Para entrar na peça A Fuzarca dos Descalços, o espectador é convidado a tirar e entregar os sapatos para o elenco. O conforto de poder pisar no chão com um propé entregue pela produção é uma mera ilusão. Começa o espetáculo e essa sensação se tornará um desconforto, amargo, mas necessário. Os calçados entregues se amontoam no palco para representar uma sociedade que exclui corpos marginalizados, extirpando-os como baratas.
Atsu (Eder dos Anjos) e Baakir (Salloma Salomão) são dois negros que vivem na rua. Diante deles, há uma muralha que separa o que eles imaginam ser um outro lado mais convidativo e interessante. Só que desconhecem por completo como se vive lá, porque a eles só lhes restam sobreviver como podem do lado de cá. Resistir, existir e coexistir são palavras que surgem, não vocalmente, mas expressas por uma narrativa que promete a tão sonhada liberdade a um jovem sapateiro (Atsu) e um velho alfaiate e líder de revoltas negras (Baakir). O racismo permeia a narrativa, mas abordado a partir do olhar afetuoso e empático de dois personagens que nos transporta para um lado apartado da sociedade.
Como em Esperando Godot, de Samuel Beckett, A Fuzarca dos Descalços força-nos a refletir por que seus personagens esperam por algo que não vai chegar. A referência à peça clássica de Beckett não é gratuita. A diretora Aysha Nascimento assume que a montagem é uma “adaptação não-obediente” de Esperando Godot, com a peculiar distinção: a população negra não pode se dar ao luxo de esperar. Se no texto original, Vladimir e Estragon concordam ao final em partir, mas não conseguem se mover, Atsu e Baakir não têm para onde ir. O lugar de pés descalços no mundo já foi delimitado.
Com dramaturgia de Victor Nóvoa e concepção geral de Eder dos Anjos, o espetáculo em cartaz no Sesc Belenzinho até 13 de março ganha com a presença dos músicos Ito Alves e Juh Vieira, que tocam ao vivo e fazem as marcações dos atos. O grupo responsável pela montagem é o Coletivo dos Anjos, criado em 2014 na cidade de Jandira, na Grande São Paulo. O trabalho tem sido o de desenvolver montagens a partir de textos clássicos de autores como Tchekhov (A Gaivota), Graciliano Ramos (Ser Tão Seco) e Bertold Brecht (Sobre Meninos e Pipas).