A neurose da fuga em ‘A Mulher Sem Pecado’

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Elenco do Grupo Tapa para a a peça "A Mulher Sem Pecado", de Nelson Rodrigues
Elenco do Grupo Tapa para a a peça "A Mulher Sem Pecado", de Nelson Rodrigues - Foto: Ronaldo Gutierrez/ Divulgação

A Mulher Sem Pecado, montagem do Grupo Tapa para a peça de Nelson Rodrigues (1941), acerta ao tratar o texto de estreia do dramaturgo não como um simples registro histórico, mas como um microscópio cirúrgico e amoral sobre as dinâmicas por vezes tóxicas do casamento brasileiro. A força dessa encenação reside no rigor de preservar o cinismo intrínseco do autor, que já lançava o embrião de temas que viriam a construir sua obra bibliográfica. Porém, sob os olhos de 2025, também revela um incômodo anacronismo que custa a resistir ao tempo.

A trama se concentra na neurose de Olegário (André Garolli), um empresário confinado a uma cadeira de rodas que transforma o ciúme em um exercício de tortura psicológica. Sua condição física se converte em obsessão pelo controle da alma e, sobretudo, do pensamento de sua jovem esposa, Lídia (Eugenia Granha). O protagonista a espiona por meio dos empregados – o motorista Umberto (Bruno Barchesi) e a empregada Inézia –, transformando o lar em um palco claustrofóbico de seu próprio delírio, que transita entre o real e o imaginário.

Essa neurose de Olegário é a semente que, assim podemos ver, floresceria no delírio de Alaíde (Vestido de Noiva), a personagem que se refugia na loucura e na alucinação para escapar de sua condição. O empresário ciumento injeta ideias perversas na mente da esposa, A Mulher Sem Pecado. Ele a provoca com o apelido de “V-8” e até a incita a “beijar em pensamento” outros homens. Esse tipo de relação tóxica, ainda hoje atual, força a personagem a se defrontar com um precipício moral.

Cena de “A Mulher Sem Pecado” – Foto: Ronaldo Gutierrez/ Divulgação

O diretor Eduardo Tolentino de Araujo afirma que a peça é, com “os olhos atuais, um libelo feminista”. De fato, a fala de Lídia sobre o abandono e o vazio do seu casamento – “Você não soube ser marido! Ainda hoje, eu quase não sei nada de amor” – é uma síntese da opressão feminina. Mas esse texto, ao ser lido hoje, exige uma leitura cínica sobre a resolução de seu conflito. Lídia, saturada pela tortura psicológica e pela repressão sexual imposta, buscará uma fuga. O clímax da peça, que chocou o público em 1941, não deve ser revelado – para não dar spoiler, recorrendo a um termo amplamente conhecido de 2025. É sintomático ver que Lídia se liberta, mas parte para outra prisão.

Ou seja, se Olegário é punido, Lídia, de fato, não se liberta por completa. Ela apenas troca a neurose da castidade pela violência do desejo. O ‘pecado’ dela não é a traição, mas a sua absoluta falta de escolha na busca pela felicidade. Sua escolha final está longe de ser empoderada, mas traduz uma resposta a um trauma que a obriga a cumprir a profecia de seu algoz.

O Grupo Tapa, fiel ao seu estilo canônico de revisitar clássicos da dramaturgia – como fez com Tio Vânia, de Tchecov, e Brincando com Fogo, de Strindberg –, se vale de elementos minimalistas na cenografia, recriando um ambiente dos anos 1940. A direção de Tolentino, que valoriza a força do texto e a atuação, garante que o foco permaneça nas tensões e nos dramas psicológicos. O espectador de 2025 é convidado a testemunhar um marido que oprime os empregados e a esposa, e acaba por refletir que, mesmo no ápice da transgressão sexual rodrigueana, a mulher ainda é, tragicamente, o objeto de um jogo masculino, seja na tortura ou na fuga.

A Mulher Sem Pecado. No Teatro Nair Bello (Shopping Frei Caneca), às sextas-feiras e aos sábados (20 horas) e domingos (18). Até 7 de dezembro. Ingressos a 120 reais.

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