A ministra Margareth Menezes canta com a banda BaianaSystem no Festival do Futuro, na posse de Lula em 1º de janeiro - foto Weudson Ribeiro

“Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, criar condições de acesso universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, promover o desenvolvimento cultural geral da sociedade. Porque o acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável. Porque, ao investir nas condições de criação e produção, estaremos tomando uma iniciativa de conseqüências imprevisíveis, mas certamente brilhantes e profundas já que a criatividade popular brasileira, dos primeiros tempos coloniais aos dias de hoje, foi sempre muito além do que permitiam as condições educacionais, sociais e econômicas de nossa existência. Na verdade, o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso povo, nos mais variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira.”

Nas últimas décadas, esse discurso de Gilberto Gil, em sua posse como ministro da Cultura do primeiro governo Lula (2003), vem sendo reproduzido por parte importante dos setores democráticos, se consolidando como paradigma hegemônico no campo das políticas culturais do país. A partir dessa premissa, o único papel da estrutura pública passa a ser a garantia das condições de acesso aos bens e serviços culturais à sociedade – sem poder agir com intencionalidade simbólica específica; sem poder produzir, ela própria, bens e serviços culturais.

Trata-se de uma resposta importante aos regimes totalitários, em que o Estado é usado como instrumento para imposição de um modelo estético, ético e moral, que invisibiliza, persegue e violenta tudo aquilo que não se encaixa nesse modelo (ilusório, diga-se passagem, dado que identidade absoluta é um mito a-histórico). Da mesma forma, trata-se de uma resposta ao populismo colonialista, ancorado na suposta tese de que o aparelho estatal teria como missão “levar cultura” para quem “não tem” (ou seja, a reprodução da hierarquia de capitais culturais que estrutura a sociedade global e é atravessado por outros capitais, especialmente o econômico e o social).

Não resta dúvida de que, sim, o discurso de Gil segue extremamente atual, ao afirmar que a missão central do poder público é promover o melhor ambiente possível para a experiência cultural. Por sinal, esta é a síntese histórica entre os modelos liberais e os modelos totalitários: o reconhecimento dos direitos culturais e do papel do Estado, com garantia da autonomia e da diversidade. Síntese esta que faz do Brasil referência internacional, como pensamento, consolidado no Plano Nacional de Cultura, e, como política pública de novo tipo, especialmente no Cultura Viva e nos Pontos de Cultura.

Entretanto, as chagas que o fascismo deixou no corpo e na alma do país nos impõem a necessidade de aprofundar este debate. Uma das perguntas a ser feita é: “Será que existe neutralidade simbólica na ação estatal?”. Mesmo na garantia das condições de acesso, o Estado não está fazendo cultura? Não está promovendo uma cultura de direitos, democrática, por exemplo?

O próprio Gil responde a esta pergunta, ainda no seu discurso de posse como ministro de Lula:

“Tenho, então, de fazer a ressalva: não cabe ao Estado fazer cultura, a não ser num sentido muito específico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura. No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta.”

A partir desse paradigma, foi construído o Sistema Nacional de Cultura e criado um conjunto de políticas culturais em todo o país. A utilização de editais públicos, instrumento impessoal e mais blindado aos interesses políticos de governantes, se tornou a estratégia principal para dar consequência a esse paradigma, distribuindo recursos públicos à produção cultural da sociedade.

Inúmeras estratégias foram construídas para que os editais pudessem atuar para a redução do desequilíbrio que as desigualdades sociais, culturais e econômicas impõem às condições de criação e produção no campo cultural (inclusive, para participação e disputa nas concorrências que os editais instauram). Da mesma forma, inúmeros editais foram elaborados com o objetivo de que os projetos culturais da sociedade contribuíssem em determinados temas e dimensões, como o combate ao racismo, à heteronormatividade, ao machismo, como a qualificação de processos educativos, redução das violências, consciência ambiental etc.

Assim, o próprio Ministério da Cultura fortaleceu uma cultura de direitos, de cidadania. Mas, por outro lado, teve reduzida capacidade de disputa simbólica junto às massas, a partir da própria máquina estatal e sua possível ação em escala nacional.

Reconstrução democrática e cultura cidadã

O golpe de 2016 trouxe inúmeras reflexões e ensinamentos aos setores progressistas e democráticos. Talvez um dos mais importantes seja de que é impossível pensar o Brasil sem pensar na dimensão simbólica de nosso povo. É mais impossível, ainda, transformá-lo sem disputar valores, visões de mundo e sem desenvolver uma nova sensibilidade e uma nova consciência coletiva. Sem o fortalecimento de uma cultura democrática, cidadã e de diversidade.

Por mais que tenhamos melhorado significativamente as condições de vida da população nos primeiros governos Lula e Dilma, esta melhoria não foi acompanhada de um projeto de promoção dos valores democráticos e civilizatórios. O pleno emprego, a ampliação do acesso ao ensino superior, a compra da casa, do carro e da TV novos não foi acompanhada por uma perspectiva coletiva. Tais melhorias foram capturadas por leituras religiosas conservadoras, neoliberais, despolitizadas e até antipolíticas, que apresentaram as justificativas mais “plausíveis” ao povo brasileiro – e foi justamente nessa dimensão simbólica que se sustentou o golpismo, avançando para neofascismo.

O governo Bolsonaro refutou radicalmente o paradigma sustentado por Gil. Escancarou a inexistência de neutralidade estatal. Definiu a cultura como uma das principais trincheiras de afirmação de seu projeto totalitário, neoliberal, negacionista, armamentista, golpista, machista, LGBTfóbico e racista. A “guerra cultural” passou pela destruição das estruturas públicas de gestão, ataque aos direitos culturais e à diversidade. O Estado passou a só fazer cultura (sozinho), a se ausentar da sua missão como garantidor das condições de acesso aos bens e serviços culturais, e, pior, passou a perseguir e censurar parte importante das expressões culturais do país. Teve na cultura a dimensão de afirmação de um projeto autoritário e identitarista, inclusive como estratégia de dissimulação do modelo econômico neoliberal, que retirou direitos de trabalhadoras/es e piorou as condições de vida da população.

Os desafios para a reconstrução democrática são inúmeros. Não somente o restabelecimento da institucionalidade do Estado e das políticas públicas, um dos principais desafios do terceiro governo Lula é a construção de uma estratégia de intervenção simbólica, de promoção de valores democráticos. Não para um projeto político-partidário, para afirmação de um determinado regime de Estado e modelo econômicos. Mas, sim, para promoção dos valores básicos de uma cultura democrática, cidadã, de diversidade, de valorização da ciência, da ação coletiva e da não-violência, tarefa esta que compete ao novo Ministério da Cultura e à ministra Margareth Menezes, mas a todo o conjunto de estruturas governamentais e políticas públicas: o Ministério da Justiça precisa combater a cultura armamentista, promovendo uma cultura de paz; o Ministério da Saúde precisa combater a cultura negacionista, promovendo uma cultura de valorização da ciência; o Ministério da Educação precisa combater a cultura autoritária e promover uma cultura de diálogo; e por aí vai.

Quanto ao Ministério da Cultura, não se deve cogitar qualquer retrocesso das bases paradigmáticas sustentadas por Gil e pelo importante legado de políticas culturais republicanas. Pelo contrário: é necessário o reforço da missão do Estado em garantir as condições de criação e produção cultural da própria sociedade no país. Mas, além da ampliação orçamentária para investimento em políticas culturais e editais públicos, é importante que o novo MinC venha a ter um papel mais ativo na disputa simbólica.

Os novos tempos exigem a criatividade e a ousadia que Gilberto Gil e Juca Ferreira tiveram na formulação de toda uma estrutura conceitual, programática e institucional no Ministério da Cultura a partir de 2003. Um dos desafios colocados ao novo governo Lula na área da cultura é a criação de uma ação estatal não comandada pela sua burocracia, mas de reinvenção do próprio Estado. De um Estado poroso, aberto, ventilado, atravessado pela sociedade.

O desafio, agora, pode ser superar a dicotomia “ou a sociedade, ou o Estado”, produzindo uma ação integrada e articulada. O Estado COM a sociedade.

Na campanha eleitoral de 2022, o próprio presidente Lula acendeu o farol: a criação dos Comitês de Cultura. Pela fala do presidente, os comitês serão a base de democratização do Estado, da contribuição fundamental e estratégica da dimensão cultural no processo de reconstrução democrática e retomada dos desenvolvimentos no país. Em cada unidade da federação teremos um comitê, com a presença de artistas, intelectuais, trabalhadores e trabalhadoras da cultura, pensando e agindo junto aos grandes temas da contemporaneidade brasileira e global, numa atuação transversal a todas as áreas governamentais.

Os Comitês de Cultura podem ser uma estratégia de reinvenção da própria participação social. De Estado em movimento.

“As políticas públicas para a cultura devem ser encaradas, também, como intervenções, como estradas reais e vicinais, como caminhos necessários, como atalhos urgentes. Em suma, como intervenções criativas no campo do real histórico e social. Daí que a política cultural deste ministério, a política cultural do governo Lula, a partir deste momento, deste instante, passa a ser vista como parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso país. Como parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática, plural e tolerante. Como parte e essência de um projeto consistente e criativo de radicalidade social. Como parte e essência da construção de um Brasil de todos.” – Discurso de Gilberto Gil na cerimônia de posse como Ministro da Cultura do Brasil (2003)

Traçamos, aqui, algumas linhas propositivas para a gestão da Ministra Margareth Menezes sobre o que podem ser e como podem agir os Comitês de Cultura, diante dos novos desafios impostos à democracia brasileira.

Comitês de Cultura e o Estado em movimento

A redemocratização do Brasil fez proliferar um sem-número de instâncias de participação da sociedade civil e cogestão com o Estado. Conferências, conselhos, fóruns, colegiados, orçamentos participativos. Conquistas inegáveis para a construção da cidadania como o conhecimento do “direito a ter direitos” (conforme Hannah Arendt), e para o desenvolvimento de uma cultura política democrática, ativa e coletiva. Esferas que trouxeram as cidadãs e os cidadãos, beneficiárias/os últimas/os da ação estatal, para o centro da arena pública. Com elas, parte importante da sociedade civil passa a agir no interior do corpo do Estado, inclusive borrando as fronteiras que os separam.

Entretanto, os Comitês de Cultura, nesta proposta, não devem ser confundidos com esse tipo de esfera. Não surgem para substituir ou compartilhar competências com os Conselhos de Política Cultural (municipais, estaduais e nacional), por exemplo. Podem surgir não para o planejamento, monitoramento e avaliação das políticas culturais, de uma forma mais abstrata, institucional. Mas, sim, para agir junto ao Estado na produção de estratégias de intervenção simbólica. A sociedade, junto ao Estado, promovendo uma cultura democrática e cidadã.

Os Comitês de Cultura podem ser formados por artistas, intelectuais, trabalhadores e trabalhadoras da cultura, redes e movimentos sociais, organizações sociais. Contar com diversidade artística, étnica, racial, de gênero, geracional, sexual, de credos, territorial, política. Ser compostos por representações do poder público, universidades, equipamentos culturais, mas com maioria da sociedade civil, tendo estratégias de composição democráticas.

Podem partir da análise da realidade social e definir estratégias para atuação simbólica. Debater temas, desafios para a democracia e para o futuro da humanidade. Abordar temas como diversidade, emergência climática, contribuição de povos originários, violência, dentre outros.

Os comitês podem atuar como esferas curatoriais na elaboração de estratégias impactantes de intervenção artística e cultural. Podem promover ações educativas e formativas, construir programações (jornadas, mostras, feiras, festivais etc.), produzir diretrizes e conteúdos para meios de comunicação (em parceria com a EBC, por exemplo), promover estratégias de mobilização social (campanhas, por exemplo), de engajamento em redes sociais, concursos de produção artística de jovens em plataformas digitais, elaborar editais e chamadas públicas temáticas, podem propor e conduzir estratégias de participação direta da população… e por aí vai, até onde a criatividade do povo brasileiro for capaz de inventar.

Cada Comitê de Cultura, e/ou o conjunto dos comitês reunidos, definirá, a partir da leitura da realidade cultural do país, quais são seus principais desafios, definindo planos de atuação (com temporalidade também a ser definida). Para tanto, precisarão dispor de orçamento e de uma estrutura de organização e gestão interna (talvez por meio de OSCs selecionadas em editais, por exemplo).

Há de se pensar, junto à própria sociedade, nos primeiros meses do governo Lula e de gestão da ministra Margareth Menezes, objetivos, desenhos institucionais, formas de composição, organização e atuação dos comitês, dentre outras dimensões e aspectos.

As diferentes estruturas públicas, nos três níveis da federação, podem atuar em conjunto com os comitês. Propondo temas, estratégias, fazendo parcerias.

O papel do Estado será, fundamentalmente, o de dar suporte a esta estratégia. Dialogar, propor, acolher, viabilizar as condições, promover o diálogo institucional junto às diferentes políticas públicas. O Ministério da Cultura poderá atuar a partir dos escritórios regionais e das estruturas descentralizadas do Iphan. Mas o movimento central é de baixo para cima. É de ocupação do Estado pela sociedade, para atuação em sinergia.

O Cultura Viva e os Pontos de Cultura representaram uma inovação institucional absolutamente transformadora, ao garantir os direitos culturais, como obrigação do Estado, a partir da potencialização de grupos culturais já existentes no corpo do país, fortalecendo sua autonomia e diversidade. Agora, os Comitês de Cultura podem representar mais um passo nessa história que marca a criatividade da cultura política brasileira.

Os Pontos de Cultura promovem os direitos culturais em seus territórios. Sâo a política de base comunitária do Sistema Nacional de Cultura. Agora, no novo governo Lula, é hora de transbordar os territórios e ocupar, também, o próprio Estado.

“Em resumo, é com esta compreensão de nossas necessidades internas e da procura de uma nova inserção do Brasil no mundo que o Ministério da Cultura vai atuar, dentro dos princípios, dos roteiros e das balizas do projeto de mudança de que o presidente Lula é, hoje, a encarnação mais verdadeira e mais profunda. Aqui será o espaço da experimentação de rumos novos. O espaço da abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens. O espaço da disponibilidade para a aventura e a ousadia. O espaço da memória e da invenção.” – Discurso de Gilberto Gil na cerimônia de posse como Ministro da Cultura do Brasil (2003)

Com os Comitês de Cultura, o Brasil pode dar mais um passo importante na construção de uma sociedade democrática e justa. Pode colaborar com a contracolonização do Estado e das relações sociais e culturais.

Brasil, janeiro de 2023

João Pontes é sociólogo, diretor de Políticas Culturais e Participação Social da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte e integra a Operativa Nacional do Comitê Paulo Gustavo e o Núcleo de Apoio às Políticas Públicas (NAPP) de Cultura da Fundação Perseu Abramo. Participou da elaboração do programa de governo de Lula na cultura e integrou a equipe técnica do Grupo de Trabalho de Cultura do Gabinete de Transição. Foi coordenador-geral do Plano Nacional de Cultura no Ministério da Cultura, diretor de Cidadania e Diversidade Cultural no Governo do Rio Grande do Sul e coordenador do projeto Escola Animada, no Polo Audiovisual da Zona da Mata de Minas Gerais. [email protected]

Ainda Gil, no discurso de posse: “Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. Sabemos muito bem que em matéria de cultura, assim como em saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes à lógica do mercado que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte. Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance, da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos. Sabemos que é preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carências.”

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