Antonio Cícero: para onde nos levam os poetas?

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Antonio Cícero (foto de Eucanaã Ferraz)

Todo amor
Vale o quanto brilha

E o meu brilhava
Brilha de joia e de fantasia

O descenso de poetas é um fenômeno relativamente novo para a volúpia das redes sociais. Morrem os rock stars, morrem os astros da MPB, morrem atores laureados, morre publicitário famoso, até milionários em submarinos, e o mundo se enche de prantos de inesperada intensidade, de copiosas unanimidades. Mas poeta é mais raro, até porque poeta sempre foi artigo de suprema escassez – como vivem, do que se alimentam, onde será que trabalham? 

Morreu ontem o poeta Antonio Cícero, apenas 17 dias após seu aniversário de 79 anos, um mês após a morte de Armando Freitas Filho (1940-2024). Ambos cariocas, indeslocáveis, ambos fundamentais no estabelecimento de um diálogo entre a linguagem fluida do cotidiano e o rigor do pensamento filosófico, da proposição existencial. 

Cícero escolheu lugar e hora para morrer: na Suíça, de eutanásia, no mesmo local em que Jean-Luc Godard (1930-2022) anunciou sua própria extinção, há dois anos, declarando: “Morremos sós, aproveitem o dia”.

No blog que Cícero manteve, Acontecimentos (não por acaso, nome da canção mais bonita para a qual ele fez letra), é possível ver que alguns dos poetas que ele mais frequentemente mencionou ao longo de sua escrita foram Drummond, Ferreira Gullar, Armando Freitas Filho e Paulo Leminski. Cícero trata da importância deles no ensaio A Poesia e A Crítica, de 2017. Todos esses autores, especialmente o último, foram poetas do combate corpo-a-corpo, de campo. Quero dizer: forjaram parte expressiva de seus poemas com o intuito de fulminar o homem comum distraído, especialmente aquele que nunca prestara atenção na poesia antes. Biscoitos finos para as massas. Desses poetas, o que se enfileira com mais exatidão nas frentes de combate de Cícero foi Paulo Leminski, mas Ferreira Gullar também ocupou essa trincheira que destaca a conjunção entre música e letra, som e poesia.

Poeta carioca oriundo de um lugar bem longe do proletariado, Cícero não legou somente versos imortais. Há algumas boutades também, coisas bairristas e insulares, como por exemplo “e o inverno no Leblon é quase glacial”. Ele reinou, nas canções da irmã, Marina Lima, em um território deliberadamente hedonista, disfarçadamente alienado, mas traficando aqui e ali um estilhaço de Charles Baudelaire (À Francesa e seus Paraísos Artificiais) ou mesmo Shakespeare (Charme do Mundo, my love is a fever). 

O verso de Cícero mais famoso, que tingiu de tik-toks o mundo após o anúncio de sua morte, é “Você me abre seus braços e a gente faz um país” (da canção Fullgás, de 1984). Para se compreender esse slogan de doce individualismo é preciso compreender a circunstância em que foi concebido, no calor da campanha pelas Diretas Já, entre 1983 e 1984. Havia um sentimento, entre os jovens da época, de superação das bandeiras da militância política que lutou contra a ditadura – se a ditadura estava agonizante, era hora do desbunde, de reivindicar o tesouro das emoções espontâneas e pessoais. “Nada de mal nos alcança/Pois tendo você meu brinquedo/Nada machuca, nem cansa”.

Trabalhando sempre nessa poesia de interstícios, de intervenções concentradas por meio de, principalmente, canções (além da irmã, Marina, para outros intérpretes, como Lulu Santos, João Bosco, Bethânia, Caetano), Cícero foi um poeta que conseguiu impor um debate inconsciente sobre a inutilidade fundamental da arte e da poesia (“As coisas não precisam de você/Quem disse que eu/Tinha que precisar?) no mais amplo universo possível, o dos cidadãos comuns, o das canções pop mínimas, simples. Sua presença poética, que engrandecia os cenários vulgares, foi tão sutil que a gente quase esquecia dele.

Antonio Cícero foi um poeta gay. Entrou na Academia Brasileira de Letras, um bunker do conservadorismo, como o primeiro gay assumido. Mas sua poesia não era tingida pela fúria e o sangue de sua condição (como a de Roberto Piva ou Glauco Mattoso, por exemplo). Esse enfrentamento ele deixou para seu outro coté, o de filósofo. “Ora, é moralmente superior o indivíduo que, em virtude do amor à liberdade, superou a opressão dos preconceitos que secularmente pesam sobre o homoerotismo. Essa pessoa acaba, graças à sua ostensiva superioridade moral, por causar vergonha naqueles que, com base na escravidão à estupidez e à ignorância dos séculos, pretendem continuar a oprimir o homoerotismo. O ‘orgulho gay’ é o justo orgulho de quem funda a ética na liberdade, contra a escravidão. Quanto à bandeira gay, o símbolo do arco-íris, que é alto-astral e chique. E acho que os gays são uma elite bacana e privilegiada”.

Tradutor, educador, ensaísta, letrista, poeta, autor de O Mundo desde o Fim (Francisco Alves, 1995) e Finalidades sem Fim (Companhia das Letras, 2005), além de livros de poesias homoeróticas como Guardar (Record, 1996) e A Cidade dos Livros (Record, 2002), Cícero atuou como consciência intelectual e presença de cidadania. Não foi sempre progressista, é bom que se diga, mas teve uma atuação dialética e muito categórica nos enfrentamentos do seu tempo.

“A coisa mais importante que se descobriu na época moderna é o fundamento da ética e do direito, é a liberdade: liberdade de fazer tudo aquilo que não prejudique igual direito do outro. Aquele que tem por princípio máximo do seu comportamento a liberdade é moralmente superior àquele que tem por princípio a escravidão: à religião, à sociedade ou à tradição, pouco importa”. 

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1 COMENTÁRIO

  1. Muito bom o texto,eu só nunca entendi esse tal de ”orgulho gay’,orgulho de sentir apenas dor,a pior dor do corpo humano,sem contar a questão higiência,e o fato de termos de pagar para termos parceiros interessantes;quer dizer,eu vivo só,claro – Eu sempre digo que reencarnar gay é o pior carma do mundo,fui.

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