Cena da história em quadrinhos "Estopim", do ilustrador e quadrinista paulistano Diox

Uma pergunta: a partir de janeiro de 2020, quando começou a escalada da pandemia de Covid-19 no Brasil e no mundo, você saberia dizer como a sua empregada doméstica, a sua recepcionista, a sua diarista, o seu porteiro, a enfermeira do hospital chegavam até sua casa, seu edifício, sua empresa ou ao posto de saúde para trabalhar arriscando as próprias vidas para preservar a sua?

Uma história em quadrinhos vai responder não apenas a essa pergunta que ninguém faz, mas também como a grande maioria da população brasileira atravessou o período lutando contra um Estado omisso, instituições viciadas em preconceito, racismo estrutural, blecaute econômico e educacional, irresponsabilidade religiosa, confrontos políticos e familiares. Trata-se de Estopim, do quadrinista e ilustrador paulistano Diox. A história acompanha a rotina de uma família de pessoas negras da periferia de São Paulo – uma viúva evangélica e seus três filhos, Dani, Tiago e Jonatan, um motoqueiro delivery.

Diox, também negro, estreou nos quadrinhos no ano passado com O fim da noite, da Darkside Books, em parceria com o roteirista Rafael Calça. Ele centra sua história não no desamparo, mas na conscientização progressiva, inexorável, na tomada de posição de pessoas simples tornadas vítimas potenciais pelo sistema de prensagem de preconceitos da sociedade brasileira. Isso talvez explique o título da obra, Estopim, a descrição de situação-limite em que, a partir dali, não é mais possível ver o mundo da mesma forma, algo vai mudar decisivamente.

Estopim mostra não apenas a realidade de uma família negra modesta, mas também como se move a formulação dos extremismos políticos e sociais, quais são os mecanismos que os põem em marcha – dos programas policiais de TV às unanimidades de grupo, do sermão do pastor à negação do próprio corpo e lugar. Nisso, Diox se supera: conta a história sem qualquer panfletarismo, com a inserção gradual dos elementos que compõem as unanimidades metropolitanas, e que começam na própria estrutura de serviços urbanos, no metrô, nos ônibus, nas batidas policiais, na compressão das oportunidades.

Além de contar magistralmente sua história, a outra grande qualidade do quadrinista é estética. São Paulo emerge de sua HQ com todas as sutilezas de sua urbanidade caótica, de igrejas em garagens, snookers ensebados, varais improvisados nas cercas de setas metálicas, potência econômica e solidão institucional. O gibi foi editado a partir da seleção em um edital do PROAC (Programa de Ação Cultural do governo do Estado de São Paulo).

ESTOPIM. Do cartunista Diox. Veneta Editora, 184 páginas, 80 reais

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