Cena de
Cena de "Ponto de Virada", documentário sobre o 11 de Setembro - Foto: Netflix

Em 18 de dezembro de 2001, a bandeira dos Estados Unidos tremulou em Kandahar, no Afeganistão. As televisões mostravam homens fazendo fila para se barbear nas ruas de Cabul. A música voltou a tocar nas ruas e as mulheres circulavam sem as burcas cobrindo seus rostos. É como se janelas tivessem sido abertas para o sol entrar, resumiu Douglas Lute, um militar líder de políticas externas para o país asiático. Mas a verdade é que não havia um plano para o que fazer com o Afeganistão, após a queda do Talibã. Os norte-americanos, em sua “guerra contra o terror”, só queriam que aquele país, no futuro, não pudesse mais servir de base para um ataque como o que havia ocorrido, meses antes, no 11 de Setembro. Vinte anos depois, rever esses fatos é mais do que uma aula de história. Assentados no tempo, os atentados contra as Torres Gêmeas de Nova York e ao Pentágono, em Washington, ainda merecem ser decifrados e esclarecidos.

Chama a atenção a quantidade de produções cinematográficas recém-lançadas sobre o 11 de Setembro e suas consequências. Quatro deles já estão disponíveis nos serviços de streaming no Brasil. Outros, como a série NYC Epicenters 9/11-2021½, de Spike Lee, e 9/11 One Day in America, exibido pela National Geographic e Hulu, ainda devem chegar para o público brasileiro. A retirada das tropas americanas do Afeganistão, promovida em agosto passado pelo presidente Joe Biden, revelou a sucessão de erros na campanha militar ao longo de duas décadas e reforça a relevância em ver essas obras em um mundo completamente transformado desde então.

Conferência remota de George Bush com equipe durante o 11 de Setembro
Conferência remota de George Bush com equipe durante o 11 de Setembro – Foto: BBC Pictures

O documentário 11 de Setembro: No Gabinete de Crise do Presidente é uma coprodução da BBC com a Apple, dirigida por Adam Wishart. Minuto a minuto, a obra reconta essa história por meio de um inédito acesso aos principais tomadores de decisão. Estão presentes no documentário, narrado pelo ator Jeff Daniels e exibido pela Apple TV, o presidente George W. Bush, o vice-presidente Dick Cheney, Condoleezza Rice (conselheira de Segurança Nacional), Colin Powell (secretário de Estado), Andy Card (chefe de gabinete da Casa Branca), Dan Bartlett (diretor de comunicações), Mike Morrell (agente da CIA), Karl Rove (conselheiro sênior de Bush) e Mary Matalin (conselheira de Cheney), entre outros.

A obra pode ser encarada como uma visão “chapa branca”, oficialesca, sobre como o primeiro escalão dos Estados Unidos se inteirava do que acontecia em terra. A bordo do Air Force One, o avião presidencial, Bush aparece admitindo que num curto intervalo de tempo achava que uma pequena aeronave havia colidido, por acidente, contra uma das torres do World Trade Center, depois percebera que era mesmo um atentado e, por fim, entendia que o país mergulhava numa “guerra ao terror”. A didática narrativa, exposta só agora, ajuda a dar a versão de Bush para os famosos sete longos minutos em que permaneceu em silêncio, dentro de uma sala de aula, após saber dos ataques. Em Fahrenheit 9/11 (2004), o diretor Michael Moore explora esse episódio para tripudiar da inação do presidente.

Mas o documentário da BBC e da Apple vai além, mostrando informações de bastidores que aprofundam o que se sabia até então sobre os atentados. Há naquele 11 de Setembro, que mais que um dia poderia ser chamado de uma era, histórias reais e sinceras de fontes primárias de informações, detentoras de poder, e torna cristalino como as reações humanas se alteram em tempo real durante uma crise. Sob um céu vigiado, com pouquíssimas aeronaves sobrevoando os Estados Unidos, o Air Force One era incapaz de sintonizar decentemente uma TV para saber o que estava acontecendo. A única saída, em 2001, era que o avião presidencial sobrevoasse baixo as cidades para captar algum sinal de televisão.

Cena de "Ponto de Virada", série sobre o 11 de Setembro
Tropas americanas durante a invasão do Afeganistão, reação ao ataque de 11 de Setembro, nos Estados Unidos – Foto: Netflix

Há centenas de filmes, livros e programas de televisão sobre o 11 de Setembro e muitos outros ainda virão nos próximos anos. As produções recém-lançadas agora reforçam a ideia, cada vez mais nítida, de que erros sucessivos foram cometidos como reação aos ataques sofridos. Ponto de Virada, 11/9, a Guerra Contra o Terror, em exibição na Netflix, é uma série em cinco episódios que avança sobre esse debate. Deixa evidente como os Estados Unidos rapidamente identificaram membros da Al-Qaeda como participantes dos sequestros de aviões que atingiram o World Trade Center e o Pentágono. E como o governo Bush pode impor sua doutrina de rotular como inimigo todo país que abrigasse os terroristas.

A série mostra que a reação foi rápida, autorizada por um Congresso acuado, mas que o alvo, Osama Bin Laden, conseguiu escapar por uma estratégia equivocada de Bush. Tropas do Exército americano invadiram o Afeganistão, ainda em 2001, e encurralaram o Talibã, mas permitiram que Bin Laden se refugiasse nas montanhas, em vez de caçá-lo. Pouco tempo depois, em 2003, os Estados Unidos inventaram a fábula das armas de destruição em massa no Iraque e iniciaram uma guerra contra Saddam Hussein, que teve como saldo 4,4 mil americanos e 200 mil iraquianos mortos. O pretexto era que Saddam era aliado de Bin Laden. 

Os rastros de destruição deixados no Afeganistão foram igualmente trágicos. Mais de 2 trilhões de dólares foram gastos nessa guerra, que matou 2.400 soldados norte-americanos e 150 mil afegãos e foi encerrada só com Joe Biden, depois das administrações de Barack Obama e Donald Trump. A deputada californiana Barbara Lee afirma que os Estados Unidos já empregaram a autorização irrestrita para o uso da força militar mais de 40 vezes em 19 países, sem que eles tivessem relação direta com o 11 de Setembro. A congressista foi a única a se opor a essa autorização de guerra e foi ameaçada de morte por tentar evitar a escalada da violência mundial, empreendida pelos americanos.

Ponto de Virada, 11/9, a Guerra Contra o Terror evidencia que líderes afegãos alertavam os próprios soldados do Talibã de que seriam esmagados pelas forças americanas. A série retrocede à invasão do Afeganistão pelo exército da então União Soviética para mostrar como os Talibãs receberam forte apoio dos EUA. O líder mujahidin Gulbuddin Hekmatyar questiona como os afegãos antes eram tidos, pelos norte-americanos, como “combatentes da liberdade” para se tornarem “inimigos e terroristas” após o 11 de Setembro. O documentário afirma que essa mudança de posição minou a guerra ao terrorismo e fortaleceu a retórica de Bin Laden de que os Estados Unidos imprimiam uma guerra contra o Islã. Se antes havia a Al-Qaeda, hoje são mais quatro grupos terroristas identificados. A série também mostra como a guerra no Oriente Médio resultou nas graves violações aos direitos humanos nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo, alimentando o ódio contra o povo norte-americano. 

Outra produção que reaviva o 11 de Setembro é 11/9: A Vida sob Ataque, na Globoplay. O documentário de 90 minutos, da rede britânica ITV, mostra inéditas cenas de como famílias novaiorquinas vivenciaram os ataques às Torres Gêmeas. A maioria dos personagens estava a poucas quadras dos alvos dos terroristas, e muita desinformação circulou entre eles. Um jovem que filmava tudo afirma, categórico, que ouviu uma bomba explodir de dentro do edifício, e negava quem dizia que havia sido um avião. Uma outra jovem assiste, de sua janela em um prédio vizinho, as terríveis cenas dos ataques como se assistisse um programa de televisão até que se desespera ao ver uma das torres colapsar e uma gigantesca nuvem de destroços tomar conta das ruas. 

O documentário de Nigel Levy trabalha com imagens feitas por pessoas anônimas, que estavam vendo como tudo acontecia. Também há cenas gravadas por socorristas, centros de comando militar, controle de tráfego aéreo, chamadas telefônicas privadas e comerciais. Anthony e Kyra Paris, com um bebê de colo, Daschiel, estavam a seis blocos do Ground Zero, e não sabiam que decisão tomar. “Há pessoas correndo nas ruas, há pó por toda parte. Se nós sairmos com Daschiel, ele ficará coberto com pó”, relata Anthony. “Nós não vamos sair para fora”, retruca Kyra. São cenas, muitas delas inéditas, que mostram uma perspectiva realista do 11 de Setembro.

Cena de Quanto Vale?, produção sobre o 11 de Setembro
O drama “Quanto Vale?” é mais uma produção sobre o 11 de SetembroFoto: Monika Lek/Netflix

Também para marcar a efeméride de 20 anos a Netflix lançou Quanto Vale?, filme de ficção baseado em fatos reais. O drama conta a história do advogado Kenneth Feinberg (Michael Keaton), que é constituído pelo Congresso americano para liderar o Fundo de Compensação às Vítimas de 11 de Setembro. Ele e a sócia Camille Biros (Amy Ryan) têm de definir um valor para indenizar as famílias, mas descobrem, muito rapidamente, que a tragédia interrompeu vidas muito desiguais, economicamente falando: de um presidente de uma empresa, que recebia em bônus e não salários, a faxineiros. Como lidar com os vários interesses e de forma tão célere como se pretendia?: ou se fechava um acordo coletivo ou se temia pelo colapso da maior economia do mundo. Ken Feinberg, um advogado mais afeito às letras frias das leis, descobre em Charles Wolf (Stanley Tucci), cuja mulher trabalhava no World Trade Center, um contraponto para sua visão de mundo. E é nesse embate com Wolf que ele descobre o sentido da empatia e da compaixão.

Em tempos de streaming, maratonar por tantas obras cinematográficas sobre o mesmo tema é uma jornada por vezes dolorosa, mesmo duas décadas depois. A narrativa da “guerra ao terror” prevalece até os dias de hoje, sem que nenhuma alternativa tenha surgido para sinalizar um mundo menos belicoso. É como se a memória dos quase 3 mil mortos do World Trade Center nunca pudesse ser respeitada.

11 de Setembro: No Gabinete de Crise do Presidente. Na Apple TV, Estados Unidos, 2021, 90 min.
Ponto de Virada, 11/9, a Guerra Contra o Terror. Na Netflix, Estados Unidos, 2021, em cinco episódios.
11/9: A Vida sob Ataque. Na Globoplay, Estados Unidos, 2020, 85 min.
Quanto Vale? Na Netflix, Estados Unidos, 2021, 118 min.
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