Para quem está à procura de bons espetáculos teatrais, nestas quarta (18), quinta (19) e sextas-feiras (20), o Festival Mirada traz a São Paulo três espetáculos internacionais que valem o ingresso. Trata-se, pela ordem, de produções uruguaias (Tierra, de Siergo Blanco, no Sesc Vila Mariana), argentina (Sombras, Por Supuesto, com a Compañía El Silencio e Romina Paula, no Sesc Belenzinho) e peruana (El Presidente Más Feliz, de Cristina Velarde, no Sesc Consolação). Dispersos nas unidades da capital, os espetáculos representam uma última oportunidade para quem perdeu o já consagrado encontro cênico que o Sesc Santos promove de dois em dois anos.
O Extensão Mirada, como é chamado esse chorinho de apresentações, traz também peças que estrearam nacionalmente na Baixada Santista e agora vão cumprir temporada em São Paulo. Monga foi bem recebida em Santos, e leva ao palco a história de Julia Pastrana, uma mexicana que tinha o apelido de “mulher macaco”. A atriz cearense Jéssica Teixeira não quer recontar a vida triste dessa personagem, que era vista como “freak”, mas discutir o estranhamento causado pelo valor que se dá ao corpo e à aparência. Monga estreia no Sesc Avenida Paulista a partir de 26 de setembro e vai até 27 de outubro.
Com tiro curto, VAPOR, ocupação infiltrável, traz a fusão entre a capoeira e o breaking num espetáculo que remete à cultura periférica brasielira. Em danças atonais, não simétricas, o grupo Original Bomber Crew veio também de uma periferia aos olhos sudestinos: Piauí, o Estado e não a revista. Como mote maior, o “vapor” a que se refere o título do espetáculo é uma referência à vida de muitos jovens que são notados para logo desaparecerem no ar. Serão apresentações no Extensão Mirada de 19 a 22 de setembro também no Sesc Avenida Paulista.
Outro espetáculo apresentado como Extensão Mirada é Parto Pavilhão, que se trata de uma reestreia. A peça dirigida por Naruna Costa e escrita por Jhonny Salaberg, sobe ao palco do Sesc Pompeia depois de duas apresentações em Santos. Em cena, a atriz Aysha Nascimento, cofundadora da Cia dos Inventivos e do Coletivo Negro, interpreta uma enfermeira que ajuda presas a terem seus filhos no cárcere. Para quem não sabe, as mulheres grávidas que estão detidas têm os filhos, podem amamentá-los, mas seis meses depois são afastadas deles. A peça, que foi indicada ao Prêmio Shell 2024, vai ficar em cartaz até 18 de outubro.
Um olhar sobre a 7º edição
Há 14 anos, o Sesc Santos promove o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas. A ideia é reunir em duas semanas as produções teatrais de países latinos e ibéricos para friccionar as linguagens que um lado e o outro do Atlântico estão produzindo. Em cada edição, há um homenageado. Neste ano, foi o Peru, um país que trouxe ao Brasil oito produções, entre eles o espetáculo de rua El Teatro Es un Sueño, do grupo Yuyachkani, e a peça Esperanza, de Marisol Palacios e Aldo Miyashiro. Ambos são obras políticas, em que a história recente dos nossos vizinhos é levado ao palco para lembrar que não é preciso muito para desestabilizar democracias.
A convite do Sesc Santos, FAROFAFÁ foi conferir mais uma vez o festival Mirada. Na edição passada, em 2022, o país homenageado foi Portugal. Aquela escolha naturalmente invocou uma série de reflexões em meio às celebrações do Bicentenário da Independência (que foram pífias) e à tentativa de reeleição de Jair Bolsonaro (que fracassou). Como pano de fundo, nas trocas propiciadas pelo festival sempre está a ferida da colonização que perpassa as nações latino-americanas.
O Brasil possui um conjunto considerável de festivais de artes cênicas, entre eles os de Curitiba, Rio Preto (FIT), Belo Horizonte (FIT-BH), Porto Alegre em Cena e a Mostra Internacional de Teatro (MIT-SP). O que existe em comum entre eles é a possibilidade de trocas para a classe teatral, tanto para apresentar suas obras ao grande público quanto para interagir com artistas e produtores de outros países.
Se algum artista de um país vizinho pode assistir a uma das duas apresentações de Azira’i, que a atriz Zahy Tentehar levou ao palco do Teatro Guarani, certamente se admirou com a performance. Apresentando pela primeira vez o espetáculo (Melhor Atriz e Melhor Iluminação no Prêmio Shell 2023) para seu filho, Zahy faz de seu solo uma singela homenagem à sua mãe, a primeira mulher pajé da reserva indígena de Cana Brava, no Maranhão. Sem concessões, ela alterna falas em português com Ze’eng eté (sem legendas), língua que herdou de seu povo, uma forma de impor uma visão de que nem tudo deve reproduzir o colonialismo ao qual estamos acostumados. Bom para o público, que acaba usufruindo dessa sinergia e desse aprendizado.
Nas filas dos espetáculos, FAROFAFÁ ouviu elogios generosos da plateia. É um termômetro, mas bastante frágil. Os frequentadores do Mirada costumam admirar e defender o teatro. E é difícil não gostar de espetáculos como Tierra, por exemplo, em que o franco-uruguaio Sergio Blanco apresenta o que se espera dele: um palco “esportivo” para dar conta de uma história que vai se revelando aos poucos, desnudando o fazer teatral, com derrubada da quarta parede, e um drama que reflete sobre a morte – no caso, como encarar a perda de alguém muito próximo, a mãe do dramaturgo. E, de quebra, uma trilha sonora fantástica, que inclui Leonard Cohen.
El Teatro Es un Sueño é uma homenagem ao ator e à arte de interpretar, ainda que sob condições adversas. Com domínio de cena, o grupo peruano Yuyachkani sabe como prender a atenção em condições difíceis, como é o teatro de rua (dispersivo, por excelência). Já Sombras, Por Supuesto, que participa do Extensão Mirada, é uma tragicomédia. Corrigindo: comédia trágica, porque é esta a ordem da narrativa. Não demora para que a plateia compre a ideia de estar diante de uma cena surreal cômica, quando policiais invadem a vida de um casal e buscam provas de forma estabanada e heterodoxa. Mas a peça descamba, talvez para referenciar o cineasta Rainier W. Fassbinder, que inspirou a diretora Romina Paula, para um melodrama que apenas deixa perguntas no ar.
O que fica como saldo “devedor” da 7ª edição do Mirada é a repetição de uma fórmula que já se provou vitoriosa, mas não entrega mais do que o esperado. Isso tem se repetido em outros festivais, quase denunciando um esgotamento possível, mas não necessariamente real. A curadoria, sempre zelosa de uma boa programação, poderia apostar mais em novos nomes, de diferentes partes, até para não dar a sensação de foi-o-que-sobrou. Mais do que apresentar números, o Mirada tem a potência de desconstruir e reconstruir uma história de povos que têm em comum a luta pela resistência.