Quase 25 anos após o lançamento de O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, chegou às salas de cinema nesta semana O Auto da Compadecida 2, do mesmo Guel Arraes e de Flávia Saraiva, divulgado como uma homenagem à minissérie e filme de 2000. Quando o primeiro filme é um sucesso de crítica e público, como foi no caso de O Auto da Compadecida, os riscos de se fazer uma continuação são enormes, muitas vezes representando um convite à frustração de um público com altas expectativas. Recentemente, Coringa 2 caiu nessa armadilha. Independentemente da vontade do diretor de usar a continuação para pagar tributo ao primeiro filme, exaltando a sua importância, ou para tentar desfazer os efeitos indesejados que o primeiro filme causou, a sensação que fica é que não há nada de novo a acrescentar. As referências infindáveis ao primeiro filme tornam o segundo cansativo e aumentam as suspeitas de que tudo não passa de um grande caça-níquel.
Muito poderia ser dito sobre O Auto da Compadecida 2, suas qualidades e seus defeitos. Há algo, entretanto, que chama mais a atenção, tratando-se supostamente de um filme que celebra o universo de Ariano Suassuna. O que o roteiro de Guel Arraes, João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado parece fazer é muito mais um mergulho no universo de Dias Gomes. Em suas obras, assim como Ariano, Dias Gomes também aborda de forma satírica o coronelismo e critica o clero corrupto da Igreja. Mas O Auto da Compadecida 2 não fica apenas nisso. O enredo principal gira em torno do turismo que se formou em Taperoá e da devoção religiosa à figura de João Grilo (Matheus Nachtergaele), em razão do milagre de ter ressuscitado graças à intervenção de Nossa Senhora (Fernanda Montenegro), após ter sido morto quando a cidade foi invadida por cangaceiros.
Em O Auto da Compadecida 2, Chicó (Selton Mello) vende souvenirs e serviço de guia, enquanto os dois líderes políticos da cidade buscam lucrar com o mito de João Grilo, às vésperas das eleições. A volta de João Grilo mexe, portanto, não só com o mercado turístico e da fé, mas também com a correlação de forças políticas. João Grilo, ciente disso, sabe manipular a história e entregar para o “povo” o que ele quer e/ou precisa para manter o mito vivo, ainda que ele precise morrer, simular sua morte ou ressuscitar inúmeras vezes. Em O Auto da Compadecida 2, portanto, João Grilo tem um quê de Roque Santeiro, um artesão que esculpia imagens sacras e que teria morrido ao defender a cidade de Asa Branca de bandidos, o que gerou um culto religioso à sua imagem, um comércio lucrativo de produtos relacionados ao “herói” e até a vinda de uma equipe de cinema para contar sua história, tal como Chicó conta em versos de cordel a história de João Grilo. Ocorre que, na peça teatral e telenovela de Dias Gomes, Roque Santeiro não havia morrido e sim fugido e sua volta a Asa Branca tem o potencial desastroso de acabar com o mito, contrariando interesses políticos e comerciais.
O Auto da Compadecida 2, de certa forma, também se aproveita do culto popular ao primeiro filme para lucrar. É simbólico, assim, que tenham ressuscitado O Auto da Compadecida justamente com esse enredo. Com o recurso metalinguístico usualmente adotado por Guel Arraes, mas também com humor autodepreciativo e se antecipando a prováveis críticas, o filme, na voz de um de seus personagens, referindo-se à segunda “história” de João Grilo, assume que muitos ainda preferirão a primeira.
De qualquer forma, a principal subversão de O Auto da Compadecida 2 reside em sua trilha sonora. A trilha sonora do primeiro filme, executada pelo grupo SaGrama, é marcada por temas instrumentais na escala melódica “nordestina” e traz instrumentos musicais tradicionais como viola nordestina, rabeca e pífano. Já a trilha sonora da continuação traz canções que invadem as cenas, tomando o protagonismo, algumas por mais de uma vez. Se “Canção da América”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, é uma escolha bastante clichê para retratar a amizade de João Grilo e Chicó e pouco tem a ver com o universo de Suassuna, “Como Vai Você”, de Antonio Marcos e Mário Marcos, na voz de Chico César, parece ter sido tirada de uma eventual continuação de Lisbela e o Prisioneiro, também dirigido por Arraes, que traz em sua trilha justamente canções do mesmo universo de Antonio Marcos, como a romântica “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, de Fernando Mendes.
Ariano Suassuna, um árduo defensor da junção da cultura erudita com a dita cultura popular, de “raiz”, autêntica e pura, repudiava aquilo que entendia como música de massa, comercial, descartável, associada a gêneros como o calipso, o funk e o forró eletrônico ou estilizado, chamado pejorativamente de “forró de plástico” por Chico César, que, assim como Suassuna, também foi secretário estadual de Cultura (da Paraíba e de Pernambuco, respectivamente). Os inflamados discursos de Ariano contra o que ele considerava modismos musicais importados renderam vídeos que viralizaram e até memes, que ajudaram a consolidar a imagem de Suassuna como personagem.
A maior ironia da trilha sonora de O Auto 2, assim, é ouvir justamente a voz de João Gomes, o rei do piseiro, na citada “Canção da América”, e ainda por cima no ritmo do próprio piseiro, um gênero eletrônico, em um contexto em que pesquisadores como GG Albuquerque criticam Mãeana por supostamente higienizar a obra de João Gomes para deixá-la mais palatável ao gosto da classe média branca. É nesse momento que, talvez em busca de uma atualização da obra, O Auto da Compadecida 2 se mostra mais iconoclasta, uma verdadeira homenagem contra Ariano, que se completa na figura de Clarabela, a inédita personagem cômica de Fabiula Nascimento. Trata-se de uma artista, filha de coronel, que fetichiza a arte autêntica popular e naïf sertaneja. É nela que Ariano ressuscita.
(Danilo Cymrot é pesquisador cultural, doutor em direito pela USP e autor de O Funk
na Batida – Baile, Rua e Parlamento (Edições Sesc, 2022), finalista do Prêmio Jabuti.)
Muito bem, meu Grande Parceiro!
Feliz por conhecer o Farofafá!