Os quadrinhos de Gilbert Hernandez são um pouco como os filmes de Pedro Almodóvar ou as músicas de Chico Buarque: inverteram um ponto de vista tradicional ao aceitaram um homem se arriscando a falar do imaginário feminino. De mulheres crianças, adolescentes, adultas, sozinhas, casadas, mães, avós, independentes ou dependentes. E, o mais importante, num contexto de crônicas do underground, pontilhadas do condimento das HQs underground.
O fato de Hernandez fazer isso com uma espantosa taxa de acerto é que tornou suas histórias um culto absoluto desde quando estourou (ao lado dos irmãos Jaime e Mario) com Love and Rockets, no começo dos anos 1980. As Crônicas de Palomar de Hernandez, divididas em volumes de fôlego, podem ser acompanhadas nos álbuns, já lançados, Sopa de Lágrimas, Diastrofismo Humano e Além de Palomar. Juntos, esses livros formam um monumental trabalho de ficção gráfica, algo que fez o papa dos quadrinhos, Robert Crumb, declarar: “Nunca vi nada assim nos quadrinhos, talvez só na literatura. Em quadrinhos, nunca vi nada que chegasse perto”.
É nessa sequência que chega Luba e sua Família, com tradução de Cris Siqueira, originalmente publicado em 2014 nos Estados Unidos. Todas as histórias de Hernandez têm uma cronologia, mas também podem ser lidas separadamente. Toques de realismo fantástico, além da teratologia circense típica dos bastidores de um programa de TV da esfera de um Xou da Xuxa, apimentam a narrativa, que torna esse livro um ponto de inflexão na história toda.
Em Luba e sua Família, prevalece o ponto de vista de uma personagem, Vênus, uma menina pré-adolescente de origem hispânica que se adapta com a mãe em uma cidade norte-americana. As ansiedades, interpretações do mundo, amores, neuras, obsessões e alegrias de uma menina fazendo seu rito de passagem são tratados por Hernandez como uma brincadeira de driblar expectativas, sejam as da psicanálise ou do xamanismo. O toque de realismo fantástico, com aparições como as do bebê-fantasma da história, fez o autor ser aproximado do universo de García Márquez.
Oriundo de Oxnard, Califórnia, Hernandez examina o componente de acaso e de automatismo da vida cotidiana na fixação de certos princípios morais, éticos, sexuais, eróticos. A história, pontuada pela presença de mulheres adultas fortes e liberadas (as irmãs Petra, Luba e Fritz), é usada para desregular a régua social (e mesmo espiritual) que direciona os destinos pela via única da culpa ou do remorso. Luba é uma espécie de Scarlett O’Hara da globalização, nos diz Hernandez. Os homens, em sua maior parte, têm uma percepção rasteira do jogo em que estão envolvidos, uma alienação orgânica. As aventuras de Vênus, a partir dessa história, acabaram rendendo alguns livros infantis, e é realmente interessante ver como a personagem se reveste dos estratagemas da infância para criar um escudo defletor contra as inevitabilidades da “maturidade”.