Estava nessa vida de colher maçãs quando viu na cidade de Perpignan, num bar, um cartaz de recrutamento da Legião Estrangeira. O cartaz tinha um brasão vermelho e uma inscrição em latim: “Legio Patria Nostra”. A Legião é nossa pátria. “Contei as últimas pesetas e entramos, eu, Fernandes (um português), Cavalcanti (alagoano) e Melhen Eid (libanês)”, ele me disse quando o entrevistei, já em minha casa em São Paulo, com a intenção de publicar na Folha de S.Paulo sua história no regimento. O artigo saiu numa quinta-feira, 6 de abril de 1989, eram as palavras dele e eu vou deixar que ele fale por si.
“O sargento de plantão me explicou, rapidamente, que havia um contrato de cinco anos e que, ao final dele, eu teria cidadania francesa. Disse-me que o soldo era de 1,5 mil francos, cerca de 250 cruzeiros novos. Assinei tudo sem pestanejar. De lá, mandaram-nos a Marselha, onde fizeram uma sabatina física”. O quartel de Marselha ficava no bairro de La Malmousque, no Chemin du Génie.
O quartel de Marselha tinha capacidade de 100 permissionários, albergados em quartos individuais ou coletivos.
“Desfrutando de uma situação privilegiada à beira do mar, frente às ilhas duFrioul, o centro oferecia algumas das mais belas paisagens de Marselha”, definia uma propaganda da pousada que aquilo viraria anos depois. Jack ficou ali durante um tempo para se preparar para ir ao front, rumo a alguma campanha belicosa, mas não tinha a menor intenção de colocar nem sequer uma unha a prêmio. De lá, enviaram Jack a Aubagne, a 17 quilômetros de Marselha, na Provence. “Recebi uniformes e dois dias depois estava em Aubagne, onde passei 30 dias lavando pratos e colhendo uvas”.
Depois dessa fase de aclimatação, movimentaram a tropa dos novatos para Castelnaudary, a 50 quilômetros de Toulouse, já perto do Mediterrâneo, em um aglomerado de construções em pátios imensos e encravado dentro da chamada “zona morta”, regiões designadas pelo governo francês para atividades militares. Eram 62 novos recrutas, no início.
“Nosso grupo contrastava com os antigos. Esses pouco falavam, eram violentos e, se você demonstrasse fraqueza, hesitação ou medo, quebravam-lhe alguns ossos só para mostrar sua solidariedade. Havia um cabo libanês que me odiou ao primeiro olhar. No primeiro mês, ele invadiu o alojamento e fez o grupo pagar flexão sob a neve, sob dois graus negativos, sem agasalhos. No segundo mês, depois de uma sessão maciça de manobras militares e humilhações, um garoto francês, Eric Remes, cortou os pulsos para conseguir baixa”, contou meu irmão.
Ele disse que, em Castelnaudary, faziam o diabo com os recrutas, mas forravam bem seus estômagos: croissants, geleias, coelho assado, filé com molho de champignons e até cerveja nas refeições e vistas grossas para o haxixe nos momentos de digestão. Mas o ritmo de preparação era inclemente: tinham que fazer marchas de até 50 quilômetros por dia, repetir operações de limpar armas dezenas de vezes.
“Um dia, após uma marcha, o cabo libanês entrou no alojamento e ‘achou’ lama nas minhas botas. Empurrou-me e eu o acertei. O cabo foi se encontrar com o guarda-roupas, quebrando a porta. Meia hora depois, eu estava na prisão. Não era um calabouço medieval, como pensei a princípio. Era um lugar confortável, com revistas novas, e dois dias lá me pareceram uma licença”.
No quarto mês, dos 62 recrutas iniciais, só tinham sobrado 29. “Nenhum era bandido. Eram apenas estudantes (Pierre, que deu baixa ao mesmo tempo que eu, cursava o 4º ano de Medicina quando se alistou) ou vagabundos festivos em busca de emoção e alguns trocados”. Havia muitos libaneses e marroquinos entre os recrutas. “Não é difícil morrer na Legião. As atividades são tão incessantes quanto inúteis, e é necessário uma força sobre-humana para sobreviver àquilo”, ele contou. “Depois que acertei o cabo libanês, as coisas melhoraram muito”.
Quando o amigo Pierre conseguiu baixa, por intervenção de um prefeito que era amigo do Ministro da Justiça, Jack deu um jeito e se mandou junto com ele. Ficou em sua casa um tempo, e de lá me mandou um pacote com um hinário da Legião Estrangeira e uma carta dizendo que estava voltando para Barcelona ou iria para Madri por um tempo. “Jack saiu daqui há uns 15 dias numa tarde cheia de neve. Tinha as botas quentes e 5 mil francos no bolso”, me escreveu o francês quando busquei notícias. Depois, meu irmão sumiu de novo.
(Trecho do livro O Último Pau de Arara, de Jotabê Medeiros, Grafatório Edições, 2020)
Jackson Medeiros (1964-2017)