Muito se falou sobre o processo criativo dos artistas durante a pandemia. As dúvidas pairavam sobre o que resultaria da cultura quando a arte do encontro permanecesse suspensa. Num Brasil com um governo que é inimigo da classe artística, e onde produtores culturais chegaram a passar fome, o futuro parecia tenebroso. A tão esperada retomada está acontecendo, e a peça A Lista, com Lilia Cabral e sua filha Giulia Bertolli, surge como uma primeira candidata para se tornar a crônica desse período.
No palco do Teatro Renaissance, A Lista ganha sua versão completa, depois de algumas “estreias” nos formatos online e presencial, porém apenas com fragmentos do texto de Gustavo Pinheiro. Nos anos de 2020 e 2021, Lilia e sua filha encenaram a peça para arrecadar dinheiro que pudesse ajudar financeiramente os trabalhadores do teatro. Outras montagens tiveram o mesmo objetivo nos períodos mais críticos da pandemia.
A peça A Lista é uma comédia dramática, pendendo muito mais para o primeiro gênero. São poucas, senão fugidias, as cenas dramáticas. Mas isso não tira a força do espetáculo, que emociona pelo riso, pela nostalgia e por aproximar assuntos tão próximos da realidade que todos vivenciamos durante a pandemia. Embora se passe no Rio de Janeiro, e particularmente em Copacabana, muito bem referenciada na cenografia de J.C. Serroni, a montagem consegue superar o carioquês da narrativa.
Situações do cotidiano emergem na relação que se estabelece entre Amanda (Giulia Bertolli) e a aposentada Laurita (Lilia Cabral). A primeira se oferece a ajudar a segunda nas compras do supermercado, fato que ocorreu em todo o mundo, demonstrando que solidariedade e empatia fizeram diferença. O que se desenrola a partir dessa conexão é a falta de conexão entre ambas, mas que algo maior as impede de uma se livrar da outra.
A peça se inicia com Laurita ouvindo uma desinformação de um áudio do Whatsapp do grupo de amigas. Essa cena já caracteriza quem é a aposentada, ainda que trabalhando na chave do estereótipo. O humor também se vale do estereótipo. O que poderia desbancar para um texto tolo se torna, na verdade, uma bem-humorada tentativa de compreender o outro, mesmo aquele a que nem damos “bom dia” no elevador. A Lista mostra duas personagens realmente interessadas em ouvir o outro, algo muito em falta em tempos de surdez social.
Lilia Cabral, celebrada atriz global, mostra uma faceta para o humor que chega a ser surpreendente. Ela se impõe no palco, diante de sua filha, e é difícil não pensar no contraste das duas atuações. Generosa, ela faz escada para que Giulia cresça na construção de sua personagem, uma jovem cantora de ópera que também tem seus dramas particulares – Amanda nunca recebeu apoio da família, por exemplo.
A Lista se passa em três momentos distintos, no início da pandemia, num pequeno recorte memorial da protagonista e num futuro não muito distante, mas à frente do atual – quando estaremos contando dezenas de doses de vacinas contra a Covid-19. Estar vivo e poder voltar ao teatro presencial é algo a ser celebrado, assim como pensar nas várias lições, algumas delas bastante dolorosas, que tivemos durante toda essa pandemia. Lilia e sua filha nos faz lembrar de muitas delas, arrancando de nós as tão reprimidas ou aguardadas risadas.