Jazz no Crato: ensaio de orquestra

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Egberto Gismonti ensaiando na tarde deste sábado, 21, a orquestra com a qual tocará no domingo, 22, no Festival Choro e Jazz do Crato, Ceará

“Eu precisava de três pedaços de um cano de PVC. Sabe essas mangueiras de jardim? Pode ser três pedaços de uma, mais ou menos desse tamanho”.

Egberto Gismonti deixa os 15 músicos da orquestra com a qual ensaia por um minuto e caminha para o fundo da sala em direção aos produtores fazendo medidas no ar com as mãos, como se tivesse solucionado um enigma. Ninguém parece saber exatamente no que serão utilizados os pedaços de mangueira de jardim – pode ser para calçar o teclado, pode ser para conectar o piano com a guitarra, já que (para o ouvido do maestro) estão se sobrepondo -, mas duas pessoas correm celeremente para fora da sala em busca do novo equipamento.

“Conduíte serve?”, pergunta um rapaz.

“É para um acorde?”, pergunta outro. Um dos músicos da curitibana Orquestra à Base de Sopro, que toca com Egberto já tem quase uma década, responde:

“Não necessariamente”. Os canos se destinam a criar um efeito no show, quando girados no ar.

Egberto, que vai completar 77 anos em dezembro, é um sagitariano atípico. Pode ser visto como um homem difícil, pelo nível de exigência que imprime a suas empreitadas artísticas, e pode ser visto também como um portal infalível para a excelência musical – um dos últimos grandes, diga-se de passagem. Sua música de invenção é reverenciada pelo mundo todo. Amplamente reconhecido como compositor, multi-instrumentista e arranjador, é dono de uma obra vastíssima e de uma diversidade quase inigualável. Tem quase 50 anos de carreira e mais de 60 álbuns gravados, discos distribuídos a 50 países pelo selo Carmo (por meio da alemã ECM Records), cujo nome revela a cidade onde nasceu, em 1947, a 185 quilômetros da capital: a pequena Carmo, no Rio de Janeiro. Autor de dezenas de trilhas sonoras para o cinema e de peças para orquestras, solista à frente das mais diversas formações, de grupos de jazz a grupos de câmara e filarmônicas, Gismonti é estrela em Montreaux, Paris ou Nova York ou no pé da Serra do Araripe, onde está nesse momento na magnífica Vila da Música, um refúgio criado inicialmente para educar filhos de camponeses do Cariri cearense. 

“A liberdade… Eu já falei isso. Várias vezes, os desencontros, tocando, se encontram. É uma coisa linda”, ele diz aos seus músicos, que prestam atenção rigorosa a seus scats de comando, sua postura de maestro que toca a si mesmo como um instrumento, dando cotoveladas no ar, solfejando como se espirrasse.

“Isso aí era o errado, e passou a ser o certo”, ele comenta, sobre o frevo que estão ensaiando nesse momento, cujo solo ele mesmo se certifica de que está ensaiado democraticamente com sua orquestra. Os dedos parecem voar sobre o teclado, uma intimidade de virtuose que ele não parece estar exibindo, apenas à procura de algo com uma lanterna de ouro nas mãos. “Acho que tinha uma diferença desse arranjo para o seu jeito de tocar”, explica o trompista, cauteloso. Egberto não vê problema em reconhecer a presença do erro como elemento de coesão. “Como nós estamos errando nas duas, basta escolher uma. Vamos na primeira”, diz o maestro, resolvendo mais um enigma.

Os músicos tentam orientar uns aos outros, com os olhos e cutucões, sobre qual a melhor abertura, e Egberto aponta ao contrabaixista um jeito de produzir uma espécie de slide rouco para coordenar os sopros. “Está melhorando”, comemora o maestro. Egberto Gismonti possui um vasto repertório de músicas que conquistaram gerações: Palhaço, Dança dos Escravos, Infância, Salvador, Zig Zag, Mestiço & Caboclo, Águas Luminosas, Forró & Forrobodó, Frevo & Karate, Sonhos de Recife. Há exatos 50 anos, ele gravou um disco, com letras do poeta Geraldinho Carneiro, então com 22 anos, que hoje assombra quem foi fã de rock progressivo naquela década, pela capacidade de antecipação sonora: Academia de Danças, produzido pelo alemão Manfred Eicher. Mais adiante, outro álbum memorável: Dança das Cabeças, em 1977, gravado com a participação do percussionista Naná Vasconcelos. Flautas de madeira, berimbau, violão de 8 cordas, sons das comunidades originárias do Xingu (onde ele viveu): a aventura musical de Egberto Gismonti é um capítulo à parte na tradição musical do Brasil.

Daí, talvez, o motivo pelo qual sua presença cause tanta expectativa. No ensaio de orquestra no sopé da Serra do Araripe, os admiradores escondem os discos que trouxeram para pedir autógrafos, receosos. Mais de 700 estudantes de música frequentam atualmente a Vila da Música do Crato (gerida pelo Instituto Dragão do Mar, de Fortaleza), uma experiência criada por um religioso, Padre Ágio Moreira, que foi adotada pelo poder público e hoje abre as portas para todos os interessados em aprender – filhos de quilombolas, aposentados da Barbalha, jovens universitários, crianças indígenas.

Na tarde de sábado, 21, um dos maiores educadores da música que o Brasil já produziu está na área. Todos querem ver o ensaio da orquestra. “Vocês têm certeza que a que escolheram é a mais conveniente?”, pergunta Egberto aos músicos da Orquestra à Base de Sopros. Está claro que isso ainda vai demorar (somente a previsão para a passagem de som de Egberto era de 2h30), mas ninguém arreda pé.

A preparação para o show, agora já no domingo, 22, não é menos tensa. Egberto testa seu Fritz Dobbert algumas horas antes da apresentação e constata que está desafinado. O rapaz da afinação é chamado, mas tem pouca experiência e fica inseguro: como deixar o instrumento no ponto para um artista com tal nível de exigência? Insatisfeito, Egberto olha para o rapaz que se apresenta para afinar o piano com alguma hostilidade, sente a hesitação. Mas o deixa trabalhar e vai dar um passeio para espairecer. Quando finalmente o chamam para testar o instrumento, toca durante alguns minutos e faz uma cara séria. Suspense. “Está ótimo. Meus parabéns”, diz ao afinador. O rapaz, trêmulo, confidencia a um produtor, aliviado: “Acho que vou ali atrás chorar um pouco”. Mas Egberto quer uma nova afinação pouco antes de entrar em cena.

Quando finalmente sobe no palco, Gismonti surge como uma entidade. Ao piano, anuncia que ficou animado em prestar alguns tributos (após ouvir o trio de Maurício Carrilho tocando choros clássicos) e que vai começar pelo Olimpo da música. Toca Carinhoso, de Pixinguinga. Depois, Retrato em Branco e Preto, de Tom Jobim. Toca ainda Villa-Lobos (Dança – Miudinho – 4º mov. das Bachianas brasileiras N° 4) antes de anunciar que os nomes do mais elevado panteão esgotaram-se. “Agora, vamos ficar com os reles mortais”. E brinda o público com uma linda versão de Maracangalha, de Dorival Caymmi. Todos podem entrar no Paraíso de Egberto Gismonti, mas só os tenazes sabem o custo desse manjar dos deuses.

CHORO E JAZZ NO CARIRI

No Festival Choro Jazz, o frevo, o xote, o forró e as bandas de pífanos se juntam ao bandoneón piazzoliano e ao rock progressivo e nada parece fora de contexto na visionária primeira edição dessa tradicional mostra no Sertão do Cariri, na cidade do Crato no Ceará. , uma mostra que aconteceu durante todo o transcorrer dessa semana e fechou neste domingo, 22, com a apresentação de Egberto Gismonti e orquestra. Incrustrado nas instalações do Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo, um complexo de cultura e lazer baseado em um edifício restaurado que foi construído por religiosos alemães na década de 1940 (abrigou o Seminário da Ordem da Sagrada Família até 1969; em 1973, passou a abrigar o Hospital Manoel de Abreu, desativado em 2014), uma infraestrutura de mais de 50 mil metros quadrados, o festival é um delírio democrático.

Ao juntar a cultura popular tradicional e originária do Cariri, um dos celeiros da cultura brasileira, a um painel abrangente de toda a música que se faz no País, de Norte ao extremo Sul, o Festival Choro Jazz aponta para uma democratização da cultura que parece longe ainda dos radares da maioria dos Estados brasileiros. O complexo conta com espaços expositivos, estúdios, apartamentos para residências artísticas (há alguns estrangeiros fazendo reesidência ali, conta Américo Cordula, gerente de teatro do Centro Cultural do Cariri), rádio-escola, salas de formação, palco para espetáculos e projeções de cinema e ateliê de artes e ofícios. A área externa, por sua vez, tem o lazer como o forte, com equipamentos esportivos, passeios, pistas de skate, quadras de areias, uma imensa área verde e do equipamento voltado especificamente para o público infantil, a brinquedopraça, que integra o Programa Mais Infância Ceará.

O repórter Jotabê Medeiros viaja a convite da organização do Festival Choro Jazz

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