Em cartaz desde o dia 21 de novembro, o documentário Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, apresenta para o público de cinema a cantora, compositora, atriz e interventora cultural paulistana Linn da Quebrada. Nome de frente do movimento de artistas transexuais que têm desafiado no dia a dia o ultraconservadorismo em cartaz no Brasil pós-derrubada de Dilma Rousseff, Lina (ex-Lino) Pereira é uma usina de conceitos desafiadores e de reflexões profundas, que tem podido expor através da persona artística Linda e Quebrada, em forma de música, cinema, série televisiva, programa de entrevistas, videoclipe…
Durante as gravações do clipe “Oração”, em agosto, Linn e um grupo de artistas trans e travestis tiveram de enfrentar quatro horas de negociação com os homens da lei, dispostos a impedir a locação do trabalho numa igreja abandonada no bairro da Brasilândia, na zona norte paulistana. Ela negociou até obter a liberação. “Os homens da polícia vieram tentar me prender. Prefiro não ser presa e continuar nessa disputa”, diz. Em Bixa Travesty, os diretores traduzem Linn/Lina em sua inteireza, inclusive com suas fragilidades – por exemplo, o câncer testicular que cortou sua vida em duas e a fez passar a escrever canções, raps, funks etc.
Na entrevista abaixo, Linn da Quebrada demonstra cabalmente por que sua presença na Rede Globo, no Canal Brasil, em jornais, em revistas ou neste FAROFAFÁ ainda não significa representatividade, mas apenas exceção. “Não tenho patrocinadores”, afirma, expondo apenas uma de muitas dificuldades enfrentadas diariamente por quem trilha o caminho mais difícil em tempos especialmente difíceis.
Pedro Alexandre Sanches: Quais são as novidades, Linn da Quebrada?
Linn da Quebrada: As novidades? Tem novidades todos os dias, parece. Mas acho que a novidade principal agora é a minha música “Oração”. Uma música ou uma oração? Não sei ainda. Eu canto com o mesmo intuito que oro. Ponho fé em tudo que eu canto, em tudo que eu escrevo.
PAS: Você costuma orar também?
LQ: Todas as minhas músicas são uma espécie de feitiço, de canção, de oração, de maldição. Elas trazem isso em si, e “Oração”, mais do que tudo, constrói esse mesmo lugar. É uma canção, é um feitiço, é uma bênção e também é uma maldição.
PAS: E a oração é sempre pra uma deusa, ou pra várias?
LQ: É uma oração pra nós. Eu escrevo “Oração” como ação de me reconectar comigo mesma. Neste momento, no meio desse turbilhão de coisas que eu estou e que estamos vivendo, percebo que me reconectar comigo mesma significa me reconectar com as minhas, e também com as minhas raízes e com meu espírito, entendendo que meu espírito é de carne e osso. Entendendo que eu estou discutindo, falando e orando para a minha ancestralidade. E entendendo também que a minha ancestralidade é presente e está se construindo agora. “Oração” é uma música completamente diferente de tudo que eu fiz até agora. Eu continuo utilizando da música como meio de experimentação. Porque eu não sou cantora, eu estou cantora, e eu continuo cantando para ser ouvida. Continuo cantando para espalhar minhas bênçãos e minhas maldições. A música consegue de uma certa forma me colocar no presente – a música, o clipe. Este ano foi tipicamente atípico, em especial, porque comecei em janeiro com o programa Transmissão (que ela divide com a parceira Jup do Bairro), no Canal Brasil, ocupando um espaço novo de entrevistas, que é o diálogo, é a comunicação, é ouvir o outro e também nos colocar num lugar que evidencie que podemos falar sobre qualquer coisa, e não ficar restritas apenas a falar somente sobre nós mesmas, enclausuradas na própria existência, nas limitações identitárias em que nos colocam. Neste ano também eu gravei a série Segunda Chamada, gravei outro filme logo em seguida, coisas que ainda vão acontecer. Tem o lançamento do meu filme Bixa Travesty, agora, em novembro. Tem muita coisa em muitos terrenos que estou, que estamos abrindo. Tem muitas artistas trans, travestis, LGBT, que também estão trazendo questões completamente diferentes das que eu estou trazendo. Ao mesmo tempo, fiz “Oração”, tentando fazer um ponto de encontro dos nossos corpos. Consigo de certa forma construir uma egrégora com as minhas.
PAS: De alguma maneira “Oração” é um estudo sobre religião?
LQ: Eu não diria um estudo sobre religião. Tem a ver com o religioso que a gente constrói. Se a gente pensar que religião vem de religar, esse é o religioso que eu construo com as minhas. É com elas que eu me reconecto para me reconectar também comigo mesma, no sentido de um ato profano, que é a nossa união e que são as nossas vidas. O clipe para mim é algo concreto. Não é a representação de nada. No dia, com tudo que aconteceu e pra além de tudo que aconteceu, o ato do nosso encontro foi de propor estarmos juntas, de propormos a celebração de nossas vidas entre nós, de registrar as nossas vidas, o nosso encontro, e evidenciar o que podemos fazer quando estamos juntas, quando somamos as nossas forças. De propor o nosso encontro como processo de cura, sabe?
PAS: Eu sei por cima o que aconteceu no dia da gravação. Queria que você me contasse melhor, a começar por essa locação incrível. Que lugar é esse?
LQ: É uma igreja abandonada. Aquilo foi uma igreja em algum momento, na Brasilândia. Eu estava garantindo para que tudo estivesse protegido. A presença dos nossos corpos travestis, em qualquer espaço, se dá como espaço de constrangimento. Eu queria que a gravação do clipe fosse um espaço seguro para nós, como processo de cura, de experimentação e de celebração. E, apesar de termos todos os papéis para poder usar, no dia apareceu um suposto dono do espaço, que queria a todo custo impedir a gente de gravar lá, nos constrangendo diante daquele espaço.
PAS: Inicialmente só ele, ou com a polícia já?
LQ: Ele chegou acompanhado de uma outra pessoa. Mas desses detalhes prefiro destacar a situação de violência, no sentido de tentar nos impedir. Eles já chegaram com dois camburões, na verdade. Depois chegaram mais outros dois.
PAS: Tanto que um carro de polícia foi incorporado no clipe.
LQ: Ele não foi incorporado. Mais uma vez, o clipe não é uma representação. O clipe é a captação de um processo. Eu não trabalho com ficção, eu trabalho com fricção. Todos os meus trabalhos encaro dessa forma, como fricção entre realidade e ficção. Procuro não ter nenhum tipo de fidelidade com o realismo – não tenho nenhum compromisso com a realidade nem nenhum compromisso de fidelidade com o realismo. Porque entendo que o realismo também é em si uma versão, produzida e reproduzida, inclusive nos meios de comunicação e de arte, que produzem a nossa realidade, se retroalimentam. Nós já tínhamos gravado algumas partes, ele chegou e impediu que a gente continuasse, falando que a gente tirasse as nossas coisas de lá imediatamente, já acompanhado da polícia, mesmo nós tendo os papéis que nos permitiam estar ali. O que fica evidente pra mim é que tudo que eu havia preparado e pensado como processo de celebração das nossas vidas, do nosso religioso, do nosso religar, do nosso sagrado profano, e tudo isso foi interrompido e se tornou uma disputa de território. O clipe, em si, o processo de gravação, é um processo de disputa territorial. Antes que tivéssemos a oportunidade de ocupar aquele espaço como celebração e cura, nós tínhamos que lutar pelo direito àquele espaço. Apesar de já termos feito visitas ao local anteriormente, apesar de termos tido cautela judicial para utilizar aquele espaço. Não se trata de uma invasão, e ainda mais, quando falo que esse espaço é abandonado, nós limpamos, tivemos dois dias de limpeza. Pagamos e movimentamos o comércio local daquela região com nossa alimentação. Nós nos comunicamos com o entorno. Trabalhamos com uma equipe de limpeza para limpar o espaço abandonado, em situação de muita sujeira. Limpamos, limpamos em volta do espaço.
PAS: Nesses atos todos o cara não apareceu?
LQ: Ninguém apareceu. Incrivelmente, ele apareceu quando todas as travestis apareceram. Isso pode ter a ver, pode não ter a ver, mas não deixa de ser um fato.
PAS: Sempre tem a ver, né, Linn?
LQ: É. A gente teve que mover judicialmente, a gente ficou quatro horas sem poder gravar, num bar-lanchonete de pessoas que moram na região, que era do lado ali, onde a gente ia preparar o nosso almoço. Tiramos todas as nossas coisas do espaço, todas as câmeras, todo o espaço de camarim que a gente tinha preparado pra elas se trocarem. Tudo se moveu, tivemos que mover nossas estruturas, para tentar pensar o que a gente ia fazer. Isso em estado de choque, porque é uma abordagem violenta por si só. O contato da polícia é violento, principalmente quando se trata dos nossos corpos, num espaço majoritariamente feminino. A diretora é uma mulher. Os homens chegando com seu poder, os policiais, o suposto dono, violentamente, já nos impedem o uso daquilo. Ficamos quatro horas sem poder gravar, expulsas do espaço. Depois, quando a gente conseguiu acionar um advogado e negociar, pudemos ficar uma única hora de gravação. É quando a gente grava e estão todas.
PAS: Eles te deram o prazo de uma hora?
LQ: Deram uma hora.
PAS: Em algum sentido lembra a experiência dos sem-terra, esse processo de disputa de território.
LQ: Sim. Mas acho que principalmente pensando nisto: que território nós, enquanto travestis, temos? Nós não temos território nenhum possível de ocupação. A nossa disputa territorial já começa de pensar que as travestis não têm o direito, quase nunca, de ter um lar. Quantas travestis têm o acolhimento da família? Pensando na série que vem passando na Globo, quantas travestis têm acesso à educação? Quantas têm o direito territorial do mercado de trabalho? Que território nós temos direito de ocupar? E, quando nós temos judicialmente papéis que permitem nossa ocupação, ainda assim a lei impera e se orienta e beneficia determinados corpos. A lei é feita de e para alguns corpos, e não são os nossos corpos que são protegidos pela lei. No final voltamos pro espaço, já completamente imbuídas de tudo que a gente viveu. Quase todo o clipe, com elas todas juntas, nasce depois, nessa uma hora. É o que tem a emoção da gente.
PAS: Você aparece chorando, não? Tem a ver com o que aconteceu, obviamente?
LQ: Sim, sim. Exatamente. Quando eu vejo o clipe, o que aparece é justamente a nossa força. Pra mim, é a nossa força que impera. Porque os policiais indo embora, ainda assim, eu acho muito importante, utilizando o audiovisual como ferramenta e reinvenção de um imaginário social, e o que está ligado a transgeneridade e travestinidade é construir imagens de força. Aí é onde tudo vira feitiço, e onde tudo tem a ver com aquela frase que aparece na introdução: eu determino que termine aqui, que termine aqui e agora, que termine em mim, mas não acabe comigo, que termine em nós e desate. E que amanhã possa ser diferente com elas, que possam ter outros problemas e encontrar novas soluções, que eu possa viver nelas suas memórias. Principalmente, que tenham outros problemas. Estamos todas muito cansadas de ter que estar enfrentando os mesmos problemas de muito tempo. Os problemas se conservam, as pessoas se conservam e conservam suas mesmas estruturas, que estão falidas. Uma igreja abandonada, são estruturas falidas, várias peças museológicas que mantêm a estrutura do sistema tal qual ele é. Mesmo os prédios novos estão tão falidos quanto os velhos. É onde emprego um pensamento de J. Mombaça, onde traduzo pra mim, porque eu também, como J. Mombaça, não tenho mais paciência de discutir com quem ainda não entendeu que o mundo já acabou. Acabou. Acabou. Fingir que não acabou, que essas estruturas ainda funcionam, só serve pra quem se beneficia desse sistema, da escassez e da precariedade a que esse sistema se propõe em relação a alguns corpos. Pra mim acabou. Eu estar ocupando todos esses espaços desde o começo do ano, eu sou também a prova viva de que esse sistema acabou. O sistema já precisa incorporar a minha existência de alguma forma, porque ficou inevitável fingir que nós não existíamos. Ficou inevitável e burro fingir que os nossos saberes não são válidos e não trazem frutos, que nós não estamos produzindo conhecimento e saber. Àquelas que conseguem se manter atentas ao presente, o clipe é uma ferramenta de construção do presente, de inventar um novo presente.
PAS: Na disputa territorial ali imagino que não houvesse nenhuma condição de vocês desobedecerem.
LQ: O que você acha que acontece com travestis que desobedecem a polícia? E travestis majoritariamente negras? Que poder nós temos? Numa disputa territorial e de poder, que versão seria contada como a versão verdadeira? Como a mídia constrói a nossa imagem? Nessas vias, nós não temos como disputar, sem ter o mínimo de preservação dos nossos corpos e das nossas vidas. Eles falaram que se a gente não tirasse as coisas iam ter que quebrar tudo. Eu tinha alugado um piano, movi realmente as minhas estruturas pra fazer aquilo acontecer. Eles estavam ali para impedir, não pra prezar por uma ordem. Aquilo é um exercício e uma performance de poder, onde você vê que corpos mandam e que corpos devem obedecer.
PAS: Você acredita que eles não teriam constrangimento de quebrar um piano, se precisassem?
LQ: Sim. A polícia é uma polícia responsável também por essa nossa cultura de genocídio da população negra. Será que teria algum tipo de resistência em ocupar aquele espaço, em quebrar as coisas, sem que isso nos ferisse de alguma forma?
PAS: É possível que respeitassem mais um piano que um ser humano…
LQ: Mas depende de a quem pertence o piano. Estando com a gente, eles respeitariam muito menos esse piano.
PAS: O piano aparecer no vídeo então é uma vitória de vocês?
LQ: Não, nós aparecermos é uma vitória. O piano é o de menos. Nós faríamos aquilo sem piano algum. Nós poderíamos abrir mão de toda aquela estrutura, inclusive do espaço. Mas eu tinha pensado com minha equipe, todas nós construímos juntas a possibilidade de fazer aquele clipe ali, naquele dia, com aquelas pessoas. É uma disputa territorial, uma disputa de narrativa. Eles roubam o nosso direito de contar a nossa própria história, que eles já não contam. Essa nossa história já não pertence ao Estado. Os nossos corpos não contam nos livros didáticos, na biologia, na escola. Nós não somos corpos que valem a pena. Mas nós existimos. É tão burro o sistema cis-heteronormativo fingir que não existimos e não incorporar nossos corpos à biologia. Como se estuda biologia, se nós somos corpos que acontecem? Nós acontecemos. E eles ignoram isso como se não existisse. Os meios de comunicação ignoram a nossa história, intervenção e participação histórica e social. Nós intervimos. Eu sou prova disso mais uma vez, eu intervenho na história, tanto que eles precisam me incorporar, eles precisam me ter na rede de televisão aberta, num programa num canal fechado, nas revistas, em suas festas. É burro fingirem que nós não estamos intervindo na história. Eu intervenho na história. A minha presença, as nossas presenças, as nossas vidas intervêm no modus operandi da sociedade. Nós somos um ato de intervenção em suas relações, sejam elas quais forem, seja nessa relação falida, antiga, caduca, ilusória, compulsiva que ignora que estamos dentro das relações dos homens que nos procuram para sexo oculto. Nós estamos aí, em outros espaços. Eles nos queriam apenas nesses espaços, como servas, para servir a eles em momentos que sejam oportunos. A isso nós servimos ao máximo, àqueles que detêm o poder.
PAS: Quando você vem dar uma entrevista e eu sou um homem branco, a gente está repetindo isso também, de alguma maneira?
LQ: Eu acho que sim.
PAS: Isso te cria uma relação de confronto comigo, por exemplo?
LQ: É que na verdade toda relação é um confronto. Até minha relação com meu próprio namorado é um confronto. Não acredito em relação que não seja um confronto, e é importante que seja. Uma relação não existe sozinha, eu sozinha não tenho com que me relacionar pra saber quem eu sou. Mas, quando eu me relaciono, entendo o que eu sou e o que o outro corpo é, que não sou eu. Isso, mais uma vez, evidencia um lugar onde eu tenho que me explicar. Todas têm que se explicar, mas nossas referências mudam, nossos valores mudam, nossas urgências mudam, da mesma forma que se encontro outra travesti tudo isso também muda. Porque nós não somos uma massa uniforme, como pretendem. Mesmo diante do teatro da cis-heteronormatividade, as pessoas são muito diferentes umas das outras, carregam urgências, valores, definições, contornos muito diferentes. Se eu encontro com outra travesti, da mesma forma. Nós somos singulares e plurais, completamente diferentes umas das outras. Se eu encontro e me confronto com uma outra travesti, mulher ou pessoa negra, ainda assim a gente vai estar trocando, travando um confronto pra entender quem somos. Estou nesse clipe, porque esse é o melhor que eu pude fazer neste momento. Ele revela minhas condições limítrofes. Somos sempre levadas ao limite nesses lugares também. Eu me sinto testada em limites, porque são espaços que não esperavam, não têm suporte e estrutura para que meu corpo esteja ali sem constrangimento. Eu estar em um lugar onde eu seja a única a travesti não é representatividade. É uma exceção. Quer dizer que eu sou mais uma vez uma exceção. Quando estou numa padaria (é onde acontece nossa entrevista) e só tem pessoas cis brancas, eu estar aqui não é representatividade. É muito importante que eu esteja, mas é importante que a gente entenda que isso não é representatividade. Pra que haja representatividade é preciso que haja corpo. Qual é a diferença de representatividade dos corpos cis-heteronormativos e corpos trans negros nas mídias e na comunicação? É impossível que eu sozinha consiga dar conta de representar toda a comunidade trans e travesti. E nem é isso que eu quero. Eu quero ainda, grotescamente, representar a mim mesma, porque eu também estou em movimento, em trânsito. Eu também mudo de ideia, me torno outra a todo momento. E sei a importância da representatividade, mas sei que ela tem limites. Não estou falando de ficção, mas de fricção, não estou falando de representação, mas de atuação, de agir sobre, de agir sobre a minha própria existência e sobre os confrontos em que sou posta, seja uma entrevista, uma festa, um programa de televisão, um namoro… Estou agindo sobre as minhas relações e descobrindo nelas o que posso e o que não posso, como posso tensionar.
PAS: Te interessa tensionar, obviamente.
LQ: Exatamente. Mas não me interessa só a tensão, me interessa também tesão. Tesão e tensão nas relações, prazer, pulsão de vida nas relações. Segurança pra me sentir segura para tensionar inclusive. Para tensionar esse jogo, porque não é um jogo só pra mim mesma, é pra alargar os nossos espaços. Esse espaço é estreito, é hétero, straight. Cabem poucos corpos para passar. Como se eu estivesse em espaços de fissura mesmo, tornando esses espaços de fissura espaços de rachaduras. Eu gosto dessa ideia das rachas duras abrindo esses espaços, alargando mais o território para que outras venham e ocupem. Sinceramente, o que estou propondo não é um espaço de segurança para o privilégio cis-heteronormativo branco eurocêntrico colonizador. Não venho buscar necessariamente aliança. De alguma forma isso pode parecer cruel, mas de alguma forma é vingança. Tem violência. É a violência que se impõe contra mim. Eu não vou responder à violência com amor, eu sinto muito. Eu sei que o amor é uma das principais ferramentas de manutenção desse sistema. O amor beneficia também quase exclusivamente os homens, por diversas questões. Não é à toa que Deus é amor. O amor move estruturas econômicas, constrói famílias, distribui a herança da qual eu não faço parte, da qual eu fui deserdada, da família da qual eu fui expulsa. Eu não tenho como herança o amor. É por isso que, se Deus é amor, eu prefiro destruir o amor. O meu clipe é uma proposta de destruição. Toda criação envolve também destruição. Esse é um espaço que não é de segurança para os privilégios da cis-heteronormatividade. Se as coisas se moverem conforme eu canto pra que elas aconteçam, as estruturas vão mudar. E não estou dizendo que é inversão de privilégios, mas eu proponho novas estruturas. Falei demais, né?
PAS: Falou bonito. Você já tinha vivido algo da magnitude desse episódio de violência no seu fazer artístico? Foi o maior, ou o único?
LQ: Eu sinto que as violências são tão sofisticadas. Elas fazem parte do nosso cotidiano de forma tão sofisticada. Tem inúmeras violências que a gente passa, inúmeros constrangimentos e várias outras situações de confronto. Mudam de performer. As violências vêm de diferentes formas, por diferentes meios. São vários marcos, gravação de clipe, eu movendo tantas pessoas, é um investimento econômico. Não tenho patrocinadores. Eu que construo minha carreira com as minhas parceiras. É um investimento de todas nós, de todas as pessoas que atuaram junto comigo.
PAS: Vocês próprias são as patrocinadoras?
LQ: Exatamente. Eu sou a pessoa que invisto pra que aconteça. Então essa foi uma situação, mais uma vez, limítrofe, que evidencia essa violência. Infelizmente ela é presente nesse processo.
PAS: A razão de eu te perguntar isso é a curiosidade de saber se a chegada de Bolsonaro piora tudo, ou se tudo continua tão ruim quanto sempre foi. Dele, João Doria, Wilson Witzel ou qualquer um desses…
LQ: Todo esse retrocesso político atravessa muitas pessoas, inclusive nós, mas nós sempre estivemos na precariedade. Nossos corpos sempre estiveram na precariedade. É disputa de território, é só perceber que a gente já não tinha. Além disso, temos retrocessos políticos que afetam todas nós enquanto grupo da comunidade LGB. Principalmente a presença deles endossa a violência em relação aos nossos corpos. Mas ao mesmo tempo é um momento maravilhoso pra mim, pra algumas de nós que temos ocupado mais espaço. Tudo faz tanto sentido, toda essa resposta de violência… Onde eles puderem performar a violência e o poder deles, vão fazer, porque estão perdendo espaço. Quanto mais espaços eles puderem performar o poder, mais eles vão fazer. São policiais, políticos, homens de poder performando e exercendo o poder, fazendo uso do seu poder, do pouco que ainda circula entre eles. Porque eles estão com medo. Eles estão perdendo território. Os nossos valores podem mudar. Por isso eles precisam fazer essa afirmação de poder. Por isso as coisas são complexas e contraditórias. Nós estamos vivendo uma situação crítica, de crise, dessas rachaduras que se abrem, de crise. É uma palavra que acho maravilhosa desde sempre. Estamos vivendo uma situação de perigo, uma crise, mas também são momentos de oportunidade, momentos críticos. É na crise que ou as coisas se reiteram e continuam sendo como sempre foram, ou que surge a possiblidade de que uma coisa nova aconteça e a gente quebre o ciclo de repetição compulsória.
PAS: É muito eloquente que seja neste momento de endurecimento que estão aparecendo tantas artistas trans e travestis.
LQ: Eu acho que é o oposto. É justamente porque nós estamos conseguindo e galgando mais espaços que eles vêm…
PAS: …Com toda a fúria.
LQ: …E tentam fechar as rachaduras que estão aparecendo, para que seja um pouco mais difícil de se passar. Nessas fissuras e rachaduras que estão surgindo nesse prédio antigo, eles vêm tentar tapar com reboco e fingir que está tudo bem. Essa situação crítica surge justamente porque nós temos ganhado mais espaço. Nós temos a Erica Malunguinho, temos a Mandata Quilombo, é inegável que estamos fazendo um estrago em tudo isso. É inegável.
PAS: Vem desde antes do golpe de derrubada da Dilma Rousseff, né, Linn?
LQ: Exato. Nós não somos um acontecimento casual e pontual. Nós somos um movimento. Há um movimento composto por inúmeras pessoas em muitos lugares, em diferentes instâncias. Estes corpos estão postos neste movimento conjunto, nesse movimento de comoção, gosto muito dessa palavra. Tudo depende de comover-se, de mover-se coletivamente, co-mover-se. E tudo depende de como vê, de como vemos essas situações também. Existem as pessoas que se beneficiam disso e lutam para manter os seus privilégios, o seu território, a sua propriedade privada, a sua família nos seus moldes com as suas esposas protegendo seus lares e suas mães para educarem seus filhos e darem seguimento enquanto eles estão conquistando o mundo, os homens, na base do amor em Deus, consagrando tudo isso pelo amor e pela graça divina. As coisas são muito bem amarradas e estruturadas para beneficiar esses corpos, e os corpos que não fazem isso estão conseguindo de alguma forma invadir e estar nos espaços onde não deveriam. Você liga a televisão, nós estamos lá. De repente, judicialmente, temos pessoas pretas como juízes. De repente temos como candidata uma deputada estadual que é uma travesti negra, que está pensando agora. Isso gera novas condições de nos relacionarmos socialmente. Aí o que os homens mimados representantes do privilégio fazem? Eles tremem e tentam garantir o seu território. Eles querem o seu parquinho só pra eles, não querem que nós estejamos nas faculdades. A educação deixa de ser uma prioridade porque nós nunca nem conseguimos estabelecer condições para que a população negra tenha acesso à educação. E a história que se conta nas escolas, na educação, é uma história que não leva em consideração os nossos corpos, a própria terra, o próprio país, a própria nação. Por que tudo que houve antes de 1500 foi apagado? É como se o Brasil só existisse a partir de 1500. O que aconteceu antes da invasão colonial portuguesa? Como conseguem exterminar a nossa história, apagar nossos corpos? Como continuam apagando a nossa história à base de bala de borracha? Ou pior, mas bala de borracha, que apaga e também mata. Às vezes tenho a sensação de que tudo é tão óbvio, mas ao mesmo tempo é tudo tão complexo, difícil da gente enxergar.
PAS: E tanta gente não quer ver.
LQ: É, mas ao mesmo tempo é complexo de entender também, né? Se estabelecem códigos, símbolos e formas de distribuição da informação que é equivocada desde a base, que nos orienta, nos molda e nos forma de forma uniforme pra que a gente não se reconheça.
PAS: Você está falando muito de ancestralidade, queria saber um pouco da sua. De onde você vem? Quem são seus pais, avós, bisavós, até onde pudermos chegar?
LQ: Minha mãe é o que eu tenho de mais próximo da minha ancestralidade agora. Ela tem sido sempre muito importante no meu processo, que passou também por me fazer entender pela minha mãe. Minha mãe é preta, alagoana…
PAS: De qual cidade?
LQ: Não lembro. Não lembro.
PAS: De uma cidade pequena, talvez?
LQ: Acho que sim. Tem 66 anos ou já fez 67. Trabalhou até os 65 anos como empregada doméstica. Ela sabe falar com essa outra geração, minha mãe mal sabe mexer no celular, tecnologia. Quais eram as referências que a minha mãe tinha, e como era então que eu construía uma nova referência com ela do que eu estava querendo inventar, do que eu era, do que eu sou? Quando eu estava fazendo as minhas músicas, nessa busca por me entender, eu percebi como eu precisava construir um vocabulário comum pra que a minha mãe entendesse o que eu era. Cada pessoa é um vocabulário, né?
PAS: Onde ela mora?
LQ: Em São José do Rio Preto. Minhas tias moram em Votuporanga, algumas. São todas pessoas muito mais velhas, eu sou a mais nova filha da minha mãe. Tenho outros dois irmãos também, mas que têm vidas completamente diferentes. Todas essas pessoas ficaram assustadas, de alguma forma, com a violência que o mundo poderia me oferecer. Esse era o medo que a minha mãe tinha. Todo mundo sempre foi tão hostil, como ela poderia ficar tranquila sabendo que eu estava querendo… Eu não estava querendo, a minha existência em si já denunciava um perigo. Ao mesmo tempo, pra ela é tão importante que eu esteja ocupando todos esses espaços. Com a novela da Globo, agora ela vai entender, está vendo materialmente as coisas acontecerem, as coisas estão mudando diante dos olhos dela. Com 67 anos, empregada doméstica, alagoana, está vendo o mundo e as suas representações mudando diante dos olhos dela. E ainda mais: com a filha dela, a pessoa que saiu do ventre dela. É muito simbólico isso pra todas nós. É uma mudança de perspectiva.
PAS: Ela é negra, ou é indígena também?
LQ: Ela é indígena também, ela é afro-indígena.
PAS: No Nordeste todo mundo é, e portanto você é também…
LQ: E portanto eu sou também. E portanto isso é inclusive uma das minhas buscas, é até curioso você falar disso. Quando falo que tem tanta história, eu tenho tido sede de saber a minha história, de saber não só aonde eu vou, mas também de onde eu vim. Por isso a minha indignação com a nossa história antes da invasão em 1500 ter sido apagada. Como essas pessoas foram dizimadas? Minha mãe também sabe muito pouco. Na minha família, parece que é uma luta constante para se manter viva, conseguir trabalhar. Esse sempre foi o carinho da minha mãe. Ela dizia que carinho é ter comida dentro de casa. Eu não cresci com ela, cresci com minha tia, porque minha mãe precisava trabalhar de doméstica em outra cidade. Só fui morar com ela com 12 anos de idade.
PAS: Você nasceu onde mesmo?
LQ: Em São Paulo. Mas só nasci mesmo, fui morar em Votuporanga, com minha tia, porque meu pai havia abandonado a gente do nada.
PAS: Seu pai nunca foi presente?
LQ: Nunca.
PAS: Mas você sabe dele? Conhece ele?
LQ: Depois, com 12 anos, foi quando vi ele, quando a gente encontrou ele por termos judiciais, no fórum. Daí ele começou a pagar pensão, e foi quando voltei a morar com a minha mãe. Mas nunca conseguimos manter contato. Não parecia ser algo que ele fizesse questão. Eu também nunca… Queria conhecer ele, conheci, mas também não era algo fundamental na minha vida naquele momento, nem agora. Ele não se fez presente.
PAS: É uma história de muitas e muitas e muitas crianças.
LQ: Exato. De tantas e tantas Marias com filhos que são do Espírito Santo. Parece muito isso, essa história das Virgens Marias. Todas se pretendem Virgens Marias. Todas também infelizmente têm histórico de filhas que são do Espírito Santo, de um pai onipresente, onipotente, mas que não existe, que não tem presença.
PAS: Sua mãe é religiosa?
LQ: Minha mãe não. Mas minha tia que me criou era Testemunha de Jeová.
PAS: Evangélica?
LQ: É Testemunha de Jeová, acho que é outra coisa. Eu fui Testemunha de Jeová até meus 17 anos.
PAS: Praticante?
LQ: Praticantíssima. Praticantíssima, batia de casa em casa, pregava de casa em casa.
PAS: Você já era menina? Desculpa, não sei tratar direito desse assunto.
LQ: Foi antes do meu processo de transição. Eu pregava de casa em casa, estudava a Bíblia. Justamente porque estudei a Bíblia que eu acho muito curiosa a versão. Porque é isso, é um livro, que foi escrito por alguém, é uma versão da história, dessa piração toda. Gosto muito do livro do Apocalipse, que é o último livro da Bíblia.
PAS: Leu tudinho?
LQ: Não. Nunca acreditei tanto assim também. Ou talvez tenha me forçado a acreditar, não sei. A gente se força a acreditar em algumas coisas, né?, em todos os nossos pactos sociais.
PAS: Mas essa atração pelo Apocalipse é de se entender…
LQ: Isso me veio depois que saí. No livro de Revelação tem um trecho em que tocam a sétima trombeta do último anjo, que anuncia o fim desse sistema de coisas. Pra anunciar o fim desse sistema de coisas, tem a única mulher que aparece no Apocalipse, que é a prostituta. Ela é símbolo do fim dos velhos tempos. Junto dela tem uma fera, aquela que era, mas não é. A fera que era, mas não é. Eu acho ótimo isso. Fala que todos os reis da Terra cometeram adultério com a prostituta. Todo mundo se esbaldou com a prostituta, mas ela é que deveria pagar. Ela vai ser presa por mil anos, para que não haja o fim dos velhos tempos. Pra mim é muito simbólico isso, nós somos elas, essas feras que eram, mas não são. Que são, mas não são. Nós somos essa fera, essa prostituta, esse corpo que anuncia o fim desse velho sistema de coisas. Nós anunciamos. Só que o que você prefere fazer é nos prender e nos tirar dos olhos pra que o sistema não se acabe. É engraçado que, pra ter a cerimônia de celebração depois que a prostituta é presa, o que eles fazem é a celebração do casamento do cordeiro de Cristo. Vão fazer o casamento, que é o símbolo da repetição, da repetição dos mesmos laços, do mesmo pacto de heranças. Eu acho que eu sou essa fera, mas não vão me prender. Os homens da polícia vieram tentar me prender. Prefiro não ser presa e continuar nessa disputa.
PAS: Sua mãe empregada doméstica criou você, fez você estudar, é uma história bem-sucedida?
LQ: O que é bem-sucedida, né? Eu não fiz faculdade, fui estudar teatro. Fui construindo os meus caminhos de conhecimento e produzindo os meus conhecimentos. Tudo era uma grande incerteza. Tudo ainda é muito incerto, ainda estou em terreno arenoso. Não sinto que estou formada, e espero nunca estar, estar sempre em formação.
PAS: Você fez a Escola Livre de Teatro?
LQ: Isso. Fiz três anos e meio. Faltou meio ano. Não faltou meio ano, eu terminei meu processo no momento certo. Porque eu tive um câncer durante o final da Escola Livre. Mas encerrei meu processo da melhor maneira que podia encerrar. É isso, incorporando meu corpo aos processos, e não só sendo incorporada. Mas isso você pode ver no filme.
PAS: Você disse que não é cantora, que está cantora. E atriz? Você é ou está?
LQ: Eu sou atroz (risos). Continuo sendo atroz, mais do que atriz ou cantora.
PAS: Pergunto porque essa você estudou pra ser atriz de fato.
LQ: Também. Eu venho me reconhecendo muito como uma provocadora social e cultural, como artista. Todas nós somos de uma certa forma, porque pra conseguir sobreviver nesse sistema tem que ser muito artista. Tem que saber fazer malabarismo social pra se manter viva. Então acho que sou artista, sou uma desobediente. E também sou atriz.
PAS: Como foi quando você falou pra sua mãe que ia estudar teatro?
LQ: Eu nunca tive que prestar muitas contas à minha mãe em relação a isso, contanto que eu trabalhasse e conseguisse me manter.
PAS: Você trabalhava também?
LQ: Trabalhava, desde os 14 anos.
PAS: Fazia o quê?
LQ: Trabalhava num salão de cabeleireiro.
PAS: Como o Rico Dalasam.
LQ: É mesmo, só que eu era auxiliar de cabeleireira, fui caixa, recepcionista. Uma das coisas que trabalhei foi como técnica de uma empresa de cosméticos.
PAS: Tem uma autodeterminação forte em você.
LQ: Eu precisava me manter viva, né? De alguma forma tinha que trabalhar. Não acredito muito em histórias de superação. Gosto mais de pensar nas construções e complexidades de cada um. Todo mundo tem superação. Uns, não, uns têm privilégio mesmo. Mas quase todo mundo tem superações. Tudo depende do ponto de vista, de saber a história de cada um.
PAS: Você gostava de estudar e fazer teatro?
LQ: Muito, muito. Foi um período extremamente rico. Quando do comecei a fazer dança, balé, dança contemporânea, foi muito interessante, porque eu estava descobrindo meu corpo, enquanto materialidade. Como meu corpo ia se apresentar esteticamente. Mas também estava descobrindo o meu corpo enquanto possibilidade, ganhando mais flexibilidade, aprendendo outras coreografias sociais, outros movimentos, investindo e investigando as relações do teatro. Era como se eu estivesse descobrindo superpoderes. E eu continuo investigando esses superpoderes. Me vejo como uma artista do corpo, acredito que eu seja isso.
PAS: E a voz faz parte do corpo?
LQ: Com certeza. Voz é corpo e corpo é voz. Ainda mais se entender meu show como performance. O corpo é meu templo também. É meu templo sagrado, e pra onde sempre eu volto como reconexão, como processo de cura, de frescuras, e de fortalecimento. Sempre que volto pro corpo, fico muito ansiosa. Como os processos me consomem demais, eu preciso voltar ao corpo. Voltar a uma atividade física, alguma coisa que me reconecte comigo mesma, com meu corpo, com meus processos. O corpo pra mim sempre foi sagrado. Meu corpo sempre foi sagrado. A pergunta que norteia a minha trajetória de trabalho eu sinto que é: o que pode um corpo?, o que pode o meu corpo?, com as minhas possibilidades e os meus limites?
PAS: É a coisa mais chata de perguntar, mas como foi, dentro disso, a experiência com o câncer?
LQ: Tem muita coisa, mas vamos deixar pra ver o filme e depois eu falo sobre isso. Vai estar no filme. Mas foi um dos meus processos de maior aproximação comigo mesma. Foi onde eu entendi como podia transformar as minhas fragilidades em potência. Na verdade, tudo que me apontavam como sendo as minhas fragilidades era a minha maior força. O processo do câncer foi um processo de invenção de mim mesma, de muita criação. Fui muito criativa nos meus processos de cura, inventei processos pra que eu pudesse passar pela doença da maneira mais saudável possível.
PAS: Sou um jornalista que gosta de escrever sobre música, então cheguei até a você pela minha paixão pela música. Queria conversar um pouco sobre ela. Onde nasce a cantora, funkeira, rapper, compositora, que mais?…
LQ: Olha. Eu sinto que venho me apresentando há tanto tempo, sabe? O mais interessante talvez de eu dizer é que a Linn da Quebrada morre e renasce a cada canção. Cada canção. Por isso é tão ancestral, tem tantas vidas envoltas no meu trabalho. Talvez eu já tenha nascido morta. Nasci morta, velha, antiga e ancestral. Predestinada a morrer e matar (risos). Acho que desde minha primeira música, “Enviadescer”, onde está um dos primeiros nascimentos da Linn da Quebrada, depois que a Lina Pereira mesmo já havia nascido.
PAS: Existe uma Lina Pereira então?
LQ: Existe uma Lina Pereira por trás da Linn da Quebrada, com certeza.
PAS: Linn é a persona?
LQ: É a figura artística.
PAS: É o Ney Matogrosso nos Secos & Molhados?
LQ: Exato. Eu acho importante, porque senão a Linn da Quebrada me consome. As pessoas têm muito acesso à Linn da Quebrada, mas elas não me conhecem. Você não me conhece. Você, do pouco que conhece, conhece a Linn da Quebrada, ou está querendo conhecer a Linn da Quebrada. A Lina Pereira tem outras questões.
PAS: Na verdade eu gostaria de conhecer um pouco das duas.
LQ: A Lina Pereira talvez seja quem ligue todas que são a Linn da Quebrada, todos os cacos desse espelho que são o reflexo, a representação da Linn da Quebrada.
PAS: Quem está na série da Globo é a Lina?
LQ: Na série é a Linn da Quebrada, mas também é a Lina Pereira. Assino Linn da Quebrada, como imagem artística. Mas a Lina Pereira, pelo menos por enquanto, tem esse lugar da minha intimidade. Poucas pessoas têm acesso ao privilégio que é ter intimidade comigo (ri). A Linn da Quebrada nasce ali na música “Enviadescer”.
PAS: O que eu mais gosto é que ela é muito provocativa com o homem hétero. Como ele reage?
LQ: Minh música tem esse olhar como arma. Mas além de estar apontada para o outro, para o homem hétero, macho, ela está principalmente apontada pra minha própria cabeça, pra nossas próprias cabeças. Com a minha música eu digo pra cada uma de nós pra quem essa arma se aponta: mate em você o homem branco senhor de engenho macho capataz que pensa estar sempre à frente, mas vive pra trás. Mate em você. E sinta em você. Mate e morra e sinta em você também a força dos meus ancestrais. Essa é uma das minhas outras orações que eu canto, mate e morra. Eu sempre procuro matar e morrer, matar em mim o que me… Gosto de como a Clarice Lispector falou de uma terceira perna, que nos mantém estáveis, nos dá segurança, mas ao mesmo tempo impede a gente de se movimentar. Matar e morrer, em mim, esse macho branco senhor de engenho capataz e ao mesmo tempo arrancar essa terceira perna, onde eu perco também, onde nós perdemos nossas seguranças e certezas, conseguimos nos mover, novamente. Isso, lógico, faz com que cresçam outras terceiras pernas na gente. Certezas crescem na gente muito fácil. Só que essas certezas nos mantêm estáveis, e a minha música é apontada pro macho de fora, mas pra possibilidade de manter a estrutura do macho imperando dentro da gente. É mate e morra. Eu prefiro pensar na minha música assim.
PAS: Você acha que essa figura deve e precisa morrer?
LQ: Eu acho. Ele é uma entidade, um símbolo. Nós precisamos discutir e descurtir a masculinidade nociva. É ela que mantém as estruturas como elas estão. Matar o macho é matar essa entidade que vive quase como um vírus entre nós. E ao mesmo tempo eu também sou esse vírus, entendo que faço esse vírus se transformar em antídoto. Pego ele e transformo em antídoto pra matar em nós as possibilidades estruturais que fazem esse sistema se perpetuar. Minha música é isso. As músicas criam na gente afetos, e afetos colaterais.
PAS: Existem partes das identidades tidas como masculinas que você gosta de preservar em você?
LQ: Existem inúmeras possibilidades de masculinidade que podem surgir e nascer ainda e ser criadas. Se a gente mata o masculino como ele existe, instantaneamente vai nascer outro feminino também. Essas coisas, mais uma vez, só existem em relação. Quando a gente destrói masculinidade nocivas, isso também possibilita que novos femininos surjam, que novos masculinos surjam, que outras coisas surjam até que não sejam masculinas e femininas divididas dessa tal maneira. A gente precisa desestabilizar o sistema como ele acontece, para que ele tenha que se reorganizar de outra forma, com outros agentes. Porque se a gente deixa dessa mesma forma a gente vai só desentupindo o cano, e os problemas vão continuar ali. Às vezes acho que é necessário que as coisas explodam, que destrua tudo, pra que outra coisa possa surgir. Pensando nos filmes tipo “Bacurau” e “Coringa”, eu acredito em caos. O caos é fundamental.
PAS: Você gostou de “Bacurau”? Ele expõe muitas identidades dentro desses novos princípios.
LQ: Eu gostei. Gosto muito da narrativa. E gosto muito de “Coringa” também, esses lugares de caos, da desordem.
PAS: Então, primeiro você apareceu na parte musical, e agora, aos poucos, está voltando ou chegando à atuação como atriz.
LQ: Então, eu já estava, né? Minha carreira não se inicia com a Globo, nem com a música. Vou fazer 30 anos, comecei a estudar desde a Escola Livre, fazendo dança, nos meus 20 anos. Já tem dez anos que estou construindo coisas e dividindo minhas produções artísticas em diferentes proporções. Não acho menos importantes as minhas performances independentes lá do começo, meu primeiro grupo coletivo com que trabalhei…
PAS: Como se chamava?
LQ: Coletive Friccional, de fricção. Venho construindo meus pensamentos e um saber sobre mim mesma já há muito tempo. Eu venho entendendo cada vez mais que meu trabalho é uma continuação de mim mesma, daquelas que vieram antes de mim, da história que foi apagada e que tentam apagar a todo momento.
PAS: Pode falar um pouco sobre o trabalho na série e no cinema? Como é estar na Globo sendo a Linn da Quebrada?
LQ: Eu não estou na Globo, né?
PAS: Estar por um período…
LQ: Eu estou, mas é isso, eu trabalhei numa série, a série está na Globo e a Linn da Quebrada está lá também. Mas acho fundamental que a Linn da Quebrada, que eu esteja nesse espaço da Globo, porque é uma reinvenção do imaginário social. É esse rompimento. O mais interessante de pensar é como foi bom pra mim estar ocupando esses espaços importantes com todas as suas contradições, porque eu me sinto atuando mesmo, agindo sobre esses espaços, aprendendo um monte de coisas. Me sinto hackeando um monte de espaços, informações. Sinto que capturo novas relações também e vou descobrindo novas possibilidades de comunicação. Aprendi demais, foi muito intenso. Foram cinco meses de gravação da série, depois emendei em outro filme.
PAS: Tem mais de um filme então?
LQ: Tem um que filmei agora, só vai ao ar ano que vem. Já tenho outros filmes que fiz na minha carreira. Mas tem o meu filme, que é o Bicha Travesty, que estreia dia 21 de novembro. Além de ter sido um puta aprendizado ter esses espaços, eles têm sido muito importantes na minha disputa por linguagem, por narrativa. Sinto que estou conseguindo atuar em tudo que eu quero. Eu tenho um programa de televisão, meu filme documental, participo de filmes de ficção de outros diretores, tenho minha música. Tenho conseguido hackear diversos espaços. Nós estamos em todos esses lugares.
PAS: Como tem sido a experiência como entrevistadora?
LQ: Tem sido o máximo. A gente vai ter uma segunda temporada ano que vem. É a possibilidade de eu conseguir falar sobre outras coisas que não só sobre mim. É um espaço de troca e de falar com pessoas muito diferentes, de universos completamente diferentes do meu. E conseguir elaborar outros pensamentos, absorver outras informações, aprender a ter curiosidade com quem está na sua frente, estudar sobre essas pessoas antes, criar curiosidade sobre. Nós podemos falar sobre qualquer coisa, podemos fazer qualquer coisa quando nos são dadas as oportunidades pra isso. Tenho descoberto muito, estou num ápice de descobertas na minha vida. Tudo parece completamente novo.
PAS: Não queria voltar a falar do Bolsonaro, mas… Como ele afeta você?
LQ: Ele não me afeta, eu é que afeto o Bolsonaro. Ele deve estar morrendo de medo, e não de mim especificamente, mas de nós, enquanto aquelas que são as minhas. Ele deve estar morrendo de medo, a gente não devia nem gastar tempo falando dele. Porque é isso, eles estão perdendo. Eles estão perdendo. Estão tentando garantir seus privilégios e seu território porque estão perdendo território. Ele não me assusta. Travesti não pode ter medo. Infelizmente, medo é um privilégio. Se a gente tivesse medo, não sairia nem de casa.
PAS: Mas é possível não ter medo?
LQ: Pois é, não é. Não é possível. Mas como a gente lida com esse meio? Eu transformo o medo em receio. Eu receio pela minha vida, pela vida das minhas. Cuido das nossas vidas, da minha vida, jogo os meus feitiços, minhas maldições e minhas canções no mundo. Mas eu não tenho que me preocupar, o Bolsonaro é que tem que se preocupar comigo e com tudo que eu tenho feito, porque estou fazendo tudo que eu posso e lutando com o máximo das minhas forças para garantir a minha vida e a vida das minhas e para transformar o nosso tempo da melhor maneira possível. Essas são as minhas preocupações, e eu estou lidando com elas. O cenário político me afeta, mas lido com essas transformações, tenho lidado, muito, e só vejo avanços e conquistas da nossa parte. Só vejo esses retrocessos como medo deles. Nós temos avançado muito.
PAS: Você acredita que essa fase de retrocessos vai passar?
LQ: Eu não sei te dizer. Tudo é um terreno tão instável. Não dá pra ter certeza do que está acontecendo. Mas eu tenho certeza de que a gente está fazendo tudo certo.
PAS: Por exemplo, na Argentina e no Chile, o lado deles está tendo reveses.
LQ: Mas estão causando caos e confusão, né? Eu queria ver aqui derrubarem esses monumentos antigos, esses homens e seus cavalos.
PAS: Vamos, Linn, por favor!
LQ: É isso, nós temos que derrubar simbolicamente e materialmente esses símbolos antigos e caducos e erguer novos símbolos, para que sejam destruídos depois também. Estamos num momento de derrubada de signos e símbolos antigos.
PAS: E sobre a história da Parada Gay da Paraíba (uma apresentação de Linn foi cancelada na edição deste ano da Parada em João Pessoa)?
LQ: Isso já passou. A única coisa importante de evidenciar disso é que, justamente, quando a gente vai falar da parada diz Parada Gay, em vez de pensar em LGBT. Novamente representa um certo tipo de masculinidade, que não deixa de ter privilégios em relação a outros corpos presentes nessa mesma sigla. Pra determinados corpos, nesse lugar, a minha música é pejorativa. Minha música, pra mim, não é pejorativa. Ela é se a gente considerar que está atacando mais uma vez o macho. Se essas pessoas, de alguma forma, se beneficiam de uma masculinidade tóxica, elas vão se sentir atacadas. Se elas pretendem tornar o espaço confortável para os héteros, que têm todos os espaços do mundo pra se sentir confortáveis, e não para mim e para as minhas, aí nós temos questões que já se evidenciam o bastante. O mais importante, pra mim, é entender isso. Sinto que não consegui ir lá tocar com as pessoas em João Pessoa, mas sinto que isso é símbolo também de muita coisa. Eles falam, num dos áudios que a gente expôs, que não estamos vivendo na década de Stonewall, se fosse tudo faria sentido… Dizem que tem a ver com deixar os héteros confortáveis, se fosse na década de 1960 talvez a minha música fizesse mais sentido… Mas a minha música faz sentido agora, porque estou falando de agora. Não é fácil. Mas eu não me propus ser fácil.
PAS: Me chamou atenção naquele momento, não só no seu caso, mas de outras artistas trans e mulheres, que vieram episódios de censura e os censores se justificaram dizendo “ah, ela não entendeu direito”, “está interpretando mal”. É um jeito delicado de chamar vocês de… loucas?
LQ: Exatamente, mais uma vez, né? Mas é isso, sempre fomos loucas. Nossos pais e amigos nos queriam loucas. Os normais talvez tenham inveja de mim que sou louca. Talvez eu seja exatamente esse transtorno, transtorno de identidade, transtorno para as suas obras. Com certeza, quero continuar me transtornando muitas vezes. Quero me transtornar muito e me tornar cada vez mais trans. Ser um transtorno para as suas teses, aos termos que a masculinidade inventou. Eu sou um transtorno, um problema, e me proponho a ser a falha nesse sistema. Esse é o lugar que eu estou travando. Eu sou a prova viva de que vocês estavam errados. Eu sou aquilo tudo que vocês não esperavam e, olha só, vocês vão ter que me colocar em todos os lugares, porque, sim, vocês estavam errados (ri). É isso, Bolsonaro tem que estar morrendo de medo mesmo.
PAS: Usei o termo louca, mas na nossa conversa você só transmitiu lucidez.
LQ: Talvez seja essa a loucura de que sofro, a loucura da lucidez. Talvez a lucidez seja uma loucura. Eu acho que de alguma forma é.