A determinação subterrânea da Ancine de fazer triagem ideológica e promover censura econômica a projetos desconfortáveis ao bolsonarismo chegou até os Andes. Produto de um acordo de coprodução internacional entre o Brasil e o Chile, o filme “Penal Cordillera”, que reúne as produtoras Multiverso Filmes (brasileira) e a Cinestación Producciones (chilena), foi colocado na geladeira pela Ancine, mesmo qualificado em concurso internacional em 2019, e prejudicou a política de cooperações internacionais na área audiovisual do país. O Chile, por exemplo, nunca mais fez um edital com o Brasil desde o episódio. A temática do filme chama a atenção: trata de um célebre episódio da política chilena, quando cinco dos torturadores mais cruéis da ditadura do general Augusto Pinochet fizeram uma greve para não serem removidos de uma cadeia cheia de privilégios e luxos na Cordilheira dos Andes para outra comum. O roteiro é de Felipe Carmona.
A direção da Ancine, contaminada pela paranoia governista, farejou esquerdismo no tema, que de resto é um episódio histórico. A agência brasileira deveria financiar 20% do custo de Penal Cordillera (500 mil reais) – o Chile cumpriu sua parte no acordo e financiou os outros 80% (2 milhões de reais). Já o Brasil adotou a estratégia que está se tornando mais comum nesses casos – o boicote silencioso e o labirinto burocrático – e só autorizou a publicação do resultado 11 meses após a escolha feita pela Comissão Binacional e a publicação pelo parceiro chileno.
A atitude da Ancine causou estranhamento dentro da agência. Em dezembro de 2019, a assessoria internacional da instituição questionou o então secretário de Políticas de Financiamento da Ancine (SEF), Vinicius Clay, indagando sobre a não-publicação do edital Chile-Brasil 2018, pois a Comissão Binacional de Seleção já havia concluído a escolha em setembro de 2019. A ata da seleção já tinha sido enviada à SEF três meses antes, o Chile já tinha publicado o resultado em 1º de outubro e nada da publicação da Ancine (não havia razão, porque, mesmo com paralisação da liberação de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, tratava-se de uma medida técnica). “Lamentablemente, mañana no podremos publicar el resultado del lado brasileño, debido a la ausencia de un consentimiento superior”, afirmava comunicação dos produtores chilenos de Penal Cordillera.
O assessor internacional da Ancine, que era então o diplomata Adam Jayme Muniz, questionou o atraso na publicação do resultado em uma comunicação oficial. “Permito-me sublinhar que o descompasso entre a divulgação dos resultados entre Chile e Brasil prejudica a parceria estabelecida entre os dois países no âmbito audiovisual e afeta os compromissos assumidos no Protocolo de Cooperação”, escreveu. “Além de cumprir com as exigências legais, avalio que a divulgação deverá ser bem recebida pelo setor regulado”, concluiu o diplomata. Não recebeu resposta.
Ainda em 2019, o diplomata Muniz deixou a Ancine e voltou para o Itamaraty. Em fevereiro de 2020, Vinicius Clay, que era então o secretário de Financiamento, foi nomeado (num vácuo de interinidade entre a saída do goebbelsiano Roberto Alvim e a entrada de Regina Duarte, a breve) para a vaga de diretor substituto da agência no lugar que fora de Debora Ivanov. Em 8 de julho de 2021, indicado por Jair Bolsonaro, ganhou a vaga em definitivo e ficará até 2026 como diretor da agência.
O sucessor de Vinicius Clay, Rodrigo Camargo, assumiu em agosto de 2020 e atribuiu o atraso no financiamento ao filme Penal Cordillera a questões relativas aos problemas de desembolso do Fundo Setorial do Audiovisual, decorrência de uma presumível determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) – a ação do TCU virou muleta para a Ancine paralisar tudo que pudesse. Até agora, ainda não foi registrado o desembolso para o projeto de cooperação Brasil-Chile. A última movimentação desse processo se deu em maio.