“Um índio”

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Único indígena, anônimo, representado no Museu do Exército, no Forte de Copacabana

No terceiro dia de 2025, uma fila serpenteante se forma entre o calçadão de Copacabana e a entrada do Forte de Copacabana, com cerca de 1 a 1,5 mil pessoas, grande parte de estrangeiros. Com 114 mil m² e 40 mil m² de área construída, o Forte de Copacabana abriga o Museu do Exército e é um dos pontos mais visitados por moradores e turistas que vão ao Rio. É compreensível: dali se tem a melhor vista da orla de Copacabana, dos banhistas e da agitação, mas está ao mesmo tempo protegido desta. É uma estrutura singular da chamada Ponta da Igrejinha, encimada por um gigantesco canhão apontando para a baía, com usina elétrica, alojamentos e câmaras de tiro, estacionamentos solares capazes de abrigar até uma rave, e dali se avista também, lá do outro lado, a Pedra do Arpoador em sua pétrea determinação de separar os realmente abonados do resto do mundo.

A construção do complexo, que inclui museu, uma filial da Confeitaria Colombo e restaurantes e cafés, foi iniciada em 1908, inaugurada em 1914, e é uma joia de representação do Exército brasileiro, um dos mais cintilantes cartões de visita das Forças Armadas. É um passeio trivial de turista, e praticamente obrigatório, pela funicular localização. Os soldados-receptivos são bem treinados e afáveis com os turistas, o preço da visita é bom (10 reais), os jardins são um convite ao relaxamento.

O Forte de Copacabana se arroga guardião de episódios conflituosos da História que marcaram a cidade do Rio e o Brasil. Chegou a ser a mais poderosa fortificação da América Latina durante o século 20. Sua edificação foi concluída pelo então presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca, responsável pelo extermínio registrado na Revolta do Contestado, em Santa Catarina, a partir de 1912. O Forte foi palco de eventos históricos tais como o levante dos Dezoito do Forte em 1922 e a prisão do presidente Washington Luís, deposto por um golpe de Estado em 1930.

Mas, apesar do intróito acima, a questão de que vamos tratar aqui não é de recomendação turística, mas, porventura, de aconselhamento histórico. Para além da sua exuberância física, o Museu do Exército de Copacabana é uma estrutura museológica obsoleta de objetivos mais obsoletos ainda. É praticamente um Manual do Golpe de Estado seccionado. Um governo de compromissos democráticos investiria pesadamente na reformulação da visão histórica que o Exército brasileiro exala, a partir daquele sítio, para o público externo. Uma das frases contidas num video demonstrativo no início da viagem resume esses equívocos: as Forças Armadas afirmam que quase todas as coisas que o País experimenta ao longo dos anos (veladamente, refere-se a governos, partidos e estadistas) são passageiras, apenas ao Exército se atribui a função eterna de guardar a Pátria. Isso é uma inverdade: a única força que tem a incumbência eterna de guardar os destinos da pátria é o povo brasileiro. O Exército é uma de suas instituições.

O Museu do Exército ocupa três andares do prédio principal do complexo. Na primeira sala, há réplicas que se assemelham a uma coleção de Hot Wheels, miniaturas de armas e tanques, entre outros apetrechos, em vitrines. Já de cara, se distingue um pequeno canhão Krupp 7,5 de retrocarga. Trata-se da arma fatal que liquidou com os sertanejos da comunidade de Canudos, na Bahia, no final do século 19. O canhão Krupp que exterminou cerca de 20 mil pessoas, entre elas mulheres e crianças, era apelidado de “A Matadeira”. Foi uma ação vergonhosa do militar que está na base da fundação do nosso complexo conceito de República. 

Em suas investidas de Museu de Cera, o Museu do Exército possui bonecos em tamanho natural de seus grandes vultos. Luís Alves de Lima e Silva, o escravocrata e elitista Duque de Caxias, evidentemente, pontifica entre eles. O patrono das Forças Armadas ostenta ali, contraditoriamente, o título de “O Pacificador”. Responsável pelo extermínio de 10 mil pessoas na chamada Balaiada, no Maranhão, em 1838; pelo Massacre de Porongos, no Rio Grande do Sul, no qual cerca de 1.700 lanceiros negros foram executados, além das incursões criminosas no Paraguai, um dos atos mais vergonhosos de uma força militar internacional neste Hemisfério.

É hora de questionar-se essa ascendência do Duque de Caxias como figura simbólica construtiva. Nenhuma Nação, mesmo reconhecendo a especificidade histórica da formulação de atos e ações de Estado, prossegue cultuando visões nocivas e superadas da diversidade cultural. Nos Estados Unidos, por exemplo, a figura anteriormente inquestionável do General George Armstrong Custer é hoje amplamente reexaminada à luz das verdadeiras intenções que seus atos escondiam – no caso das expedições exterminadoras de indígenas nas Black Hills, o interesse comercial pelas minas de ouro a que o povo indígena Lakota atrapalhava o acesso.

A volúpia tenentista pelos golpes também é homenageada no museu em um aquário especial de conspiradores. Na proximidade do 8 de janeiro, data que marca a última tentativa de golpe de Estado no Brasil, é imperioso perguntar: o que leva um museu a tratar como heróis militares insubordinados e autocentrados, confiantes em uma ideia de que são superiormente ungidos para tratar as eventuais hesitações das instituições civis?

O capitão sertanista Pedro Teixeira (1570-1641), o chamado “Conquistador da Amazônia”, é lembrado com grande destaque numa das salas mais retrógradas da exposição permanente do Museu do Exército. Escravizador de indígenas, Teixeira é lembrado como responsável visionário pela expansão das fronteiras do Norte. Em 28 de outubro de 1637, com uma expedição integrada por mil e duzentos indígenas cativos (incluindo mulheres e crianças) e apenas 70 soldados portugueses, Teixeira foi de Cametá, no Pará, até Quito, então Vice-Reino do Peru, para estabelecer limites de conquista.

O mais irônico nessa sala na qual Pedro Teixeira pontifica é que há somente um boneco representando um indígena no “aquário” dos desbravadores & bandeirantes. Ele está em posição inferior, agachado, entre os conquistadores armados. Olha para o alto, para um ponto no céu. Ele é identificado apenas como “um índio”. É talvez o ponto mais esclarecedor da visita: de tudo que o espírito belicista brasileiro produziu, em cinco séculos, é a mirada do indígena para o futuro, para algum ponto de sua cosmogonia infinita, o que nos resgata dessa tentativa de tutela histórica.

O Forte de Copacabana não abriga apenas o elogio do genocídio interno. Está registrada ali, de forma cenográfica, a tenaz ação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial em território italiano, uma luta contra o fascismo global. Mas comparece ali congelada, sem sutileza, privada dos grandes avanços da tecnologia expositiva. Também não se nutre da força narrativa de memoráveis correspondentes de guerra que cobriram de perto o conflito, como foi o caso do notável Joel Silveira para os Diários Associados, relato imortalizado no livro O Inverno da Guerra. A verdade é a única força que pode se contrapor à névoa do autoritarismo, seja ele de que natureza for.

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