música afro-brasileira, com o bloco afro sergipano Descidão dos Quilombolas. O hip-hop aparece em Alan, sobre o precursor baiano Alan do Rap, que invadia palcos de outros artistas para divulgar sua obra, e Gueto Flow, Preto Show, sobre o rapper paraense Pelé do Manifesto. Dos quadros da MPB vêm Apenas um Coração Selvagem, sobre o trovador cearense Belchior, e Cafi, em honra ao fotógrafo da MPB e autor de capas antológicas como a do álbum Clube da Esquina (1972), e As Canções de Amor de uma Bixa Velha, com cantor underground Márcio Januário.
Entre os temas mais amplos abordados pelos documentaristas, estão a música instrumental gaúcha (Bandoneando – A Busca pelos Bandoneonistas Negros da Campanha Gaúcha), a musicalidade afro-brasileira (Tambores da Diáspora), a música da zona da mata pernambucana (Da Boca da Noite à Barra do Dia), o hip-hop (RAP – Revolução Através da Palavra), a música pop pernambucana dos anos 1990 (Manguebit), o tecnobrega (Hoje Estamos Aqui – Breve História de um Sound System Amazônico) e o universo dos karaokês (Endless Love).
Sessões especiais do 14º In-Edit irão recuperar para a tela grande alguns dos filmes que se destacaram nas edições apenas virtuais de 2020 e 2021: Vivo Sonhando, de Rafael Veríssimo, sobre o gênio do violão Garoto (1915-1955); Dom Salvador & Abolition, de Artur Ratton e Lilka Hara, sobre o pianista paulista radicado nos Estados Unidos Dom Salvador; Secos & Molhados, de Otávio Juliano, sobre o grupo fundador da androginia popular brasileira; e Aquilo Que Eu Nunca Perdi, de Marina Thomé, sobre a vanguardista sul-matogrossense Alzira E.
O In-Edit reservou espaço particular neste ano para o heavy metal, com documentários em torno de Ronnie James Dio, Kiss (por Tadeu Jungle) e a banda de “saravá metal” Gangrena Gasosa, além de títulos panorâmicos sobre o heavy metal no Brasil, nos Estados Unidos, na Finlândia, na Noruega, no Irã e no Afeganistão.
Da seara internacional sai o filme de abertura, Nothing Compares, de Kathryn Ferguson, sobre a rebelde cantora e compositora irlandesa Sinéad O’Connor, às 20h30 desta quarta-feira. Em diálogo com o Brasil, o filme Meu Caro Amigo Chico, da diretora portuguesa Joana Barra Vaz, parte da canção brasileira “Tanto Mar” (1974), de Chico Buarque, para abordar as sementes deixadas pela Revolução dos Cravos para a sociedade contemporânea de Portugal.
A cornucópia de estilos mundiais contempla os norte-americanos Thelonious Monk, Tina Turner, Peter Grudzien (autor do primeiro álbum country gay da história), Rick James, Lydia Lunch, Flaming Lips e Dinosaur Jr, os ingleses Delia Derbyshire (pioneira compositora eletr-acústica), King Crimson, Cymande, Throbbing Gristle e Chumbawamba, a cabo-verdiana Cesaria Evora, as australianas Wanita e Courtney Barnett, o trio pop norueguês A-Ha e a banda punk portuguesa Peste & Sida, entre outros.
Num exemplo extremo dos obstáculos atravessados por Léa Freire e incontáveis mulheres na história da música, o In-Edit apresenta o documentário No Ordinary Man, de Aisling Chin-Yee e Chase Joy, que conta a vida do pianista estadunidense de jazz Billy Tipton, cuja verdadeira identidade, feminina, só foi revelada no dia de sua morte, em 1989. Foi a maneira encontrada por Dorothy Tipton para integrar o circuito jazzístico estadunidense.
14º In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical. De 15 a 26 de junho, nos cinemas paulistanos e em sessões virtuais para o Brasil todo. Leia a programação completa aqui.