‘Torto Arado, o musical’ e mais que isso

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Larissa Luz interpreta Bibiana, na peça "Torto Arado, o Musical" - Foto: Caio Lírio/ Divulgação
Larissa Luz interpreta Bibiana, na peça "Torto Arado, o Musical" - Foto: Caio Lírio/ Divulgação

Torto Arado, o Musical, são duas peças em um só espetáculo. Aprovada e elogiada pelo autor da obra, Itamar Vieira Junior, a montagem é mais uma das produções culturais que brotam da singular saga de duas irmãs quilombolas que representam uma síntese de um Brasil ainda às voltas com feridas abertas da escravidão. Muito tem-se falado do musical, e com razão. A cantoria começa com o Coro dos Encantados, uma evocação a partir de cantigas tradicionais do Jaré, passa por outras 22 canções e se despede com Depois do Final, uma celebração ao direito de viver. A sonoridade é marcante. Mas é teatro também. Teatro na sua essência de contar com personagens complexos, dramaturgia sofisticada, cenografia, figurinos e iluminação que adensam o palco e, acima de tudo, uma narrativa que transborda.

Quem teve a sorte de assistir ao espetáculo (os ingressos se esgotaram meteoricamente), pode dizer se rotular de “musical” é suficiente para dar conta do que se viu. Melhor dizer é a “imagina-ação”, surrupiando a expressão utilizada por Elísio Lopes Jr, diretor e dramaturgo da peça. Ele próprio lembra que o livro Torto Arado propiciou o surgimento de dezenas de outras produções culturais e que esta é mais uma delas. “É a nossa tradução, o nosso recorte, é um caminho descalço numa estradinha estreita de barro, com cercas de arame farpado por todos os lados”, afirma.

Bibiana (Larissa Luz) e Belonísia (Bárbara Sut) são as personagens de "Torto Arado, o Musical"
Bibiana (Larissa Luz) e Belonísia (Bárbara Sut) são as personagens de “Torto Arado, o Musical” – Foto: Caio Lírio/ Divulgação

No Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis, seis músicos tomam seus lugares nos cantos do palco, cujo chão em declive remete a um terreno acidentado, uma metáfora à história em si que se passa no sertão baiano, nas paragens onde muito se imagina, mas poucos as conhecem. Bibiana e Belonísia, duas irmãs baianas, têm suas vidas entrelaçadas a partir de um trágico episódio na infância. A essa altura do campeonato, muitos devem saber em detalhes o que se passou, mas convém não estragar a experiência sensorial de ler, ver ou ouvir essa história por sua própria iniciativa. Pode-se dizer, apenas, que uma dependerá da outra para ser sua representante no mundo e, acima de tudo, nas lutas empreendidas pelos povos quilombolas.

A inventividade da trama de Itamar Vieira Junior é mostrar que essas duas personagens tão distintas e umbilicalmente ligadas entre si representam com toda força a luta de povos subjugados por questões ligadas à escravidão, ao racismo, às desigualdades, às forças destrutivas de uma sociedade movida a dinheiro, a eterna luta pela terra. Belonísia (interpretada por Bárbara Sut) depende de sua irmã, Bibiana (Larissa Luz), para expressar o que está dentro de seu corpo e sua alma. Ao mesmo tempo, ela consegue dizer muito em cena, fruto de uma dramaturgia sutil criada por Fábio Espírito Santo e Aldri Anunciação. As duas são mulheres fortes, guerreiras e sonhadoras.

Na fricção entre o livro e a peça, resta um espetáculo de forte sotaque baiano, muito por sorte de o diretor musical Jarbas Bittencourt ter uma longa trajetória com contribuições para o Teatro Negro Brasileiro, o Bando de Teatro Olodum (BA) e a Cia dos Comuns (RJ). A peça que nasceu em Salvador vai além da recriação das cenas tão bem escritas por Itamar Vieira Junior. Alguns hão de achar que a obra original é muito maior e que, por essa razão, o musical deveria entregar ainda mais. O público que lotou as exibições certamente irá discordar. E eu também.

Torto Arado. De Itamar Vieira Junior. No Sesc 14 Bis.

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