Nascido no seio da tradicional família Buarque de Holanda, o carioca Chico Buarque cumpriu desde muito moço a sina de se tornar uma contraparte intelectual para o maior ídolo romântico de sua época, o capixaba Roberto Carlos. Destinado ao mesmo tipo de romantismo, mas com verniz sofisticado, Chico não demorou a sair dos trilhos da fórmula tradição-família-propriedade ao gosto do autoritarismo militarista vigente. Como não era de se estranhar, rebelou-se e, de quebra, veio a atender aos desígnios bem mais exigentes da juventude das classes altas e médias de formação universitária. Isso distinguiria o artista e seus fãs do império pop do “rei do iê-iê-iê” que Roberto personificava enquanto a sigla MPB se encorpava. Criou-se assim o mito do bom moço branco, de olhos azuis, correto e intelectualizado, que Chico obedeceu e desrespeitou com intensidades comparáveis.
As primeiras contas do rosário de canções do cantor e compositor agora octagenário vieram ao mundo em 1965, quando criações românticas hoje esquecidas do jovem então com 21 anos foram gravadas por Maricenne Costa (“Marcha para um Dia de Sol”), Yvette (“Desencanto”), Maria Lucia (“Malandro Quando Morre“), Geraldo Cunha (“Marcha para um Dia de Sol“) e Maria Thereza (“Desencanto“), intérpretes hoje desaparecidos dos panteões da MPB. “Eu quero ver um dia numa só canção/ o pobre e o rico andando mão em mão/ que nada falta, que nada sobre/ do pão do rico e do pão do pobre”, proclamava “Marcha para um Dia de Sol”, sonhando com um porvir idílico e prenunciando ingenuamente o cancioneiro socialista que o infante Chico passaria a criar.
Foi em 1965 também que surgiu a primeira canção romântica destinada a se tornar um clássico buarquiano, “Sonho de um Carnaval”, que ganhou de imediato quatro versões inaugurais, gravadas por Alaíde Costa, Geraldo Vandré, Marisa Gata Mansa e Wilson Simonal. O próprio autor debutou no mesmo ano com esse samba de porvir pomposo e menos audaz que os da bossa nova, em seu primeiro compacto simples. Então uma promessa de ídolo popular, o paraibano Vandré foi o encarregado de defender a canção de Chico no I Festival de Música Popular Brasileira, na TV Excelsior – quem venceu foi Elis Regina, cantando “Arrastão”, do futuro parceiro constante Edu Lobo.
No lado A do compacto em que lançou “Sonho de um Carnaval”, Chico apresentou sua primeira canção de protesto, “Pedro Pedreiro“, situada em cenário operário desolador: “Pedro pedreiro espera o carnaval/ e a sorte grande no bilhete pela federal todo mês/ esperando, esperando, esperando, esperando o sol/ esperando o trem/ esperando o aumento/ para o mês que vem”. Ainda antecipando o LP de estreia, que sairia em 1966, o segundo compacto trouxe o meta-samba “Meu Refrão” no lado A e mais um clássico da fase romântica, o samba católico “Olê Olá”, no lado B.
O primeiro long-play Chico Buarque de Hollanda (com o “L” duplicado) veio ao mundo em 1966, já vitaminado pelo carro-chefe “A Banda”, marchinha ultra-romântica interpretada pela capixaba Nara Leão no II Festival Nacional da Música Popular Brasileira, encampado pela TV Record. Vencedor isolado, o autor teria exigido o empate com a mais consistente “Disparada”, do colega de canção de protesto Vandré, defendida pelo sambista paulista Jair Rodrigues.
Característico dessa primeira fase de Chico então Buarque de Hollanda, o apego pelas temáticas do samba e do carnaval se espalha por seus três primeiros LPs, em meta-composições como “Tem Mais Samba“, “A Rita” (com citação explícita ao maior modelo do jovem Chico, Noel Rosa), “Amanhã, Ninguém Sabe“, a graciosa “Juca” (1966), “Noite dos Mascarados” (em dueto com Jane Morais, integrante d’Os 3 Morais e futura metade da dupla “cafona” Jane & Herondy), “Quem Te Viu, Quem Te Vê“, “Um Chorinho” (1967), “Ela Desatinou”…
As primeiras canções da longa série conhecida como capaz de traduzir a alma feminina vinham com um sabor antigo, polvilhadas de toques de machismo, casos de “Com Açúcar, com Afeto“, “Carolina” (1967), “Sem Fantasia” (1968, em duo com a irmã Cristina Buarque), “Benvinda” (1968) e “Umas e Outras” (1969), além de caudalosas canções de musa para Rita, Madalena, Januária…
A primeira dessas, interpretada por Jane Morais no segundo LP de Chico Buarque, é exemplar da moral nem tão feminista do autor em seus primórdios: “Com açúcar, com afeto/ fiz seu doce predileto/ pra você parar em casa/ qual o quê?”. Os rivais tropicalistas em ascensão tripudiaram de “Carolina” (terceiro lugar no II Festival Internacional da Canção de 1967, da emergente TV Globo, nas vozes de Cynara e Cybele, metade do Quarteto em Cy), para eles uma composição do tempo dos avós (Chico Buarque seria avô dos tropicalistas, tripudiou à época Tom Zé) – para a qual Caetano Veloso forjou uma ambígua versão em 1969, às portas do exílio.
Também nas hostes tropicalistas, o encenador paulista Zé Celso Martinez Corrêa anarquiza, em seu Teatro Oficina, a ingenuidade e o esquematismo da primeira peça teatral escrita pelo jovem Chico Buarque. Roda Viva entra para a história pelo ataque físico que um tal Comando de Caça aos Comunistas perpetrou sobre os atores da rebelde encenação.
Antes do advento da tropicália, os primeiros êxitos provocaram um corrida ao breve cancioneiro do jovem Chico, cuja intérprete principal imediatamente se tornou Nara Leão. Além de “A Banda”, ela gravou “Olê Olá“, “Pedro Pedreiro“, a caymmiana “Madalena Foi pro Mar“, “Morena dos Olhos d’Água“, “Funeral de um Lavrador” (1966), “Quem Te Viu, Quem Te Vê“, “Com Açúcar, com Afeto“, “Noite dos Mascarados” (em duo com Gilberto Gil), “Um Chorinho“, “Carolina” (1967), “Tema de ‘Os Inconfidentes’” (1968), as parcerias de Chico com Tom Jobim “Retrato em Branco e Preto“, “Pois É” e “Sabiá” (1971), “Soneto“, “Quando o Carnaval Chegar” (1972), “João e Maria” (1977, em dueto com o autor), as versões do cubano Silvio Rodríguez “Supõe” e “Imagina Só” (1982). Nara foi ainda a Gata do infantil Os Saltimbancos (1977) e, por fim, gravou um álbum completo de canções de Chico nos anos 1960 e 1970, Com Açúcar, com Afeto (1980).
Um cortejo de intérpretes correu para os braços do jovem Chico a partir do sucesso de “A Banda”: Elis Regina (“Tem Mais Samba“, “Bom Tempo“, “Noite dos Mascarados“, essa em dueto com o próprio Chico, “Bom Tempo”), o quarteto buarquiano MPB 4 (“Juca“, “Sonho de um Carnaval“, “Olê Olá“, a inédita “Tereza Tristeza“, “Morena dos Olhos d’Água“, “Malandro Quando Morre” “Quem Te Viu, Quem Te Vê“, “Fica“, “Até Pensei“, “Ela Desatinou“, a inédita “Onde É Que Você Estava?“, “Sabiá“, “Benvinda“), Quarteto em Cy (“A Banda“, “Pedro Pedreiro“, “Tem Mais Samba“, “Lua Cheia“), Jair Rodrigues (“A Rita“, “Até Segunda-Feira“), Claudette Soares (“Januária“, a inédita “Bandolim“, “Bom Tempo“), Astrud Gilberto (“Parade“, versão em inglês para “A Banda”), Wilson Simonal (“Sonho de um Carnaval“, “A Banda“), Odette Lara (“Tem Mais Samba“, “Meu Refrão“, “Funeral de um Lavrador“), Toquinho (“Olê Olá“), Claudia (“Amanhã, Ninguém Sabe“, “Carolina“), Márcia (“Gente Humilde“), Taiguara (“Benvinda“, “Até Pensei“, “Gente Humilde“), Clara Nunes (“Sabiá“, “Desencontro“), Doris Monteiro (“Meu Refrão“, “Carolina“), Wilson das Neves (“Essa Moça Tá Diferente“), Eliana Pittman (“Bom Tempo“, “Sabiá“), Os Cariocas (a inédita “Roda Gigante“, “A Banda“), Agnaldo Rayol (“Carolina“)…
Também intérpretes de gerações anteriores tentaram se modernizar cantando Chico Buarque, casos de Altamiro Carrilho (“A Banda”, em 1966), Agostinho dos Santos (“A Banda“, em 1967), Helena de Lima (“Noite dos Mascarados“), Dalva de Oliveira (“Tem Mais Samba“, 1968), Elizeth Cardoso (“Lua Cheia“, “Carolina“, 1968), Isaura Garcia (metade do disco Chico Buarque de Hollanda e Noel Rosa na Voz de Isaura Garcia, 1968), Leny Eversong (“Sabiá”, 1968), Orlando Silva (“Carolina“), Lenita Bruno (“Sonho de um Carnaval”, “Carolina”, “Tem Mais Samba“, 1968, todas em inglês), Cyro Monteiro (“Ilmo. Sr. Cyro Monteiro ou Receita pra Virar Casaca de Neném“, 1970), Angela Maria (“Gente Humilde“, 1970), Cauby Peixoto (“Gente Humilde“, 1970, “Valsinha“, 1972), Dick Farney (“Carolina“, 1970), Mário Reis (“A Banda“, a inédita e censurada “Bolsa de Amores”, 1971), Nelson Gonçalves (“Gente Humilde“, 1971), Silvio Caldas (“Gente Humillde“, 1974)…
Nasce o Chico Buarque engajado
Com a alavanca dos festivais da canção, o Chico dos anos 1960 seguiu polarizado entre o lirismo maiúsculo de “Sabiá” e “Retrato em Branco e Preto” (ambas parcerias com seu mestre máximo Tom Jobim) e “Bom Tempo” (segundo lugar na I Bienal do Samba, imaginada pela Record em 1968 numa tentativa de revalorizar o gênero) e o engajamento discreto, mas crescente em “A Televisão“, “Ano Novo“, “Roda Viva” (1967), “Funeral de um Lavrador” (1968, sobre a Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto), “Tema de ‘Os Inconfidentes’” (sobre o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meirelles), “Rosa dos Ventos“, “Cara a Cara” (1970)…
O pêndulo apontou para o polo engajado na repercussão fervorosa do III Festival da Música Popular Brasileira, em que “Roda Viva” conquistou o terceiro lugar, atrás da vencedora “Ponteio” (do futuro parceiro preferencial Edu Lobo) e da vice “Domingo no Parque” (do tropicalista emergente Gilberto Gil, com guitarras dos Mutantes) e à frente de “Alegria, Alegria” (de Caetano, com guitarras dos argentinos Beat Boys) e do samba hoje esquecido “Maria, Carnaval e Cinzas” (defendido pelo “rei do iê-iê-iê” Roberto Carlos).
“Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu/ a gente estancou de repente/ ou foi o mundo então que cresceu/ a gente quer ter voz ativa/ no nosso destino mandar/ mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”, bradou Chico, secundado pelo MPB 4, direcionando a bússola da nascente MPB universitária ao rumo norte da canção de protesto, no mesmo momento e local em que os tropicalistas bagunçavam irremediavelmente o coreto. Ironicamente, Roda Viva viraria nome de um programa de entrevistas crescentemente conservador e sustentador do status quo, na TV Cultura, emissora estatal do estado de São Paulo.
No ano seguinte, no III Festival Internacional da Canção, da Globo, Chico triunfou ao lado de Tom, escondendo por trás do ultra-romantismo à la Gonçalves Dias de “Sabiá” uma canção de exílio premonitória do Ato institucional Nº 5 que estava prestes a se abater sobre a já sinistra ditadura militar: “Vou voltar, sei que ainda vou voltar”.
O adversário batido então foi, mais uma vez, Geraldo Vandré, que, com “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)”, favorita da maioria da plateia, via encerradas de uma só vez, sob bombas, botas e bandeiras, a linhagem da canção de protesto tradicional – e a própria carreira na música industrial. Na ausência de Chico, Tom Jobim e as intérpretes Cynara e Cybele amargaram para “Sabiá” a maior vaia da história dos festivais, apagada dos arquivos da Globo junto com qualquer imagem em movimento do triunfo informal de Vandré. Vaias à parte, “Sabiá” recebeu versões mundo afora, inclusive a de Frank Sinatra, como “Song of the Sabiá”, lançada em 1971.
Do episódio do III FIC, Vandré saiu da música para entrar na história e Chico se converteu, em certa medida involuntariamente, no ícone absoluto de uma nova modalidade de protesto, a que aprendia a usar a linguagem de fresta para açodar a ditadura e driblar a censura constante por parte dos ditadores de plantão. Os 14 meses de exílio na Itália resultaram, em 1970, em Per un Pugno di Samba, um exótico álbum de versões buarquianas em italiano, sob arranjos do cinematográfico maestro italiano Ennio Morricone, e no Chico Buarque de Hollanda Nº 4, o último em que constaria o apêndice “de Hollanda” e o primeiro de uma nova era, menos romântica e juvenil, mais combativa e dona do próprio nariz. Esse era também o primeiro trabalho do artista pela multinacional holandesa Philips, após quatro anos e três discos pela brasileira RGE.
Exemplar desse momento de virada calcificado no Nº 4 é a curta meta-canção “Agora Falando Sério”, em que Chico voltava-se contra a própria obra e conversava sarcasticamente com a figura que se fazia dele até então: “Agora falando sério/ eu queria não cantar a cantiga bonita que se acredita que o mal espanta/ dou um chute no lirismo, um pega no cachorro e um tiro no sabiá/ dou um fora no violino, faço a mala e corro pra não ver banda passar/ (…) e você que está me ouvindo, quer saber o que está havendo com as flores do meu quintal?/ o amor-perfeito traindo, a sempre-viva morrendo e a rosa cheirando mal”. Proposital ou não, era um soco no estômago do hiper-romantismo do Roberto Carlos de “As Flores do Jardim da Nossa Casa” (1969), agora convertido em simplesmente “rei”, sob as barbas satisfeitas da ditadura e de seu duplo público-privado, a Rede Globo.
Paralelamente, Chico tentava se afastar também do tratamento paternalista/machista dado até então à figura feminina, o que se personificava perfeitamente em “Essa Moça Tá Diferente”: “Essa moça tá diferente, já não me conhece mais/ está pra lá de pra frente, está me passando pra trás/ essa moça tá decidida a se supermodernizar/ ela só samba escondida que é pra ninguém reparar”.
A moça em questão parecia ser mais que uma moça, e seu figurino “prafrentex” tentava se ajustar à MPB pós-sambista aguitarrada forjada pela tropicália. Chico se admitia, pelas entrelinhas, avô antiquado (mas bem-humorado) dos tropicalistas. Uma paz tensa seria selada cinco anos mais tarde, quando a canção mais lírica e sensual desse momento, “Samba e Amor“, fosse relida com respeito e sem sarcasmo por Caetano Veloso.
Num compacto que acabou censurado e recolhido das lojas (quando já circulavam versões festivas por Clara Nunes, Benito di Paula, Demônios da Garoa e a efêmera Leila Silva), Chico inaugurou ainda no final em 1970 o embate direto e valente com os desmandos da ditadura e seus ditadores amestrados, com um sambão intitulado “Apesar de Você”: “Hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão, não/ a minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão/ você que inventou esse estado e inventou de inventar toda escuridão/ você que inventou o pecado esqueceu-se de inventar o perdão/ apesar de você amanhã há de ser outro dia”.
Pela primeira vez, o “você” a que o narrador buarquiano se dirigia com rancor caía sob medida no general-presidente de plantão, nesse momento o sanguinário Emílio Garrastazu Médici. “Você vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada/ nesse meu penar”, arrematava um Chico Buarque mais adulto, projetando um futuro que significava um passo atrás em relação ao “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” de Vandré. O porvir estava de volta à MPB e assim permaneceria até que o mesmo Chico compusesse e gravasse outro sambão, “Vai Passar”, hino simbólico das campanhas pela redemocratização do Brasil em 1984. “Apesar de Você” permaneceu até ser relançada no LP Chico Buarque, de 1978.
Em 1971, a Philips lançou o LP Construção, que, fato inédito, trazia arranjos e regências do maestro Rogério Duprat, ex-artífice da sonoridade tropicalista e, portanto, um dos decretadores da decrepitude precoce do Chico dos anos 1960. O protesto sofisticado, com toques de poesia concreta, é marca da suíte operária formada por “Deus Lhe Pague”, “Cotidiano”, “Desalento” e “Construção”.
“Deus Lhe Pague” volta ao final de “Construção” e funciona no registro amargo do diálogo tenso com pessoa indeterminada a que o general Médici segue se encaixando com justeza: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ a certidão pra nascer e a Conceição pra sorrir/ por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague”.
“Cotidiano” resvala na tropicália ao adotar o campo do protesto comportamental, mas em ambiente suburbano/operário: “Todo dia ela faz tudo sempre igual/ me sacode às seis horas da manhã/ e sorri um sorriso pontual/ e me beija com a boca de hortelã”. E “Construção” faz algo parecido em versão sisuda, com retoques de concretismo no arranjo de Duprat e na letra proparoxítona: “E se acabou no chão feito um pacote flácido/ agonizou no meio do passeio público/ morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
O segundo LP pela Philips foi a trilha sonora do filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, que Chico dividiu com Nara Leão e Maria Bethânia e para o qual apresentou sete composições inéditas, inclusive “Baioque”, uma irônica mistura tropicalista entre baião e rock, defendida por Bethânia: “Mamy, não quero seguir definhando sol a sol/ me leva daqui, eu quero partir requebrando um rock’n’roll/ nem quero saber como se dança o baião/ eu quero ligar, eu quero um lugar/ no sol de Ipanema, cinema e televisão”.
Na contramão, “Partido Alto”, interpretado pelo MPB 4, apela para o samba “de raiz”, sob versos de rebelião: “Diz que Deus, diz que dá/ e se Deus negar, ó, nega/ eu vou me indignar e chega/ Deus dará, Deus dará/ (…) Deus me deu perna comprida e muita malícia/ pra correr atrás de bola e fugir da polícia/ um dia ainda sou notícia”.
A canção-título de Quando o Carnaval Chegar é autêntico tema buarquiano de porvir, principalmente se o “carnaval” em questão for entendido como sinônimo do encerramento da ditadura e de seu departamento de censura: “Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar/ tô me guardando pra quando o carnaval chegar/ eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando, não posso falar/ tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. O tema estradeiro de saltimbancos mambembes vividos com timidez por Chico, Nara e Bethânia antecipa futuras aventuras audiovisuais, como o musical teatral infantil Os Saltimbancos (1977) e a canção-título do filme Bye-Bye, Brasil (1979), também de Diegues.
O ano de 1972 reserva ainda a surpresa de reconciliar publicamente Chico e Caetano, no show de volta do segundo do exílio e no posterior disco Juntos e ao Vivo. Sob censura, Chico antecipa ali canções da peça teatral Calabar – Elogio da Traição, dele e de Ruy Guerra, sobre o inferno da colonização europeia no Brasil, que será totalmente interditado na época de estreia e de lançamento da trilha sonora, em 1973.
O cardápio é especialmente indigesto para o moralismo no poder, com canções que permeiam a primeira pessoa feminina na voz masculina de Chico (“Cala a Boca, Bárbara“, “Tatuagem“, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador“, “Tira as Mãos de Mim“), amor e sexo lésbicos (“Bárbara“, “Cala a Boca, Bárbara”), colonização e sífilis (“Fado Tropical“), feminismo e prostituição (“Ana de Amsterdam“). Essa última surgiu em versão apenas instrumental, depois de ter aparecido com voz masculina em primeira pessoa feminina, letra, emendas e cortes em Juntos e ao Vivo).
Sem a capa ornamentada pela palavra “Calabar” pixada num muro, o disco acabou saindo com o título Chico Canta e coalhado de cortes impostos pela Censura. A ferina letra anticapitalista de “Vence na Vida Quem Diz Sim” só aparecerá em 1980, no disco de Nara Leão para Chico Buarque.
O atrito com a censura era tamanho a essa altura que Chico se viu forçado a lançar um álbum não-autoral, Sinal Fechado (1974), com canções de Paulinho da Viola (a faixa-título), Caetano Veloso (a inédita “Festa Imodesta”), Gilberto Gil (“Copo Vazio”), o recém-revelado pelo FIC Walter Franco (“Me Deixe Mudo”), Toquinho & Vinicius de Moraes (“O Filho Que Eu Quero Ter”), Tom Jobim (“Ligia”), Nelson Cavaquinho (“Cuidado com a Outra”), Jackson do Pandeiro (“Lágrima”), Dorival Caymmi (“Você Não Sabe Amar”) e dos antepassados Noel Rosa (“Filosofia”) e Geraldo Pereira (“Sem Compromisso”).
Entre esses, Chico intrometeu dois autores desconhecidos, Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, que na verdade ocultavam que a verdadeira autoria de “Acorda Amor” era dele próprio. “Acorda, amor/ eu tive um pesadelo agora/ sonhei que tinha gente lá fora/ batendo no portão/ que aflição/ era a dura/ numa muito escura viatura/ minha nossa santa criatura/ chame o ladrão!”, dizia a provocativa canção de fresta, sob sons de sirenes de viatura policial.
Uma segunda vinda de Julinho da Adelaide entrou para a história com picardia e valentia, escondida numa coletânea coletiva da Philips. “Você não gosta de mim/ mas sua filha gosta”, clamava o suposto intérprete Chico em “Jorge Maravilha” (1974), referindo-se cifradamente ao fato de que a filha de Médici declarara-se fã buarquiana.
Em 1976 surgiu Meus Caros Amigos, o mais audiovisual dos álbuns de Chico, com músicas extraídas das trilhas sonoras dos filmes Dona Flor e Seus Dois Maridos (“O Que Será – À Flor da Terra”), Vai Trabalhar Vagabundo (a faixa-título) e A Noiva da Cidade (a faixa-título e “Passaredo“) e das peças teatrais Lisa, a Mulher Libertadora (“Mulheres de Atenas”), Gota d’Água (“Basta Um Dia“) e Calabar (“Você Vai Me Seguir“).
O carimbo político é pronunciado no jogo de encadeamentos do samba “triste e cabisbaixo” “Corrente”, com dizeres cifrados que chegam a aludir à tortura nos porões da ditadura (“precisa ser muito sincero e claro/ pra confessar que andei sambando errado/ talvez precise até tomar na cara/ pra ver que o samba tá bem melhorado”).
Algo parecido acontece no primeiro samba buarquiano de clamor por anistia, “Meu Caro Amigo” (“meu caro amigo, eu não pretendo provocar/ nem atiçar suas saudades/ mas acontece que não posso me furtar/ a lhe contar as novidades/ aqui na terra tão jogando futebol/ tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/ uns dias chove, noutros dias bate sol/ mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”).
Talvez cansado das pelejas com a censura, Chico privilegia o registro íntimo em canções viscerais como “O Que Será (À Flor da Terra)” (complementado com outra versão no disco Geraes, de Milton Nascimento, com subtítulo “À Flor da Pele”) e “Olhos nos Olhos“, de espezinhado eu-lírico feminino (“quando você me quiser rever/ já vai me encontrar refeita, pode crer/ olhos nos olhos, quero ver o que você faz/ ao sentir que sem você eu passo bem demais”). Da mesma estirpe, e mais politizada (embora ambígua), “Mulheres de Atenas” enfrenta o machismo popular brasileiro: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas”.
Meus Caros Amigos provocou mais uma onda de reinterpretações, por emepebistas notórios como Ney Matogrosso (de “Mulheres de Atenas” e de “Não Existe Pecado ao Sul do Equador“), mas desta vez também por artistas de universos aparentemente distantes de Chico, como o sambista da antiga Noite Ilustrada (“Olhos nos Olhos“, “O Que Será – À Flor da Pele“, “Mulheres de Atenas“), o ex-príncipe da juventude Ronnie Von (“O Que Será – À Flor da Pele“) e Agnaldo Timóteo (numa versão acachapante de “Olhos nos Olhos”).
Canção avulsa de 1977, a triste e lírica “João e Maria” (uma parceria com Sivuca), composta para um disco de duetos de Nara Leão (Meus Amigos São um Barato), traz um laivo sexual à atmosfera de conto de fadas macabro: “E você era a princesa que eu fiz coroar/ e era tão linda de se admirar/ que andava nua pelo meu país”. Ainda mais taciturna e fantasmagórica, “Maninha” foi cantada com Miúcha em LP de encontro da irmã cantora com Tom Jobim e volta à fórmula da terceira pessoa patriarcal indeterminada e temida: “E nunca mais cantei, ó, maninha, depois que ele chegou/ (…) mas não me deixe assim tõ sozinho a me torturar/ que um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar”.
Mais duas avulsas saíram em 1977 num compacto em nova reunião de Chico com Milton Nascimento, os cantos de trabalho rural e urbano “O Cio da Terra” e “Primeiro de Maio“. O segundo carrega melodia explicitamente marxista: “Hoje a cidade está parada/ e ele apressa a caminhada/ pra acordar a namorada logo ali/ e vai sorrindo, vai aflito pra mostrar/ cheio de si/ que hoje ele é senhor das suas mãos/ e das ferramentas”.
Chico voltará à carga em 1980, com “Linha de Montagem”, também em homenagem ao Dia do Trabalho e já em pleno contexto do advento das greves do ABC Paulista e do para sempre aliado Luiz Inácio Lula da Silva: “Linha, linha de montagem/ a cor, a coragem, cora, coração/ ABC, abecedário, opera, operário/ pé no pé no chão/ (…) sambe, sambe, São Bernardo/ sanca, São Caetano/ santa, santo André/ dia a dia, Diadema/ quando for me chame pra tomar um mé”. O bloqueio midiático não permite que as canções operárias de Chico furem a bolha, à exceção de “O Cio da Terra”, regravado pela argentina Mercedes Sosa em 1978.
O espírito marxista norteia também, no mesmo 1977, a trilha adaptada do musical infantil Os Saltimbancos, estrelado por Miúcha como a Galinha, Nara Leão como a Gata e os MPB 4 Magro e Ruy como, respectivamente, o Jumento e o Cão. “Todos Juntos” sintetiza a empreitada equiparando bichos domesticados a operários explorados pela mais-valia: “Junte um bico com dez unhas, quatro patas, 30 dentes/ e o valente dos valentes inda vai te respeitar/ todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer”.
Por esses anos, Chico se aventura como romancista (Fazenda Modelo, 1974) enquanto se consolida como dramaturgo e trilheiro de cinema e teatro adulto. Atualização da Medeia (431 a.C.) de Eurípedes, sua peça Gota d’Água (escrita em dupla com Paulo Pontes) sai em disco em 1977, com Bibi Ferreira no protagonismo e beliscões comportamentais contra a repressão. Diz, por exemplo, a pansexual “Flor da Idade” (lançada dois anos antes num disco ao vivo de Chico e Maria Bethânia), parodiando a “Quadrilha” (1930) de Carlos Drummond de Andrade: “Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Dora que amava/ Carlos que amava Dora que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava/ Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha”.
Terceiro e último álbum solo autoral nos 1970, Chico Buarque (1978) é quase um acerto de contas, pela recuperação que faz de três canções antológicas que ficaram censuradas ao longo da década: “Apesar de Você” (1970), “Cálice” (parceria com Gil censurada em 1973, gravada enfim em dueto com Milton Nascimento) e “Tanto Mar” (sobre a Revolução dos Cravos, que em 1974 encerrou a ditadura salazarista em Portugal; censurada do LP de 1975 com Bethânia, a versão com letra só foi incluída na edição de Portugal).
Patriarcal e pesada, “Cálice” é mais um recado direto e explícito de Chico a um dos ditadores militares de plantão (dessa vez, Ernesto Geisel), bordado no jogo de palavras entre “cálice” e “cale-se”: “Pai, afasta de mim esse cálice/ de vinho tinto de sangue”. Em “Cálice”, ode assassina ao tríptico tradição/família/propriedade, a autoridade política se mistura e se confunde com a religiosa (e com a paterna): “De que me vale ser filho da santa/ melhor seria ser filho da outra/ outra realidade menos morta/ tanta mentira, tanta força bruta”.
O vital Chico Buarque de 1978 incorpora mais um tema disfarçado (e machista) de anistia, “Feijoada Completa“: “Mulher, você vai gostar/ tô levando uns amigos pra conversar/ eles vão com uma fome que nem me contem/ eles vão com uma sede de anteontem/ salta cerveja estupidamente gelada pr’um batalhão/ e vamos botar água no feijão”. No front sentimental, “Trocando em Miúdos” se torna hino de separação conjugal em tempos de oficialização do divórcio no Brasil. E o protesto social “Pivete” insere na obra buarquiana madura os mais marginalizados de todos os brasileiros: “No sinal fechado/ ele vende chiclete/ capricha na flanela/ e se chama Pelé/ pinta na janela/ batalha algum trocado/ aponta um canivete e até”.
Algumas faixas do LP de 1978 antecipam a monumental trilha sonora do musical teatral buarquiano Ópera do Malandro (1979, atualmente indisponível nas plataformas digitais), transformado em disco duplo coletivo estrelado, entre outros, por Gal Costa e Francis Hime (“Pedaço de Mim“), Nara Leão (“Folhetim“, lançada no ano anterior por Gal, que só então adentra a obra buarquiana), Moreira da Silva (“Homenagem ao Malandro“), a então esposa Marieta Severo e Elba Ramalho (“O Meu Amor“), MPB 4 e João Nogueira (em duas versões de “O Malandro”, adaptação de “Die Moritat von Mackie Messer”, de Bertolt Brecht e Kurt Weil), Zizi Possi (“Teresinha“) e o próprio Chico (a transexual “Geni e o Zepelim”), inclusive em duetos com Marlene (“Uma Canção Desnaturada“) e Alcione (a ácida “O Casamento dos Pequenos Burgueses“, mais uma investida buarquiana contra o casamento católico tradicional).
Ao longo dos 1970, Chico continuou favorito de intérpretes como Carlos Lyra (“Essa Passou“, dueto e parceria inéditos com Lyra), Baden Powell (“Gente Humilde“), Elis Regina (“Atrás da Porta“, “Tatuagem“, “Deus Lhe Pague“, “Pois É” e “Retrato em Branco e Preto“, as duas últimas em duelo com Tom Jobim), MPB 4 (“Valsinha“, “Boi Voador Não Pode“, a então inédita e ecológica “Passaredo“, “Corrente“, “Cálice“, “Fantasia“), Quarteto em Cy (“Quando o Carnaval Chegar“, “Baioque“, “Mulheres de Atenas“), Toquinho & Vinicius (“Samba pra Vinicius“, uma parceria inédita de Chico e Toquinho), Paulinho da Viola (“Sonho de um Carnaval”), Alaíde Costa (“Retrato em Branco e Preto”), Fagner (“Joana Francesa”, gravada em dueto com Chico em 1973, a parceria inédita “Paroara“), Nana Caymmi (“Atrás da Porta“, “Pois É“), Beth Carvalho (“Essa Passou“, “Gota d’Água“), Maria Creuza (“Com Açúcar, com Afeto“, “Trocando em Miúdos“), Célia (“Tatuagem“), a exilada Tania Maria (“Samba de Orly“), Leny Andrade (“Homenagem ao Malandro“), Emílio Santiago (“Olha Maria“, “Homenagem ao Malandro“), Zezé Motta (“Trocando em Miúdos“), Paulinho Boca de Cantor (“Jorge Maravilha“), Angela Ro Ro (“Bárbara”, “De Todas as Maneiras“, “Joana Francesa“), Tetê Espíndola (“O Cio da Terra“)…
Algumas intérpretes se tornaram recorrentes em gravar Chico, casos de Clara Nunes (“Umas e Outras“, “Basta Um Dia“, “Fado Tropical“, o hit “Morena de Angola“), Simone (“Gota d’Água“, “O Que Será – À Flor da Pele“, “Sob Medida“), Gal Costa (“Folhetim“, “Pois É“) e Fafá de Belém (“Sob Medida“). Mas, em vez de Nara Leão, é Maria Bethânia que desponta como intérprete favorita dos 1970 até hoje, gravando “Com Açúcar, com Afeto” (1970), “Rosa dos Ventos” (1971), “Bom Conselho” (1972), “Soneto“, “Atrás da Porta“, “Ela Desatinou” (1973), “Roda Viva“, “Cala a Boca, Bárbara“, a versão “Sonho Impossível (Impossible Dream)“, “Tira as Mãos de Mim” (1974), “Olhos nos Olhos” (1976), “Terezinha” (1977), “O Que Será (À Flor da Pele)“, “João e Maria” e “Maninha” (ambas em duetos ao vivo com Caetano), “O Meu Amor” (em duo com Alcione), “De Todas as Maneiras“, “Cálice” (1978), a inédita “Amando Sobre os Jornais” (1979, inédita), “Vida” (1982), “Anos Dourados” (1986, parceria inédita de Chico e Tom Jobim), “A Mais Bonita” (1989), “A Moça do Sonho” (2001), “Gente Humilde” (2005), “O Velho Francisco” (2012). Em 1975, Chico e Bethânia se reuniram para um show que virou álbum ao vivo em dupla, do qual saíram as inéditas “Bem Querer” e “Vai Levando“, uma parceria Chico-Caetano que se popularizou dois anos depois num dueto de Miúcha e Tom Jobim.
Pela primeira vez, nos 1970, outro ídolo primevo de Chico gravou uma obra do discípulo: João Gilberto cantou “Retrato em Branco e Preto“, primeiro em versão com o saxofonista estadunidense Stan Getz (em 1976), em seguida com arranjo do alemão-polonês Claus Ogerman no álbum Amoroso (1977), sob o título “Zingaro”.
Em outro polo, Chico atraía cada vez mais intérpretes de nichos mais populares. Somaram-se a Agnaldo Timóteo versões de Benito di Paula (“Construção”), Roberto Ribeiro (“Desalento“), Miriam Batucada (“Amanhã, Ninguém Sabe“), o ex-iê-iê-iê Eduardo Araujo (em versões rock’n’roll de “Construção” e “Deus Lhe Pague“), Wanderley Cardoso (“Até Pensei“), Fernando Mendes (“Valsinha“), a samba-roqueira Elizabeth Viana (a primeira a gravar “João e Maria“), a forrozeira Anastácia (“Quadrilha“, “Desembolada“, “Se Eu Fosse Teu Patrão“), Jane & Herondy (“Sem Fantasia“), Núbia Lafayette (“Terezinha“), Frenéticas (“Ai se Eles Me Pegam Agora”), Lady Zu (transformando “A Banda” em discothèque), Pena Branca e Xavantinho (“O Cio da Terra“)… Proscrito nos anos 1970, Wilson Simonal tentou fazer protesto em 1975 regravando “Cordão” (1971): “Ninguém vai me acorrentar/ enquanto eu puder cantar/ enquanto eu puder sorrir”.
Em 1979, o ano em que cai o AI-5 e passa a vigorar a Lei de Anistia, o MPB 4 grava uma inédita de Chico Buarque chamada “Angélica“, na verdade um réquiem composto para a estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel, assassinado aos 25 anos pela ditadura, em 1971. “Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho?/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”, canta a letra pungente que mistura terceira e primeira pessoas. Chico gravará “Angélica” de voz própria em 1981.
Os anos 1980 se abrem com mais um álbum polpudo, Vida (1980), em que as canções de amor e sexo sobrepujam em quantidade os cantos de protesto. Aqui estão, por exemplo, o cabaré “Bastidores” (sucesso no mesmo ano na voz de Cauby Peixoto), a versão de autor para a celebração afrobrasileira “Morena de Angola“, a linda e lésbica “Mar e Lua“, a áspera e escatológica “Não Sonho Mais” (lançada no ano anterior pela estreante Elba Ramalho para a trilha do filme República dos Assassinos: “Foi um sonho medonho desses que às vezes a gente sonha e baba na fronha e se urina toda e quer sufocar”), a gentil “Qualquer Canção” e a colossal “Eu Te Amo” (mais uma lírica parceria com Tom Jobim), essa cantada com Telma Costa.
“Deixe a Menina” zomba da condição masculina frente à feminina: “Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz/ mas você vai mal/ mas vai mal demais/ são dez horas, o samba tá quente/ deixe a morena contente/ deixe a menina sambar em paz”. A conclusão conserva traços machistas: “Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz/ e atrás dessa mulher mil homens sempre tão gentis/ por isso para o seu bem/ ou tire ela da cabeça ou mereça a moça que você tem”.
Um balanço sobre o passado se esboça na faixa-título de Vida, transfigurada no eu-lírico feminino prostituto que habita muitas das canções dessa fase: “Vida, minha vida/ olha o que é que eu fiz/ deixei a fatia mais doce da vida/ na mesa dos homens/ de vida vazia/ mas vida, ali, quem sabe, eu fui feliz”. É o primeiro momento em que, aos 36 anos, o Chico que cantava o porvir cede lugar a uma nova figura, mais saudosista que esperançosa.
Diluído em Vida (só a mambembe “Bye Bye, Brasil” esboça alguma crônica do Brasil de então), o protesto político resta para a irmã Miúcha, que em 1980 lança a operária “Linha de Montagem” e o fatídico não-sucesso “Milagre Brasileiro”: “É o milagre brasileiro/ quanto mais trabalho menos vejo dinheiro”.
Almanaque, de 1981, dosou o lirismo bruto (especialmente em “As Vitrines” e na hoje politicamente incorreta “Tanto Amar“) é quebrado por menos temas mais engajados, como o já citado “Angélica”, o protesto contra a indústria musical “A Voz do Dono e o Dono da Voz” e “O Meu Guri”, versão mais pesada de “Pivete”, contada sob a ótica da mãe diante da foto do filho menino morto pela polícia (que será encarnada adiante de modo visceral por uma buarquiana tardia, Elza Soares, em 1997). Anos à frente, em 2002, Chico retribuirá o tour de force de Elza, criando para ela “Dura na Queda“.
Na década de 1980, arrefece a coqueluche de reinterpretações de Chico Buarque, embora alguns cantores se revelem mais fiéis e constantes à obra do muso. Entre esses sobressaem Gal Costa (lançando as inéditas “Mil Perdões“, “A História de Lily Braun“, “Último Blues“, o dueto “A Mulher de Cada Porto“, “Frevo Diabo“), Ney Matogrosso (“Deixe a Menina“, “Tanto Amar“, “Até o Fim“, “Las Muchachas de Copacabana“, “Todo o Sentimento“, “Retrato em Branco e Preto“), Simone (“Mar e Lua“, um dueto lésbico de “Bárbara” com Gal Costa, “Embarcação“, “Meu Namorado“, “Vida“, “Doutor Getúlio“, “Trocando em Miúdos” e “Iolanda“, uma versão buarquiana do cubano Pablo Milanés) e Elba Ramalho (“A Violeira“, “Palavra de Mulher” e várias da adaptação de Ópera do Malandro para o cinema).
Novos intérpretes chegam ao circuito, casos de Cida Moreira (“Geni e o Zepelim“), Tim Maia (“A Bela e a Fera“), Zé Ramalho (“Hino de Duran“), do popular Jessé (“Eu Te Amo“, a inédita “Canção de Pedroca“, “Angélica”, “Sobre Todas as Coisas“) e até da banda pop-new wave Blitz (“Show Bizz“).
A produção de álbuns autorais por Chico diminuiu nos 1980, mas continuaram em ritmo acelerado as trilhas sonoras. Para o cinema, ele fez a adaptação Os Saltimbancos Trapalhões (1981), com seis composições inéditas; Para Viver um Grande Amor (1983, dividida com Tom Jobim e Djavan); a adaptação de Ruy Guerra para Ópera do Malandro (1985). Para espetáculos de balé, inaugurou a colaboração sistemática com Edu Lobo, com as trilhas coletivas O Grande Circo Místico (1983) e Dança da Meia-Lua (1988).
Para o teatro, compôs com Edu a trilha de O Corsário do Rei (1985) e o samba-enredo político laudatório “Doutor Getúlio”, interpretado por Dona Ivone Lara para a peça Vargas (1983): “Foi o chefe mais amado da nação/ fez o sucesso da revolução/ liderando os liberais/ foi o pai dos mais humildes brasileiros/ lutando contra grupos financeiros/ e altos interesses internacionais/ (…) a nós ele entregou seu coração/ e não largaremos mais/ não, os nossos corações hão de ser nossos/ a terra, o nosso sangue, os nossos poços/ o petróleo é nosso, nossos carnavais”.
O tom marxista é abrandado no filme d’Os Trapalhões, mas resiste nas beiradas de “Rebichada” (“não me importa trabalhar pra cachorro, o jumento é meu igual/ morro muito mais que gato no morro quando chega o carnaval/ sou eu quem cutuca o galo, viu, pro galo cocorocar/ mas se pisam no meu calo não me calo, eu tenho que falar/ como falo”) e de “Meu Caro Barão”, que desloca o baronato patronal para um ambiente mais próximo às redações da imprensa mainstream que do idílio rural original d’Os Saltimbancos de 1977.
Mergulhado de corpo e alma da campanha das Diretas Já, o artista lançou o Chico Buarque de 1984 em compasso de espera pela redemocratização do Brasil. Não perdeu de vista o lirismo (“Suburbano Coração“, “Samba do Grande Amor“) e fez protesto brando na corrente “Pelas Tabelas” (“claro que ninguém se importa com a minha aflição”) e no drama sertanejo “Brejo da Cruz” (“a novidade/ que tem no Brejo da Cruz/ é a criançada/ se alimentar de luz”).
O momento-síntese é a faixa final, o samba-enredo “Vai Passar”, de reminiscências nem tão imemoriais quanto a temática poderia induzir: “Num tempo/ página infeliz da nossa história/ passagem desbotada na memória/ das nossas novas gerações/ dormia/ a nossa pátria-mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações/ seus filhos/ erravam cegos pelo continente/ levavam pedras feito penitentes/ erguendo estranhas catedrais/ e um dia afinal/ tinham direito a uma alegria fugaz/ numa ofegante epidemia/ que se chamava carnaval”.
Derradeiro tema de porvir, “Vai Passar” faz Chico parecer a Carolina à janela de 1968, sem perceber com nitidez que vai passar, está passando, já passou. E agora, Francisco?
A maturidade entre sonhos e pesadelos
Como alguém que aguarda por muito tempo a chegada de uma festa imodesta, Francisco parecia não saber bem como se comportar quando se viu exatamente dentro do evento. A face militar da ditadura ruiu, e Chico foi um dos líderes incontestáveis do clamor na classe artística. Tendo sido neutralizado o inimigo central definido desde cedo, o compositor se esforçou, a partir da redemocratização, para jogar a segundo plano as canções de protesto que até ali o caracterizavam como a nenhum outro compositor popular no Brasil. Elas não deixaram de existir, mas mudaram de tom e se tornaram mais escassas de meados dos 1980 em diante.
Aconteceram, nessa pegada, reflexões brasileiras aqui e ali, sempre mais fugidias que nos tempos idos. “Bancarrota Blues” (1987, mas gravada primeiro por Nana Caymmi n’O Corsário do Rei, em 1985) foi embebida num retrato cruel do decadentismo da aristocracia nacional e do legado de falência deixado pelos militares, “eu posso vender/ quanto você dá?”. A pós-tecnológica e criticamente neutra “Baticum” (1989), uma parceria com Gilberto Gil, foi lançada simultaneamente por ambos, entre mesuras a marcas como Benetton, Sanyo e Warner. As agrárias “Assentamento” e “Levantados do Chão” (1997, nomeada a partir do livro Levantado do Chão, do escritor português José Saramago, 1980), em conexão com o Movimento Sem Terra, acompanharam um livro de fotogragias de Sebastião Salgado.
Já no novo século, “Ode aos Ratos” (2001), da trilha da peça teatral Cambaio, revela-se uma possível antecipação do que Chico sentirá ao tomar conhecimento de sua não-unanimidade nas redes sociais da internet – o autor não parece simpatizar especialmente com aquela que será denominada, poucos anos adiante, de nova classe C.
A experiência de ser avô de dois netos mestiços, filhos do músico baiano Carlinhos Brown, parece sensibilizar Chico Buarque, que retrata sem grandes emoções o Brasil escravista no romance Leite Derramado (2009) e na canção “Sinhá” (2011), uma parceria com João Bosco pelo viés da miscigenação: “Cantor atormentado, herdeiro sarará/ do nome do renome de um feroz senhor de engenho/ e das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou sinhá”. Na irônica/amarga “As Caravanas” (2017), por fim, Chico compara a ascensão da tal classe C brasileira a um novo descobrimento embarcado em caravelas, aparentemente mais sensível à ascensão social e racial legada pela década de Lula e Dilma Rousseff na presidência.
Mais forte e eficaz no ato de confrontar a luta de classes sociais e raciais foi o rapper paulistano Criolo, que viralizou na internet em 2011 ao improvisar uma paródia de “Cálice”: “Como ir pro trabalho sem levar um tiro/ voltar pra casa sem levar um tiro?/ (…) há preconceito com o nordestino/ há preconceito com o homem negro/ há preconceito com o analfabeto/ mas não há preconceito se um dos três for rico, pai”. Chico curvou-se à crítica em hip-hop no ano seguinte, cantando a versão de Criolo no show Na Carreira.
Mesmo nos neo-protestos forjados a partir de meados dos anos 1980, a lírica musical pós-bossa nova passou a se sobrepor à MPB expressionista que caracterizara canções pré-redemocratização como “Fado Tropical”, “Feijoada Completa”, “Geni e o Zepelim” ou “Bye-Bye, Brasil”.
Um primeiro efeito do Chico pós-“Vai Passar”, que já se esboçava em “Vida” e “Pelas Tabelas”, foi o advento de uma série de canções revisionistas, de um narrador que olha mais para o passado que para o presente ou, menos ainda, o futuro. Podem-se contar entre esssas “O Velho Francisco“, “Cantando no Toró” (1987), a homenagem à tradição emepebista “Paratodos”, “A Foto da Capa” (em torno de um episódio de adolescência em que Chico foi fichado na polícia por roubar um carro), “Tempo e Artista” (1993), “Essa Pequena“, “Querido Diário” (2011). Nessa última, causou mal-estar nas gerações jovens anti-misóginas a referência a “uma mulher sem orifício”.
Na vaga do compositor engajado, Chico pretendeu colocar um autor maduro, virtuoso, intrincado, aluno dileto das lições bossa-novistas do maestro soberano (como ele definiu em “Paratodos”) Tom Jobim. As canções líricas sofreram certo esfarelamento, certa liquefação, o que redundou em temas menos diretos que aqueles que o carimbaram como tradutor privilegiado dos modos femininos. Em transição, nasceram “As Minhas Meninas“, “Uma Menina” (1987), “A Mais Bonita” (cantada pela sobrinha Bebel Gilberto, filha de Miúcha com João Gilberto), “Valsa Brasileira” (1989), “Choro Bandido“, “Futuros Amantes” (1993).
A partir do álbum As Cidades (1998), e em consonância com a obra literária onírica/delirante que Chico começa a lançar a partir de Estorvo (1991), as canções líricas se tornam ainda mais difusas e esvoaçantes, como se fossem obras de um habitante do planeta Melancolia (2011) do cineasta Lars von Trier. Exemplos são “A Ostra e o Vento” (1997), a migratória/exilada “Iracema Voou“, “Sonhos Sonhos São“, “Aquela Mulher“, “Cecília” (1998), “Cambaio“, “Uma Canção Inédita“, “A Moça do Sonho” (2001), “Renata Maria” (2005), “Outros Sonhos“, “Porque Era Ela, Porque Era Eu” (2006), “Se Eu Soubesse” (com a jovem Thaís Gulin), “Barafunda” (2011), “Blues pra Bia” (2017)…
Na fase madura de Chico, o Rio de Janeiro passou a receber a leitura contemplativa de canções ternas e amorosas como “Estação Derradeira” (1987), “Morro Dois Irmãos” (1989), as mangueirenses “Piano na Mangueira” (1991, parceria e dueto derradeiros com Tom Jobim) e “Chão de Esmeraldas” (1997), “Carioca” (1998), “Subúrbio” (2006, uma ode paternalista às novas gerações cariocas nascidas nas periferias).
A MPB clássica não abandonou Chico Buarque na troca de séculos, e ele ganhou álbuns inteiros de intérpretes como Cida Moreira (1993), Oswaldo Montenegro (1993), Carlos Fernando (1994), Ney Matogrosso (1996), Fafá de Belém (2005), Mônica Salmaso (2007) e Hamilton de Holanda (2016), mas também os portugueses Eugénia Melo e Castro (2005) e António Zambujo (2016), entre muitos.
Embora em intensidade decrescente, artistas que vieram surgindo se renderam a Chico, como Leila Pinheiro (“Abandono“), Eliete Negreiros (“Valsa Brasileira“), Só Preto sem Preconceito (“A Rita“), Badi Assad (“Joana Francesa“), Ná Ozzetti (“Morro Dois Irmãos“), Adriana Calcanhotto (“Morro Dois Irmãos“, “Ciranda da Bailarina“), Jussara Silveira (“Ludo Real“), Renato Braz (“Na Ilha de Lia, no Barco de Rosa“, “Sentimental“, “Levantados do Chão“), Ana Carolina (“Beatriz“), Ira! (“Jorge Maravilha“), Cássia Eller (“Partido Alto”), Timbalada (“João e Maria“), Vanessa da Mata (“História de uma Gata“), Daniela Mercury (“Atrás da Porta“), Chico César (“Cálice“),Teresa Cristina (“O Meu Guri“), Maria Rita (“Sobre Todas as Coisas“, “A História de Lily Braun“), Filipe Catto (“Tatuagem“, “Flor da Idade“), Ana Cañas (“Acalanto para Helena“, Metá Metá, Bia Ferreira e Brisa Flow (“Deus Lhe Pague“)…
Entre os jovens buarquianos dos anos 2000, incluem-se, no álbum Caravanas (2017), os netos Chico Brown, co-autor de “Massarandupió“, e Clara Buarque, que substitui a Nara Leão de 1980 no “Dueto” com o agora avô. Chico avô e Clara neta inserem na listinha de meios de comunicação disponíveis para o “Dueto” os agora onipresentes Google, Twitter, Facebook, Tinder, WhatsApp, Instagram, e-mail, Snapchat, Orkut, Telegram, Skype… Outra nota de contemporaneidade, Chico se reúne a Gilberto Gil em contexto pandêmico para cantar a soturna “Sob Pressão” (2020) na série global homônima, sob autoria de Gil e Ruy Guerra.
Mais pungente e feroz é gravação póstuma liderada por Wilson das Neves, um integrante histórico das bandas de Chico. “Senzala e Favela” (2023), composta pelo ás do samba com Paulo César Pinheiro, reúne numa preciosa colisão Wilson, Chico e o rapper paulistano Emicida, sobre versos contundentes: “Veja a vergonha da escravidão/ na aflição da favela/ se vê separação de cor/ o negro está sempre ao rés do chão/ nos degraus dessa escala/ isso não mudou/ desde o momento da criação da primeira favela/ a desagregação voltou/ nego ainda está nessa condição/ de miséria e mazela/ de quando começou”.
Embarcado nos anos 2020, Chico Buarque ensaia despistar um protesto maroto atrás de “Que Tal um Samba?” (2022), às vésperas da derrota eleitoral do regime protofascista que voltara a governar o Brasil desde 2016. “Que tal um samba?/ puxar um samba, que tal?/ para espantar o tempo feio/ para remediar o estrago/ que tal um trago?”, começa a prosaica chamada para uma roda de samba no tempo presente (e não no porvir). O procedimento galhofeiro mal oculta intenções tipicamente buarquianas (leia aqui análise de FAROFAFÁ em 2022): “De novo com a coluna ereta, que tal?/ juntar os cacos, ir à luta/ manter o rumo e a cadência/ esconjurar a ignorância, que tal?/ desmantelar a força bruta/ então que tal puxar um samba?”.
Diferente dos temas de porvir da ditadura anterior, “Que Tal um Samba?” joga a cartada de decretar o fim da borrasca, antes de ela ter de fato amainado – e o velho compositor engajado, aos 78 anos, viu a aposta arriscada se concretizar, com a terceira eleição de Lula. As décadas podem correr e se amontoar e o compositor pode despistar quanto quiser, mas uma vez Chico Buarque, sempre Chico Buarque.
(Leia mais sobre os 80 anos de Chico Buarque aqui.)
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