O Tio Paulo, a Pensão Garoa e um país há muito desalojado

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Um cadáver “tentando” sacar um empréstimo bancário que lhe tinha sido prometido, com juros de até 143% ao ano, para reformar a garagem de quatro metros quadrados onde dormia em um estrado de madeira na Estrada do Engenho, em Bangu, reforma da qual nunca chegaria a usufruir.

Dez pessoas carbonizadas e 13 queimadas e intoxicadas numa pensão no centro de Porto Alegre, a maior parte delas inquilina pagando 550 reais mensais de aluguel por um aposento de exíguos metros quadrados.

O fio que conecta as tragédias brasileiras mais faladas da última semana (a primeira pela nossa atração pela bizarria; a segunda em pulsões de solidariedade conformada) assenta-se sobre a precariedade da vida urbana, do desalojamento progressivo experimentado por uma era que se acostuma a viver num não-lugar, numa não-cidadania, num estado de desapropriação permanente.

A tragédia do morto pedindo empréstimo alimentou nosso sadismo num primeiro momento, depois acendeu o alerta contra os abusos legais, depois voltou à esfera do folclore. O Rio de Janeiro, com um déficit de meio milhão de moradias (220 mil na capital), viu essa estatística desfavorável se aprofundar com a instauração do urbanismo miliciano – encabeçado por aqueles mesmos acusados de mandar matar a vereadora Marielle Franco por ela ter se posicionado contra esse estado de coisas. Os irmãos Brazão são integrantes de um pérfido sistema que lucra com o déficit habitacional, os exploradores dos Tios Paulos. Essa ascendência das milícias consta do relatório “Panorama dos Conflitos Fundiários Urbanos no Brasil 2019-2020”, que mostra que o Rio de Janeiro se tornou o estado com maior número de conflitos fundiários urbanos no Brasil, com 164 dos 647 casos registrados no país.

Já o caso da Pensão Garoa deriva diretamente do déficit habitacional na Região Metropolitana de Porto Alegre, hoje estimado em cerca de 90 mil moradias, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP), número inferior ao de imóveis vagos na metrópole, segundo informou o Observatório das Metrópoles. Em todo o Estado do Rio Grande do Sul, o déficit habitacional é de 220.927 (65.275 vivendo em habitações precárias, 34.073 em coabitação e 121.579 em ônus excessivo com aluguel).

A concentração histórica das habitações e das terras tanto no campo quanto na cidade produzem desigualdades, desalojamento e se tornam ativos nas mãos de organizações criminosas de caráter paramilitar. Essas, por sua vez, crescem e estreitam conexões nas esferas dos poderes político e econômico, para garantir seus negócios. Foi didática, para o desmascaramento desse esquema, a tentativa da Câmara dos Deputados de tentar livrar da prisão os apontados como responsáveis pela morte de Marielle Franco – essa união circunstancial não se deu somente pelo espírito de corpo, de autopreservação de classe, isso ficou evidente, mas muito mais pelo temor da quebra de uma rede íntima de favorecimentos, financiamentos eleitorais, fundos sem fundo de suporte político.

A força do desalojamento faz com que o poder econômico, aliado ao poder político, mude regras a seu bel prazer e faça ecoar seu discurso falsamente progressista. Para ampliar a potência da especulação imobiliária, o texto que mudou o Plano Diretor da Cidade de São Paulo conseguiu ampliar seu potencial construtivo: antes, só se poderiam construir prédios mais altos num raio de até 600 metros das estações de trem e metrô. Agora, essa licença estendeu-se por até 700 metros. Em tese, a ideia seria tornar a cidade mais densa próxima dos eixos de transporte. Na prática, com apartamentos com preços girando bem acima de 1 milhão de reais, aluguéis a 5 mil. 6 mil reais, essa cidade mais “densa” não pretende abraçar a classe média baixa, e a mudança presta-se a benefícios maiores ao setor imobiliário, evidentemente (o que sugere ramificações, na Câmara de Vereadores de São Paulo, das distorções que geraram o esquema de Hussain Aref Saab, há 10 anos).

Entre o Tio Paulo e a Pensão Garoa, há um País que se escora indecentemente, e cada vez mais, nas costas dos desfavorecidos, os momentaneamente fragilizados; um país que, rindo nervosamente ou ficando consternado, não pode mais esconder as responsabilidades a serem encaradas.

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