Eta, eta, eta, diretas (*)

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O produtor cultural Ivan Cosenza de Souza, de 47 anos, vende camisetas com ilustrações pró-democracia numa banquinha improvisada na praia de Copacabana, no domingo brumoso de 28 de maio. Filho do cartunista Henfil (1944-1988), ele aproveita o show coletivo de música brasileira em prol do restabelecimento de eleições democráticas pós-golpe de Estado para comercializar estampas criadas pelo pai há 33 anos, no contexto da campanha Diretas Já original. Vários ciclos de ditadura civil-militar convivem juntos e misturados neste ano-simulacro de 2017. No domingo, 1984 parece estar de volta, apenas quatro dias depois da quarta-feira 24, quando bombas, botas e incêndios em Brasília encenaram um farsesco AI-5, um 1968 rebobinado.

Ivan Cosenza de Souza

“Juntou minha militância com uma coisa nova, de as pessoas cobrarem de ter camisas com as coisas do Henfil”, explica Ivan, protegido por um boné de motivos militares cubanos. “É uma forma de ajudar a manter o acervo dele, na falta total de apoio. Já não estava conseguindo apoio antes, mesmo com o governo do PT. E agora a cultura simplesmente parou.” Curador da obra do pai e presidente do Instituto Henfil, Ivan vende as camisetas que produz pela Loja da Graúna, no Facebook. Com o acirramento político, tornou-se figura constante nas manifestações cariocas. Nessa tarde de Diretas Já, por volta das 14 horas, já vendeu cerca de 50 camisas.

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Inacreditavelmente, a outrora chamada grande mídia repete-se a si mesma 33 anos após as primeiras Diretas Já, em tons que vão de farsescos a tragicômicos. No amanhecido jornal do dia seguinte, O Globo omite o termo “diretas já” de uma chamada de capa ilustrada pelos chefes de palco Caetano Veloso e Milton Nascimento, sem nenhuma imagem da multidão ao redor. A Folha de São Paulo mimetiza a Rede Globo de 1984 e retrata o público na orla como se estivesse numa festa de carnaval. O Estado de São Paulo, mais sincero, ignora solenemente o assunto na capa. O drone que sobrevoa as areias de Copacabana é da Mídia Ninja, simulacro de Rede Globo, que saltita entre quantificar o público em 50 mil, 100 mil ou 150 mil manifestantes. A verdade está lá fora, em algum número que a Polícia Militar do Rio se recusa a precisar.

Discursando entre atores e representantes de partidos como PT, PCdoB e PSOL e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o historiador e militante negro Douglas Belchior manda a letra sobre o que costumamos chamar ditadura: “Libertem Rafael Braga. Este Estado de exceção que hoje está atingindo todos os corpos indiscriminadamente, eu tenho que lembrar, sempre atingiu o corpo negro. A terceirização do trabalho já existe na vida do povo negro. A gente sabe o que é viver a realidade da precarização e da negação de direitos”.

Em guerra particular com a capa isentona que virou figurino básico do establishment cultural brasileiro, o ator Wagner Moura é dos poucos a aplicar o termo “golpe” ao discurso: “A gente lutou contra o golpe. A gente sabia que ser contra o golpe no ano passado não era defender o político A ou B ou o partido A ou B, era defender a democracia. Estamos aqui de novo para o segundo round dessa luta”.

Copacabana, 28 e maio de 2017Puxado pela Frente Povo sem Medo e pela Frente Brasil Popular, o evento acontece no alto do trio elétrico, onde se reúne uma maioria de músicos próximos da produtora Paula Lavigne, empresária e ex-esposa de Caetano. Distante de 1987, quando pedia (na letra de “Vamo Comer”) o “equacionamento” das “pressões do PT e da UDR” (União Democrática Ruralista), o ícone tropicalista vem conviver com os balões da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Chico Buarque só comparece na camiseta do manifestante negro que une a foto sorridente da capa do disco de estreia do compositor (em 1966) e os dizeres “vem, neném!”.

A ala não-coxinha do elenco da Rede Globo se apresenta maciçamente ao ato, não se sabe se atiçados pela patroa ou em ato de rebeldia contra ela. O comportamento uníssono faz da velha (e da nova) MPB presente um raro território de consenso num país onde hoje existe qualquer coisa, menos consenso. Ninguém mete a mão em cumbuca, e as proclamações políticas jamais saem de variações em torno das frases curtas “diretas já” e “fora Temer”, seja por parte de artistas com menor lastro de politização (como Pretinho da Serrinha, Mart’nália ou Maria Gadú), seja nas bocas bravas dos rappers Mano Brown e Rappin’ Hood.

“Fora Temer desgraçado!”, pede o manguebit Otto, logo apoiado pela sambista Teresa Cristina, que emenda um “fora, demônio!”. “Nós não vamos pagar nada!”, ela completa, numa recombinação entre o “nós não vamos pagar o pato” da Fiesp e letra em moldes “a solução é alugar o Brasil” de “Aluga-Se” (1980), de Raul Seixas. Milton entra mudo e sai calado. Caetano ensaia tímidos “fora Temer” a cada cinco canções. Órfã de líderes, a plateia oscila entre cantar junto e preencher o vazio discursivo entre canções com ondas de “fora Temer”.

O repertório retrata o hospício Brasil de 2017. O Cordão do Bola Preta cumpre versões instrumentais de marchinhas carnavalescas como “A Jardineira”, o anacronismo racista “O Teu Cabelo Não Nega” e “Índio Quer Apito”, além de samba-enredo que explode corações na maior felicidade. Ymira Tayguara, filha do cantor e militante antiditadura (nascido uruguaio) Taiguara, acende a chama política mais pelo simbolismo que propriamente pelo conteúdo das letras do pai que elege cantar.

A roda coletiva de pagode liderada por Pretinho da Serrinha se esmera na seleção musical, em simulacro à linguagem de fresta que fez a festa da MPB dos anos 1970. “A esperança equilibrista/ fora golpista”, improvisa Teresa Cristina em O Bêbado e a Equilibrista”, o hino de anistia de João Bosco e Aldir Blanc que em 1979 selou a paz entre a não tão esquerdista Elis Regina e o muito esquerdista Henfil.  “A gente não tem cara de babaca”, reclama Mart’nália, no canto de protesto “É” (1988), de Gonzaguinha. O grupo improvisado transforma em manifesto o samba “Madalena do Jucu” (1989), sucesso de Martinho da Vila: Fora Temer, fora Temer/ fora Temer, fora Temer/ eu vou falar pra todo mundo/ vou falar pra todo mundo/ que eu não quero você.

Otto clama por Dilma Rousseff sem mencioná-la, na exaltação “mulher brasileira em primeiro lugar” do Benito di Paula em 1975. As senhoras do movimento Redilma-Se comemoram, entre uma e outra panfletagem otimista: “Faltam só seis votos no STF para ela voltar!”.

“Negro sem emprego/ fica sem sossego”, a roda de samba evoca a Dona Ivone Lara de “Sorriso Negro” (1981), outro achado de fresta sob medida para a ocasião. No sucesso antigo de Clara Nunes “Lama” (1976), o efeito tem endereço certo e óbvio ao presidente grampeado: “Por isso não adianta estar no mais alto degrau da fama/ com a moral toda enterrada na lama”.  

Mais desastrado, o estandarte do sanatório geral celebra a depressão 2017 em versos de samba-enredo do tipo “é hoje o dia da alegria” e “diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais feliz que eu”. O espelho também é a ferramenta de trabalho de Milton e Caetano, em evocações que soam apenas narcisistas no contexto de hoje, à alegria de tocar um instrumento e cantar de “Nos Bailes da Vida” (1981) ou de botar os pés no riacho (riacho de que nunca os tirou) de “Força Estranha” (1979). Quando Caetano canta que um índio descerá de uma estrela colorida brilhante, em “Um Índio” (1977), um grupo mais zombeteiro ou menos paciente com a despolitização do evento político faz claque ao final dos dizeres de que o índio “virá que eu vi”: “Lula!”.

Caetano rebate com “Divino, Maravilhoso” (1968, dos versos “atenção para a estrofe e pro refrão/ pro palavrão, para a palavra de ordem/ atenção para o samba exaltação”), “Vaca Profana” (1984) e o “eta, eta, eta/ todo mundo quer saber com quem você se deita” de “Tieta” (1995). Pedro Luís tenta amaciar a impropriedade festiva, com paródia vigente na fase do golpe em que era outro o bandido de estimação da moda: “eta, eta, eta, eta/ Eduardo Cunha não manda na minha buceta”.

Embora sem pronunciar-se fora do domínio da canção, o rapper Criolo adequa o repertório ao momento político, seja no samba novo “Menino Mimado” (“meninos mimados não podem reger a nação”), seja na reinterpretação de “Juízo Final” (1973), de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. Na primeira, ele dá um soco na murada do trio elétrico ao cantar “então pare de correr na esteira e vá correr na rua”, em vibração pelo tanto de gente reunida na rua ou por satisfação de cantar aquele verso diante de uma das maiores esteiras brasileiras ao ar livre. Na segunda, falam sozinhos os versos “o sol há de brilhar mais uma vez/ a luz há de chegar aos corações/ do mal será queimada a semente/ o amor será eterno novamente”.

O trio elétrico parece ansiosamente indeciso, quase mudo, mas o caminho de volta ao anoitecer pelas ruas de Copacabana evidencia outro tipo de ansiedade. O Redilma-Se faz performance com a palavra de ordem “volta Dilma”. Grupos formados espontaneamente caminham rumo ao metrô sob o grito de guerra “fora Temer”. Um destacamento de policiais vestidos feito tartarugas ninja é provocado pelos passantes com o grito de guerra “Aécio na cadeia”. O humor da rua contrasta com o palco que não ousa mencionar Aécio, Lula, Dilma ou FHC.

Ecoam as palavras do filho de Henfil, que no início da tarde apontava para as janelas dos prédios privilegiados da praia de Copa: “Antes, o pessoal botava faixas de ‘votei no Aécio’ e ‘Aécio 45’ ali nas janelas. Agora é só ‘vende-se’ e ‘aluga-se’.” No domingo 4, a jornada Diretas Já promete aportar em São Paulo, com Mano Brown, Criolo, Emicida, Péricles e dezenas de blocos de carnaval, às 11h, no largo da Batata – se o prefeito pixador de plantão deixar e o secretário de Cultura não ameaçar quebrar a cara dos manifestantes.

(*) Versão expandida de texto publicado originalmente na edição 955 de CartaCapital.

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