“Bebete vãobora/ pois já está na hora/ olha que o galo cantou/ e o sol vai raiar e você não parou de sambar/ eu sei que você me é fiel, mas é que os vizinhos já estão a olhar e falar/ eu sou o seu homem/ e você, minha mulher/ mas quem não chora não mama/ e o nosso neném tá chorando, querendo mamar”, chamou Jorge Ben Jor quando ainda era Jorge Ben, em 1969, numa das canções fundadoras do gênero musical que futuramente ficaria conhecido (à revelia do autor) como samba-rock. “Mas quando eu comecei a gostar de você/ você me abandonou/ agora chora que é bom, chora que eu quero ver/ vai começar a chover/ só eu tenho um guarda-chuva, adivinha quem vai se molhar/ quem vai se molhar é você”, retrucou Bebete noutro samba-rock fundador, composto pelo mesmo autor e lançado no mesmo ano.
Quem poderá saber quem era essa tal Bebete de “Bebete Vãobora”? Quem se lembra de quem era a jovem de 18 anos que cantava “Meu Guarda-Chuva”? Em que lugar do passado ficaram incrustados aqueles personagens e aquelas canções aquosas e emotivas que misturavam chuva e lágrimas ao ritmo híbrido de samba e rock, transformando tristeza em alegria como num passe de mágica?
Passados 55 anos do sucesso inicial (discreto) de “Bebete Vãobora” e “Meu Guarda-Chuva”, este jornalista parte de ônibus em busca de Elizabeth Viana, cantora do segundo samba-rock e inspiradora do primeiro. Segundo conta o músico mineiro Pedro Cezar, ela mora no município e estância turística de São Roque, a 62 quilômetros da capital paulista, e comandará o baile nesta noite de sábado de 24 de fevereiro de 2024.
Localizada na rota da há muito tempo extinta Estrada de Ferro Sorocabana, a serrana São Roque é notória por seus vinhos, uvas, alcachofras e reservas ecológicas de mata atlântica. Aos 73 anos, Elizabeth comandará a Noite Estrelada – Baile da Melhor Idade, num amplo salão do garboso, velho e verde espaço cultural, educacional e turístico Brasital, antiga sede de uma das primeiras fábricas têxteis do país, a Brasital, fundada em 1890.
Paulista nascida em Marília e criada na vizinha e pequena Vera Cruz, filha de mãe branca e pai negro, ambos mineiros, Elizabeth Viana possui a mesma carga genética do gênero musical nunca consolidado que ela ajudou a inventar, inicialmente com o acompanhamento do grupo de samba joia Os Originais do Samba, do também comediante carioca Mussum.
O samba-rock foi formulado na segunda metade dos anos 1960 por Jorge Ben, um artista carioquíssimo que já experimentava com jazz, orquestras afrobrasileiras, bossa nova, samba e iê-iê-iê e reinventou sua sonoridade no álbum de 1969, um hit parade pessoal contendo “País Tropical”, “Que Pena”, “Charles, Anjo 45”, “Take It Easy My Brother Charles”, “Criola”, “Domingas”, “Cadê Tereza” e, abracadabra!, “Bebete Vãobora”.
O antencedente mais antigo do uso da expressão aparece numa música de 1958 assinada pelo baiano Gordurinha e pela pernambucana Almira Castilho, a provocadora “Chiclete com Banana”, eternizada a partir do ano seguinte na voz do coquista e sambista paraibano Jackson do Pandeiro. Antes de o termo samba-rock se tornar forte o suficiente para designar um gênero, em algum indefinido entre o final dos anos 1960 e meados dos 1980, a fusão que o caracteriza foi chamada de sacundin, balanço, sambalanço, suingue, pilantragem, samba jovem…
Esse último título, uma tentativa de reconciliar a jovem guarda do ídolo pop Roberto Carlos com a música popular brasileira engajada, foi testado por Erasmo Carlos e Jorge Ben quando moraram juntos em São Paulo, especialmente no álbum O Bidu – Silêncio no Brooklin (1967), lançado pelo segundo com o acompanhamento do conjunto de iê-iê-iê The Fevers. Tratava-se da primeira tentativa de Jorge de trocar o violão pela guitarra elétrica, e a ruidosa repercussão negativa do “samba jovem” (que incluiu, no limite, uma passeata anti-guitarra liderada por Elis Regina) talvez esteja na origem da rejeição do termo “samba-rock” pelo pai da invenção.
O samba-rock enquanto gênero jamais teve vida autônoma fora dos guetos, talvez por despurificar o samba carioca dito de raiz, talvez por ter sido logo adotado por excêntricos (e mestiços) artistas paulistas (a banda de iê-ie-iê Os Incríveis em sua segunda encarnação, Bebeto, o ex-Originais do Samba Branca di Neve), mineiros (Marku Ribas, Wanderléa no início dos anos 1970), gaúchos (Luis Vagner, Bedeu e seu grupo Pau Brasil), um gaúcho nascido na Itália (Franco Scornavacca), um português radicado em São Paulo (Abílio Manoel), pernambucanos (Paulo Diniz) ou da ponte Rio-São Paulo (Os Originais do Samba e Trio Mocotó, ambos influentes na recondução da sonoridade de Jorge Ben quando, saído do mitológico Beco das Garrafas, passou a abraçar São Paulo, a jovem guarda de Erasmo Carlos, a pilantragem de Wilson Simonal e a tropicália de Gilberto Gil).
Elizabeth nunca tomou para si o apelido de Bebete. Explica com modéstia e cautela a ligação com Jorge Ben (veja o vídeo abaixo) e não sabe contar com precisão como se deu a gênese do samba-rock. Assim como esse gênero musical, ela oscila entre vários termos de auto-identificação – “neguinha”, “parda”, “preta” – e conta que passou grande parte da vida profissional alisando os cabelos, prática corrente e predominante entre mulheres não-brancas até não muitos anos atrás.
Nunca foi uma cantora de samba convencional, ou apenas de samba, e por isso atravessou o mesmo processo destrutivo que espremeu a maioria dos artistas negros brasileiros nascidos no século passado que não quisessem ficar confinados àquele único estilo musical tido como (afro-)brasileiro por excelência. Aconteceu com Elizabeth Viana o mesmo que acontecia e acontece com Johnny Alf, Alaíde Costa, Elza Soares, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Leny Andrade, Sonia Santos, Luiz Melodia, Emílio Santiago, Áurea Martins, Márcia Maria, Tania Maria, Zezé Motta, Vilma Nascimento, Rosa Marya Colin, Altay Veloso, Rosa Passos, Adyel Silva, Leila Maria etc. etc. etc. A tentativa de enquadramento, compartilhada em uníssono pelas grandes gravadoras multinacionais do século passado, causou sequelas que persistem até os dias atuais: na cidade onde se radicou há mais de 20 anos, por exemplo, Elizabeth é insistentemente rotulada como “a Alcione de São Roque”.
Por esse e por vários motivos, ela desenvolveu uma carreira discográfica curta e dispersa e foi invisibilizada pela mídia caça-cliques (ou o que quer que governasse o “sucesso” à época). Essa escassez, no entanto, não a impediu de passar grande parte das últimas sete décadas em cima do palco, dos mais variados palcos, fosse nos programas da TV Tupi e da Globo, nos festivais da canção, em boates, em teatros (caso da temporada carioca de 1970 no Teatro Casa Grande, ao lado de Jair Rodrigues, Márcia e Os Originais do Samba), em bares (como o Trem Azul, em Pinheiros, na capital paulista, do qual foi sócia minoritária) ou no salão do Espaço Cultural Brasital.
Bebete, vãobora!, em São Roque
De volta ao baile de samba-rock em São Roque no pós-carnaval de São Roque, o início de noite não promete muito. (Várias) senhoras e (poucos) senhores da dita melhor idade chegam vagarosamente, fazendo crer que o espaço gigantesco e cheio de eco ficará longe de lotado. “A gente tinha um eco de três segundos. Se você bate uma palma, essa palma fica soando durante três segundos no espaço”, explica depois Pedro Cezar, de 41 anos, espécie de anjo da guarda de Elizabeth, músico de sua banda, produtor musical, líder de diversos grupos na Poços de Caldas natal e autor do álbum solo Matutando Sonho (2023), em que toca violão de náilon, violão de aço e viola caipira.
Elizabeth entra nervosa no palco e chega a passar mal durante um intervalo, mas sua performance é suficiente para inverter qualquer expectativa negativa, sobretudo na segunda parte, quando desiste do sapato alto e volta descalça e cheia de fogo. O show começa com a banda tocando “Bebete Vãobora” para recebê-la e prossegue com uma saraivada de clássicos underground do samba-rock. Ela canta sambalanços que nunca gravou, como “Coqueiro Verde” (1969), composto por Erasmo e Roberto Carlos e gravado pelo primeiro e pelo Trio Mocotó; “É Isso Aí” (1971), do emepebista Sidney Miller, gravado como sambalanço por Doris Monteiro; “Segura Nega” (1975), de Bebeto; “Só Que Deram Zero pro Bedeu” (1974), de Luis Vagner; “Vendedor de Bananas” (1969), de Jorge Ben, lançado pel’Os Incríveis; e, claro, “Meu Guarda-Chuva”, no encerramento.
Do funk, do soul e do black music nacionais, irmãos mais retintos do samba-rock, comparecem dois clássicos de Tim Maia e/ou Cassiano, “Azul da Cor do Mar” e “Primavera”, lançadas no LP de estreia de Tim, em 1970.
Confirmando a mestiçez musical, Beth dá tons de samba-rock a um repertório variado, que privilegia a MPB de Djavan (“Flor de Lis”, 1976), João Bosco, Aldir Blanc e Elis Regina (“O Bêbado e a Equilibrista”, 1979), Ivan Lins e Elis (“Madalena”, 1970) e Chico Buarque (“A Rita”, 1966). Desafia limites samba-rockeando uma fossa nova de Caetano Veloso (“Sampa”, 1978, um samba-canção lançado por sua favorita Elizeth Cardoso (“Naquela Mesa”, 1972) e música de festival e de fogueira (“Andança”, 1969, do repertório pré-sambista de Beth Carvalho).
Elizabeth não fica só nisso e vai além. Beliscando com brilho uma nordestinidade forrozeira samba-rockeada, canta o maranhense João do Vale sob a ótica funk de Tim Maia (“Coroné Antônio Bento”, 1970, nascida “Matuto Transviado” na voz do alagoano Luiz Wanderley, em 1959), os pernambucanos Alceu Valença (“Tropicana” e “Como Dois Animais”, de 1982), Dominguinhos e Anastácia (“Eu Só Quero um Xodó”, 1973), Targino Gondim (“Esperando na Janela”, 2000) e, evidentemente, o patriarca de todos os sertanejos nordestinos Luiz Gonzaga (“Asa Branca”, 1947, e “Xote das Meninas”, 1953).
Beth cede, ainda, ao rótulo de “Alcione de São Roque” e faz uma seleção matadora de sucessos da cantora maranhense, com “Não Deixe o Samba Morrer” (1975), “Sufoco” (1978), “Gostoso Veneno” (1979), “Você Me Vira a Cabeça (Me Tira do Sério)” (2001) e, a mais samba-rock de todas, “Meu Ébano” (2006). A sessão de samba joia inclui também Benito di Paula (“Retalhos de Cetim”, 1974) e Agepê (“Deixa Eu Te Amar”, 1984)
A seleção e o tratamento do repertório são suficientes para incendiar o público do baile. Para balancear a disparidade entre os sexos, a prefeitura contrata o Grupo Elite, composto por dez homens de camisas brancas, calças pretas, suspensórios e sapatos para tirar gentilmente as senhorinhas para dançá-las e ao final de cada música devolvê-las a seus lugares nas mesas e cadeiras do salão. Pouca gente sabe reproduzir os passos característicos do samba-rock, mas todo mundo sabe e quer dançar, das mais lépidas às mais idosas e menos ágeis.
Termômetro do sucesso da empreitada é a presença da comitiva do prefeito Guto Issa (ex-Podemos, atual Rede Sustentabilidade), em plena pré-campanha pela reeleição. Ágil, ele dança, canta várias músicas de cor e faz selfies com os fãs, senhorinha por senhorinha, até quase o final do baile. A prefeitura de Issa obedeceu a sugestão de Elizabeth de promover o programa destinado à melhor idade, sete edições atrás – apesar disso, esta é a primeira vez que ela se apresenta ali. Não bastasse isso, o prefeito insiste para que Elizabeth se candidate à Câmara de Vereadores, sinal da popularidade da cantora na cidade, ideia à qual ela diz resistir no dia seguinte, quando vou até sua casa num bairro periférico da cidade, para fazer a entrevista que segue ao final deste texto.
Na conversa, de que participa também seu hóspede Pedro Cezar, Beth percorre intuitivamente os obstáculos que a separaram dos panteões da MPB e do samba, que devem incluir a cor da pele e o papel relegado à mulher na sociedade dos anos 1960 e 1970, entre vários outros. “Papai sempre cuidou da minha vida, das minhas coisas. Saí do papai, casei, fui para o marido. Sempre deixei minhas coisas muito na mão deles. Nunca tomei o pulso da minha carreira, infelizmente”, conclui.
O pai foi também seu empresário, dos tempos de cantora-mirim que percorria programas de rádio e TV desde os 10 anos de idade até se tornar vencedora do programa televisivo de novos talentos A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti. A Jorge Ben ela chegou por intermédio do mitológico produtor musical Fernando Faro, quando lhe disse que gostaria de gravar uma música do autor – daí saíram “Meu Guarda-Chuva”, seu primeiro lançamento, que até hoje Jorge não gravou em voz própria, e logo a seguir a também inédita “Se Você Quiser mas sem Bronquear” (que fez carreira no ano seguinte em versões de Claudette Soares, Doris Monteiro, Milton Banana e Golden Boys). O primeiro e único álbum, Canto Livre (1977), foi orientado pelo primeiro marido, Josel Boer, que fundou uma gravadora independente para fazer o lançamento.
O canto livre de Beth Viana
Canto Livre é um disco mais próximo da MPB e do samba que do samba-rock, embora ali estivesse a canção de levante racial “Dilê”, de Jorge Ben, lançada por ele em 1964 com o nome “Jeitão de Preto Velho” e regravada em 1970 pelo Trio Mocotó, já como “Dilê“. Assumindo a feição de uma intérprete adulta, Beth gravou MPBs de Chico Buarque (“João e Maria” e “Olhos nos Olhos”) e Djavan (“Dupla Traição”) e sambas de Nelson Cavaquinho (“Beija-Flor”), Mauro Duarte (“Lama”, lançada dois anos antes por Clara Nunes), Gilson de Souza (“Lágrimas” e “Canção pra Quem Vem”) e Roberto Ribeiro (o samba-enredo “Brasil, Berço de Imigrantes”).
Uma história do que poderia ter sido, mas não foi envolve a célebre “João e Maria”, de Chico com Sivuca, faixa de abertura de Canto Livre: “Chico me deu com exclusividade de seis meses, através do Fernando Faro. Infelizmente, era para entrar comigo na novela, mas Josel quis lançar ele mesmo o disco e não quis vender para a Som Livre. A minha só não saiu antes da outra versão porque meu disco demorou um pouco mais para lançar. Quando saiu já estava na novela”, lembra. “João e Maria” foi lançada em 1977 na voz de Nara Leão e do próprio Chico, e no ano seguinte compôs a trilha da novela Dancin’ Days.
No final dos anos 1960, Beth chegou a disputar a faixa de cantora de MPB, que Elis Regina liderava com folga, mas, segundo diz, foi desencorajada pela gravadora que detinha seu passe, RCA Victor. Um muito jovem Milton Nascimento mostrou-lhe “Canção do Sal” (1966), que viria ao mundo na voz de Elis. Também desperdiçou a chance de gravar um canções inéditas do gênio Baden Powell. “Eu estava procurando repertório para gravar, e Milton apareceu, novinho, veio me ensinar a ‘Canção do Sal’ [cantarola], ‘trabalhando o sal/ é o amor, o suor que me sai’. Só que a gravadora achou que não era comercial”, afirma. “Baden ia me dar várias músicas, mas a RCA não quis também.”
Durante o encontro na casa de Elizabeth Viana, ela espalha pela sala dezenas de fotografias e vários dos discos em que sua voz se fez ouvir, a maioria deles compactos de duas ou quatro músicas. Ali estão também esboços de projetos não realizados, como um Elizabeth Viana canta Elizeth Cardoso – os traços fisionômicos da pupila, a propósito, lembram bastante os da cantora em sua época conhecida como “a mulata maior”.
No desenrolar da conversa, Pedro Cezar toca em seu celular gravações caseiras confiadas a Elizabeth, inclusive uma série de temas inéditos do amigo samba-roqueiro Luis Vagner e, pasme, uma canção desconhecida de Jorge Ben Jor, gravada na voz dele em versão demo e em tom de samba-blues. “Rose Boogie” (título presumido) soa 100% Jorge Ben, mas provoca uma expressão reticente no rosto da Bebete que nunca foi Bebete. “Sei lá, não fez ‘pin!’. Gosto de cantar quando eu sinto, sabe? Tem que fazer ‘pin!'”, ela traduz, não se sabe se desgostosa de “Rose Boobie” não se chamar “Beth Boogie”.
No balanço das horas históricas, Elizabeth Viana não percebeu que era candidata a líder feminina de um gênero que não teve mulheres em sua linha de frente (exceções episódicas foram Doris Monteiro, com gravações de “É Isso Aí” e “De Noite na Cama”, entre outras, e Wanderléa quando, em 1973, gravou “Kriola”, do carioca Helio Matheus), de um gênero que, ele próprio, não se consolidou completamente.
Isso não significa que o samba-rock ou a intérprete de “Meu Guarda-Chuva” não tenham constituído uma escola musical no Brasil. Sempre pelas beiradas, entre muitas descidas e subidas, o ritmo mestiço conquistou outras gerações, ecoando nos conjuntos de pagode dos anos 1990, especialmente Raça Negra e Molejo; na vanguarda paulista de Itamar Assumpção a Skowa e A Máfia; na Farofa Carioca de Seu Jorge; nos filhos de Simonal, Wilson Simoninha e Max de Castro; no Clube do Balanço de Marco Mattoli e de Tereza Gama; no pop mato-grossense de Vanessa da Mata; em grupos como Os Opalas, Farufyno, Grooveria, Eletrosamba, Sambasonics e Os Milagrosos Decompositores; entre incontáveis outros exemplos do underground musical.
Em meio a essa profusão, “Meu Guarda-Chuva” renasceu em 1999, na versão samba-soul-funk da big band Funk Como le Gusta, com participação da Banda Mantiqueira e vocais femininos a cargo de uma discípula de Elizabeth Viana, a paulistana Paula Lima. Quatro anos mais tarde, a mesma Paula, agora em carreira solo, revisitou o standard elizabethiano, agora desacelerando uma levada mais próxima ao samba-rock de ontem, hoje e sempre. A linhagem é pequena, mas preciosa o suficiente para conter em si toda uma tradição, ainda que passada subterraneamente de ouvido em ouvido e de geração em geração.
A seguir, uma transcrição da entrevista de Elizabeth Vianna a FAROFAFÁ e uma playlist de samba-rock para acompanhar a leitura.
Elizabeth Viana, a entrevista
Pedro Alexandre Sanches: Você nasceu em Marília?
Elizabeth Viana: Nasci em Marília, só que fui registrada em Vera Cruz, onde nós morávamos. Não tinha maternidade na época, então nasci em Marília e fui registrada em Vera Cruz. É do lado de Marília. Eu não conheço a minha terra, só nasci lá. Depois mudamos pra outros lugares, então nem lembro de nada lá.
PAS: E a música, quando apareceu?
EV: Minha brincadeira preferida era de cantar. Papai era marceneiro, tinha oficina, então eu pendurava umas latinhas de massa de tomate e ficava cantando o dia inteiro. Foi assim que começou, aí um dia tinha um programa na Rádio Difusora de Assis, onde nós estávamos morando, e tinha programa de calouro. Falei: ah, eu vou lá ver, assistir. Cheguei, o homem pergunta: “Quem quer cantar?”. Eu era muito tímida, ainda sou um pouco, mas levantei a mão. Alguém levantou a mão, não fui eu, acho que foi Deus. E fui, cantei e foi o maior sucesso. Aí já mandei pedir pro meu irmão, chama o papai.
PAS: O que você cantou nessa primeira vez? Lembra?
EV: Acho que foi “Cinderela”, se não me engano, que fazia sucesso com Angela Maria. Pedi para o meu irmão chamar meu pai, que enlouqueceu e falou: “Minha filha vai ser a segunda Angela Maria”. Ah, coitadinho. Me levou na professora de canto no dia seguinte. Cantei muito nessa rádio, foi muito lindo. Aí papai resolveu vir pra São Paulo. Não, primeiro nós viemos pra Sorocaba, onde também cantei. Depois então viemos pra São Paulo, e participei de todos aqueles programas infantis que tinham na época. Eu era criança ainda, devia ter uns 12 ou 13 anos. Fiquei com a professora Zita Martins, participei de vários programas infantis. Depois, já com meus 17 anos, apareceu Flávio Cavalcanti, o programa A Grande Gincana. Papai me inscreveu. Participei, foi muito incrível. Eram 1.500 candidatos, três apresentações. Tinha o jurado José Fernandes, que não dava 10 para ninguém, e eu ganhei. Nossa senhora, eu não acredito.
PAS: Cantando o quê?
EV: Olha, na primeira eu cantei “Carolina”, do Chico. Depois cantei “Naquela Mesa” e, em terceiro, “Lapinha”, que tinha acabado de sair, e ganhei. Foi lindo, ganhei um contrato com a TV Tupi e um contrato com a RCA Victor, e foi assim. Em seguida, como eu estava na Tupi, Fernando Faro, que era meu padrinho, falou com Jorge Ben.
PAS: Foi Faro o responsável?
EV: Foi ele o responsável. Ele me apresentou Jorge e aí o Jorge me mostrou “Meu Guarda-Chuva”. Foi a que gravei e que fez sucesso pro Brasil inteiro. Na época, no Rio de Janeiro, era mais sucesso o samba-rock.
PAS: Não tinha esse nome ainda, ou já se falava samba-rock?
EV: Acho que falava. Eu tomei conta do samba-rock por ele. Quando vi Jorge, fiquei assim: nossa, que maravilha. Aí gravei vários discos pela RCA, viajei muito o Brasil todo, porque “Meu Guarda-Chuva” ficou nas paradas.
PAS: A história com Milton Nascimento foi antes disso?
EV: Ah, sim, foi antes disso. Tive como empresário Corumba, da dupla Venâncio e Corumba, que também era empresário de Jair Rodrigues. Eu estava procurando repertório para gravar, e Milton apareceu, novinho, veio me ensinar a “Canção do Sal” [cantarola], “trabalhando o sal/ é o amor, o suor que me sai”. Só que a gravadora achou que não era comercial.
PAS: Foi essa a palavra?
EV: Foi, então não gravei, e em seguida Elis Regina gravou.
PAS: A gravadora não deixou você gravar?
EV: Não deixou.
PAS: Você, com 17 anos, não estava pronta para reivindicar a música do Milton para você?
EV: Não estava pronta. Papai sempre cuidou da minha vida, das minhas coisas. Saí do papai, casei, fui para o marido. Sempre deixei minhas coisas muito na mão deles. Nunca tomei o pulso da minha carreira, infelizmente.
PAS: Era o mais comum, as mulheres não conseguirem ficar na dianteira.
EV: Não dava, meu pai era muito bravo, rígido, sabe? Onde eu fazia show ele tinha que estar junto, não me largava por nada. Só me largou quando casei, inclusive acho que casei rápido para me livrar [ri].
PAS: Foi um bom negócio? Porque daí você passou do pai para o marido…
EV: Ai, passei para o marido [ri]. Olha, foi um bom negócio. Casei com um judeu, Josel Boer. Imagina, eu, negra, casei com ele. Foi bom porque ele foi um excelente marido. Só que ele não queria que eu cantasse muito. Ele tinha dinheiro, então dizia: “Quanto é o cachê?”. Eu dizia, ele falava: “Você não precisa, não vai”. Mas ele me ajudou muito, me ensinou muitas coisas da vida, foi muito legal comigo.
PAS: Era um tipo de ciúme que ele tinha?
EV: Eu acho que era. E ele montou uma gravadora, Take Play. O disco Canto Livre saiu pela gravadora, ele montou tudo, reuniu os melhores músicos. Quem toca surdo é o Branca di Neve. Mas era aquilo, né? Eu ainda deixava o marido dominar. Esse disco, inclusive, saiu em quatro países.
Pedro Cezar: A gente está tentando digitalizar toda a obra dela, tem muita coisa que não está disponível nas plataformas. Basicamente precisa da assessoria de um advogado, porque os catálogos provavelmente foram sendo vendidos de lote em lote. [Elizabeth e Pedro trazem para a sala os discos que ela tem em casa, inclusive Canto Livre, coletâneas solo e coletivas e uma maioria de compactos. Beth passa a mostrar os discos e evocar memórias sobre eles.]
EV: “Segredo” [samba-canção clássico na voz de Dalva de Oliveira, de 1947, indisponível nas plataformas na versão de Elizabeth], lado B do “Guarda-Chuva”, é uma das que eu mais gosto, um arranjo de Luiz Arruda Paes. “Se Quer Chorar” é de Antonio Carlos e Jocafi. “Gostei de Ver” é de Eduardo Gudin, que cantei num festival, acho [ela mostra o compacto duplo do Festival da Record de 1969, vencido por “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola; ela canta no compacto, mas no festival a canção foi defendida por Márcia e Os Originais do Samba]. Esse aqui é um álbum do Chico, que saía nas bancas [mostra um fascículo da coleção História da Música Popular Brasileira, de 1970]. Eu estava começando, então não tem meu nome, gravei “Olê, Olá”. Mas Chico eu só conhecia assim de longe.
PC: Também não tem essa versão em lugar nenhum.
PAS: Está aqui seu nome, Elizabeth Viana e acompanhamento.
EV: Com regional. “Meu Guarda-Chuva” eu gravei com acompanhamento d’Os Originais do Samba. “Meu Guarda-Chuva”, “Se Você Quiser mas sem Bronquear”, tudo foram eles que fizeram o ritmo.
PAS: Mussum inclusive?
EV: Mussum, sim. Fiz show em teatro com eles, éramos Jair Rodrigues, Os Originais do Samba e Márcia, cantora de “Eu e a Brisa”. Fiquei oito meses em cartaz com os Originais no Rio, no Teatro Casa Grande. Também gravei “O Sonho” (1969), de Egberto Gismonti [faixa lançada na coletânea coletiva Disparo 70, de 1969]. Na época a gravadora achava que eu tinha condições de competir com Elis. Ela fazia sucesso na Philips, A RCA queria…
PAS: …Uma Elis para chamar de sua.
EV: É, aí gravei “O Sonho”. Esse aqui [mostra um compacto de 1987, com duas composições assinadas por Benê Alves, “Magia no Olhar” e o samba-rock “Pisou na Bola“] é quando eu voltei do Japão, depois que já separei de Josel. Eu fui a primeira a gravar “João e Maria”, Chico me deu com exclusividade. Eu, como era uma bobona…
PAS: Como “João e Maria” chegou até você?
EV: Chico me deu com exclusividade de seis meses, através do Fernando Faro. Infelizmente, era para entrar comigo na novela, mas Josel quis lançar ele mesmo o disco e não quis vender para a Som Livre [gravadora da Rede Globo]. A minha só não saiu antes da outra versão porque meu disco demorou um pouco mais para lançar. Quando saiu já estava na novela. Perdi a maior oportunidade. Eu era muito bobinha, só o marido e o papai resolviam. Mas tudo bem, a gente faz as coisas sem pensar. Se fosse hoje eu não deixaria, eu iria para a Som Livre, claro. Mas é isso aí.
PAS: E em 1969 tinha sido Fernando Faro que apresentou Jorge Ben a você também?
EV: É, ele pediu ao Jorge uma música para mim. Eu conhecia Jorge, porque fazíamos muitos programas na TV Tupi, ia muito artista, e ficávamos na Casa Musical.
PAS: O que era a Casa Musical?
EV: Era onde a gente ficava antes de ir ao ar, perto da Tupi. Era o escritório do Faro, onde ele ficava e ficava todo mundo, Gal Costa, Caetano, Jorge, todo mundo. A gente ia tomar café, ficava todo mundo lá. Tenho que encontrar Jorge Ben e relembrar ele que “Bebete Vambora” saiu do meu nome. Estávamos na Casa Musical, fiquei conversando com Faro, Jorge estava do meu lado quando alguém gritou: “Bete, vambora!”. Jorge estava com o violão na mão, olhou bem para mim e falou: “Nossa, ainda não cantaram Elizabeth…”. Passou algum tempo, escutei a música. Olha só, foi naquele momento. Quero um dia encontrar com ele e ver se ele lembra esse detalhe.
PAS: “Meu Guarda-Chuva” é uma música de Jorge Ben que ele não gravou. Como chegou até você?
EV: Faro falou com Jorge, que marcou um dia e fui à casa dele. Me mostrou várias músicas, falei “é essa”. Depois ele me deu “Se Você Quiser mas sem Bronquear”, que também tocou bastante. Depois me deu “Dilê” também.
PAS: É uma letra forte essa, sobre racismo, não?
EV: “Preto velho foi padrinho”, é, verdade. Diz que ainda toca nos bailes. Precisamos cantar ela também. E é isso minha vida toda. Tem muito mais, gravei uma música do Mário Marcos também [o irmão de Antonio Marcos assina “Tem Que Me Aceitar Como Eu Sou”, de 1970, outra que está indisponível nas plataformas virtuais].
PC: Tem que digitalizar e colocar da maneira correta, porque as músicas que estão nas plataformas estão com outro produtor fonográfico, com o nome de outras pessoas. Basicamente, Beth fala que só o fonograma de “Meu Guarda-Chuva” tem o nome dela. Existe essa ausência, uma irresponsabilidade das gravadoras, da RCA.
EV: Só ganho por “Meu Guarda-Chuva”, as outras músicas não estão catalogadas, registradas, não sei como fala. E é uma mão de obra, você tem que achar os músicos, como é que eu vou lembrar disso, em 1900 e bolinha? [Beth passa a mostrar fotos, como as de uma turnê no Japão, em 1989, e a evocar outras memórias.] Tive um bar aqui em São Roque, porque eu também gosto de cozinhar, de fazer minha casquinha de siri.
PAS: Você teve um bar em São Paulo também, não foi?
EV: Tive um bar em São Paulo, o Trem Azul, em Pinheiros, foi bem legal.
PAS: Você cantava no seu próprio bar?
EV: Cantava, cantava. Cantei com trio, guitarra, baixo e bateria.
PAS: Sempre banda de rock te acompanhando?
EV: É, mais ou menos [ri]. Eu cantava, minha casa lotou. Mas eu só tinha 10% da sociedade, e quando fui ver a casa estava cheia de dívidas. Comprei 10%, mas depois, meu Deus, foi difícil, porque era muita dívida que o dono tinha. Não foi um bom negócio. Fiquei uns dois anos, acho que era 1982. Leão Lobo estava no Jornal da Tarde, foi e gostou, colocava sempre no jornal. A casa começou a lotar, foi lindo. E minha casquinha de siri começou a fazer sucesso também. Foi bom.
PAS: E você cantava samba-rock ou cantava de tudo?
EV: De tudo, porque cantei muito na noite também, durante muito tempo, em casas famosas como o Jogral, a Via Brasil. Então você é obrigado a cantar de tudo.
PAS: Jorge Ben também cantava no Jogral, não?
EV: É, Jogral foi meu primeiro lugar, era uma casa pequenininha. Sivuca de vez em quando tocava lá e queria que eu fosse a cantora, queria me contratar pra ser cantora deles. Mas não deu certo, o empresário achou que não ia ser legal, eu estava com Corumba na época e ele me queria só como solista tal, então não entrei. Mas tenho boas lembranças, muitas coisas boas, muitos músicos bons.
PAS: “Meu Guarda-Chuva” hoje é um clássico do samba-rock, mas como foi na época? Fez sucesso?
EV: Fez. Não chegou assim em primeiro lugar, mas tocava, mais no Rio de Janeiro. Eu estava no Rio toda semana. Parece que hoje não tem mais, não é como antes, né?
PAS: Você chegou a morar no Rio?
EV: Não. Só em São Paulo. Fiquei no Rio na época que eu fiz o Teatro Casa Grande, com Os Originais do Samba, Jair Rodrigues e Márcia. Nós ficamos oito meses elm cartaz, foi só esse tempo que fiquei no Rio. Morei sempre em São Paulo, depois fui para o Japão, voltei, engravidei, precisava montar minha casa. Aí tinha uma amiga que tinha um sítio aqui, em Mairinque. Ela falou: “Vai lá para o meu sítio, fique lá, tenha seu filho”. E foi o que eu fiz. Quando vi que delícia era morar no interior, mexer com a terra, meu Deus, amei, aí não consegui mais sair daqui. Não aguento mais o movimento de São Paulo. São Paulo é bom para ir para fazer compra, para passear.
PAS: O que é o samba-rock para você?
EV: O samba-rock é a minha levada. É aquilo que quando ouvi falei: é isso que eu quero cantar.
PAS: Mas você ouviu como, onde, com quem?
EV: Jorge Ban, com ele mesmo. Sempre cantei de tudo, de todos os compositores, mas na hora que ouvi o samba-rock falei :meu Deus, é isso que eu quero fazer para mim. Foi isso.
PAS: Logo no início vocês já usavam o termo samba-rock? Ninguém consegue entender direito de onde surgiu esse nome.
EV: Ah, menino, eu não sei [risos]…
PAS: Quando você gravou “Meu Guarda-Chuva” era com Os Originais do Samba, que era um grupo de samba, mas que fazia um samba misturado…
EV: …Que tocava samba-rock também.
PAS: O samba-rock seria um samba paulista?
EV: Trabalhei muito na noite, nas boates de São Paulo. Teve uma época que não tinha samba, era só música americana, foi nessa época que eu trabalhei nas boates.
PAS: Cantando o quê?
EV: De tudo, menos “Meu Guarda-Chuva”. Não cantava o “Guarda-Chuva”, só cantava o repertório que estava fazendo sucesso. Fiquei escondidinha.
PAS: Por quê? O público não pedia “Meu Guarda-Chuva”?
EV: Não, porque na noite era diferente. Era um outro público o desses lugares em que eu cantava. Nunca cantei “Meu Guarda-Chuva”, você acredita? Eu cantava Elis, tem até uns vídeos aí. Era um empresário que apareceu que ia levar a gente para os Estados Unidos.
PC: Tem uma gravação bem interessante que eles estavam tocando num estúdio.
EV: Foi no Via Brasil que a gente gravou.
PC: Ah, é, uma casa de shows, né? Tem desde versão de Elis Regina, música do Gil, sambão. Esses registros a gente tem em vídeo.
PAS: No show aqui em São Roque, deu para ver muito bem que você transforma várias músicas de MPB em samba-rock, como “Flor de Lis”, do Djavan, ou mesmo “Sampa”, do Caetano, e as pessoas continuavam dançando. É sempre assim? É esse repertório que você faz geralmente?
EV: Eu canto, mas o pessoal fala “canta Alcione”, porque, ai, dizem que sou a Alcione de São Roque [ri], eu mereço… Então pedem muito a Alcione. Eu canto esse repertório, sim.
PAS: As canções de Alcione você coloca mais pelo gosto do público então?
EV: Não, mas eu gosto de cantar Alcione, claro. Adoro cantar MPB. Gosto do samba-rock, mas gosto de cantar as outras coisas também. Gosto de tudo, na verdade.
PC: A gente acaba vendendo show desse lance da “rainha do samba-rock”. Colocamos algumas outras, mas o repertório basicamente é só samba-rock
EV: Agora, atualmente, é que eu tenho feito isso, Pedrinho, graças a você. Antes era mais outro repertório, tipo o repertório da noite, de crooner. Logo no começo eu fui crooner da banda do Zezinho, logo que nós chegamos em São Paulo. Eram as coisas que meu pai arrumava, era muito louco. Foi aí que fui aumentando meu repertório. Bem antes do “Guarda-Chuva”.
PAS: Quando gravou “Meu Guarda-Chuva”, aos 18 anos, você já era uma veterana?
EV: Comecei bem antes. “Meu Guarda-Chuva” foi só meu primeiro disco, o primeiro. O segundo foi “Se Você Quiser mas sem Bronquear”. A moda na época era a bossa na fossa, então gravei “Fechei a Porta,” umas coisas assim. Meu produtor era Wilson Miranda. Com Rildo Hora, cantei no festival [o dueto da crônica provocativa “Diferenças”, concorrente na edição de 1970 do Festival Internacional da Canção, da Globo, saiu num compacto de Rildo Hora].
PAS: De quais festivais você participou? Naqueles que revelaram Elis, Caetano, Chico, Gil você ainda não estava?
EV: Não, não estava [Elizabeth não sabe responder sobre as participações em festivais].
PC: Naquele momento dos festivais o pessoal estava querendo encaixar, ter uma cantora para competir como cantora de MPB. Aí ela gravou “O Sonho”, de Egberto Gismonti, conheceu Baden Powell.
EV: Baden também chegou a me dar uma música. Baden ia me dar várias músicas, mas a RCA achou que não ia… Não quis também.
PAS: Na verdade a gravadora te sabotava um pouco?
EV: Sabotava, porque dizia que não era comercial. Eu não lembro, preciso lembrar a música que o Baden me deu. Cheguei até a aprender, fui na casa dele. Márcia me levou, era muito amiga do Baden.
PAS: Há artistas, muitos, que não se encaixavam muito bem com as gravadoras. E aí a gente pode imaginar várias razões, né? As gravadoras diziam que o artista era temperamental. Para o artista, era a gravadora que não estava muito interessada. Como você explica a sua história relativamente pequena em disco? Por que você não gravou uma grande quantidade de músicas, como outros tantos gravaram?
EV: Olha, quem cuidava disso tudo nessa época era meu pai. Ele está vivo ainda, 92 anos, seu Viana. Era ele que cuidava, conversava. Eu só cantava. Ele falava com as pessoas e organizava, era meu empresário, no caso. Se fosse hoje seria diferente, mas…
PAS: Ou talvez não, porque talvez seu jeito seja esse?
EV: E, não briguei também, não fui atrás de falar, de querer gravar. Na época, quando ganhei A Grande Chance, tinha a CBS, que também queria que eu gravasse, e meu pai escolheu a RCA. Praticamente ele era que resolvia tudo, recebia o meu dinheiro, era uma loucura.
PAS: Por que a RCA não fez um LP seu, no momento em que você estava mais fazendo sucesso?
EV: Não fez. Fez esses compctos.
PAS: Você só conseguiu fazer anos depois, num selo independente.
EV: Independente, que Josel montou.
PAS: No caso de “João e Maria”, Josel não queria muito que você fizesse sucesso, talvez?
EV: Eu acho que sim. Ou talvez, como ele que produziu, queria ele mesmo lançar.
PAS: Ele era do ramo da música?
EV: Não. Tinha uma importadora na rua Teodoro Sampaio. Contratou os melhores músicos, fez tudo. Acho que foi para eu ficar mais quietinha dentro de casa. Porque ele gostava que eu ficasse cozinhando, cuidando da casa, era assim.
PAS: Você disse que ele era judeu, nascido onde?
EV: Nasceu no Brasil, é brasileiro, filho de judeus.
PAS: Vocês se separaram logo?
EV: Não, fiquei 12 anos com ele. Morreu já. É pai da minha filha mais velha. O meu filho, que toca comigo, é do segundo casamento, Luiz Felipe. O pai do Luiz Felipe é músico, Ivanildo Marques, já morreu também. Não fui eu que matei eles [risos].
PAS: Você nunca parou de cantar no palco, ou teve fases de não fazer shows?
EV: Teve, sim. Fiquei um tempo sem cantar depois que saiu o LP. Aí foi quando comecei a cantar nas boates, porque me revoltei e falei: não, quero cantar. E comecei a cantar nos bares.
PAS: Seu LP é meio de MPB, né? Tem Djavan, Chico.
EV: Você vê, eu sempre gostei dos dois, samba-rock e outro tipo de música. Tanto que gravei “Segredo”, de Herivelto Martins.
PAS: Sucesso com Dalva de Oliveira.
PC: Você diz que “Dupla Traição” é uma das primeiras músicas que Djavan teve gravadas por outro intérprete?
EV: Eu gravei primeiro “Dupla Traição” [a canção surgiu em 1976, um ano antes da versão de Elizabeth, na voz de Nana Caymmi].
PAS: Como chegou até você essa música?
EV: Foi Djavan que me deu. Não me lembro bem, faz tantos anos, 50 e cacetada.
PAS: Ele também cantava na noite.
EV: Cantava, né? Acho que sim. Não me lembro direito desse encontro, mas foi ele que me deu “Dupla Traição”.
PAS: Foi você mesma que selecionou o repertório do LP? Como foi escolhido?
EV: Fui eu, fui eu que escolhi.
PAS: Não foi o dono da gravadora, não?
EV: Não, nesse gravei Nelson Cavaquinho, Gilson de Souza, tem de tudo um pouco. Também cantei “Lama”, precisava por uma música da Clara Nunes no repertório. As pessoas pedem, e eu gosto do som dela.
PAS: Hoje existe uma interpretação de que um artista negro que não quisesse cantar samba, só samba, era meio combatido em épocas anteriores. Pela vontade das gravadoras, se você era negra, você cantava samba. Você sentiu isso com você em algum momento?
EV: Não. Não me lembro disso de ter acontecido isso, comigo, não.
PAS: Esse não poderia até ser um dos motivos de você não ter tido uma carreira mais ancorada nos discos? Que as gravadoras não se interessavam tanto, por não cantar só samba?
EV: Pode ser, né? Não sei.
PAS: Você ajudou a inventar um estilo que não é totalmente consolidado, não é igual falar de bossa nova, MPB. Minha teoria é que samba-rock é um som mestiço, de quem tem origens pretas e brancas. Tem gente branca na sua família?
EV: Tem, a minha mãe. Sou misturada. Até meu avô é índio, sei lá, tem uma mistura grande. E papai é negro. Meu avô paterno era bem pretinho.
PAS: De onde eram seus pais?
EV: Mineiros. Papai é mineiro que não perde o trem nem a hora. Mora em São Paulo. Já está meio senil, 92 anos. Ai, credo, não quero chegar a isso, não.
PAS: Você está com quantos anos?
EV: Avenida São João. Com Ipiranga [risos].
PAS: Vou pesquisar que ano essas avenidas nasceram.
EC: Eu tenho 73. Vou fazer 74 em dezembro, dia 17 de dezembro. Hoje tenho 37, no final do ano eu vou fazer 47, está bom? Ai, meu Deus do céu. Ah, eu me sinto jovem, sabia? Quando entro no palco, tudo se transforma. É muito legal. É engraçado, menino, porque cantar em casa nem consigo direito. Mas chega no palco, a voz aparece.
PAS: Você disse que chegou a fazer aula de canto, diria que aprendeu a cantar na escola ou aprendeu sozinha?
EV: Acho que aprendi sozinha, porque tive uma outra professora de canto, Madalena de Paula, que era muito famosa. Madalena tinha uma técnica, eu ficava fazendo o tempo todo, e minha voz começou a ficar colocada. Fui gravar esse “Primeiro Vento” [mostra o compacto com a canção de Eduardo Gudin, mais uma das muitas indisponíveis na internet, com bela foto sua na capa]. Você viu como eu era bonitinha? Meu Deus do céu, fiquei horas no estúdio, não saía, a voz ficava colocada. Até que parei, não fui mais. Então acho que foi sozinha mesmo. Coisa de Deus, né?
PAS: Coisa da ancestralidade africana também, não acha?
EV: É, né? Papai tocava acordeon, teve um trio. Meu avô tocava aquela sanfona oito baixos.
PAS: Eles tocavam forró?
EV: Não, pelo que me lembro vovô tocava “jacaré comprou cadeira, não tem bunda pra sentar” [risos]. Meu pai tocava aquelas músicas de sanfona, não lembro direito. Quando eu era menina, era ele que escolhia meu repertório. Eu tinha que cantar o que ele queria. Até que um dia eu me revoltei, falei “não vou cantar, eu quero cantar essa”.
PAS: Era ele que escolhia o repertório dos discos compactos?
EV: Não. Aí eu já tinha tomado. Mas enquanto era pequenininha e estava cantando nos programas infantis, era ele que escolhia. Ele trazia um senhor na minha casa para eu ensaiar, que tristeza, meu Deus, o cara com violino. Colocava o microfone no violino e eu tinha que encostar nas minhas cordas e ficava ensaiando, eu queria morrer. Nossa, era triste. Tadinho do seu Viana, eu devo muito a ele, sabia? Se não fosse ele, com a minha esperteza, eu jamais teria conseguido nada. Lembro que uma vez ele me trouxe para São Paulo, para fazer o Clube do Papai Noel. Chegou no ensaio, chamou o produtor, “minha filha vai cantar aí, o senhor tem que ouvir ela cantar, ela canta”. Ele encheu tanto que o homem falou: “Está bom então”. Estava Zita Martins sentada no piano, ela mal olhou para mim. Aí comecei a cantar, acho que era “O Jornaleiro”. Silêncio no estúdio. Porque era uma menininha-prodígio, viu? Cantava, tinha um agudinho que hoje não tenho mais. Entrei no programa, desbanquei a menina que era rainha [ri].
PAS: Essa menina tem nome?
EV: Ah, não lembro. Você sabe que encontrei ela, uma vez fui ver minha tia que tava doente no hospital, e ela era enfermeira. Só que não gravei o nome. Ela falou: “Eu me lembro de você, Elizabeth [ri]. Você me desbancou lá do programa”.
PC: Você falou que essa professora dava aula praa outras cantoras que também cantavam em TV?
EV: Ah, sim. Para Eliana Estevão, que hoje está nos Estados Unidos. É uma amiga querida, que inclusive me ajudou muito a entrar na noite. Tinha muitas meninas na TV Tupi na época.
PAS: Com quem da música você teve amizade e se relacionou?
EV: Deixa eu lembrar. Mais era Márcia mesmo, e Eduardo Gudin, que ia muito em casa. Célia, Silvia Maria, a turminha que ficava na Tupi. Conheci todos os famosos, praticamente, na Casa Musical. Ficava toda deslumbrada no meio de toda aquela turma maravilhosa, Caetano, Gal. Gente, ficava que nem uma bobinha lá. Ai, que maravilha!
PAS: Você fala que seu pai tomava as decisões, mas atualmente Pedro me falou que a ideia do baile da melhor idade em São Roque foi sua, que foi você que emplacou. Como é essa história?
EV: É porque sempre cantei todo tipo de música, é um trabalho que eu gosto de fazer. Acho que dá, também já estou na terceira idade [ri], vou cantar com as coleguinhas, é uma coisa boa da gente fazer.
PAS: O apresentador falou que era a sétima edição, você criou isso lá no começo?
EV: É sétima edição deles, do baile. Quem deu a ideia fui eu, dei a ideia, mas não me chamaram, botaram outras pessoas. Agora eu trouxe o samba-rock.
PAS: Tinha amigas suas no público?
EV: Tinha, veio um pessoal de Ibiúna, teve o pessoal da hidroginástica que eu faço. Faço musculação e hidroginástica, talvez por isso o fôlego. Tem que fazer, senão começa a travar tudo, não dá.
PC: Mas disposição para palco Beth sempre teve, desde que a gente se conhece.
EV: Eu não consigo parar no palco.
PC: Beth é um exemplo. Ao longo desse tempo as oportunidades foram diminuindo, e Beth sempre fala das escolhas pessoais dela, mas não é só isso. Você também não pode se crucificar por causa disso, porque o contexto é excludente, não é inclusivo.
PAS: E é aí que faço essas perguntas de, por exemplo, haver um preconceito contra cantoras negras que não quisessem cantar só samba. Talvez você não tenha nem percebido, mas existia. Outra coisa é o racismo, isso você percebeu e sentiu?
EV: Não percebi.
PAS: Mas deve ter rolado.
EV: Que engraçado, nunca senti isso. Não sei se é porque eu não vi. Comigo nunca aconteceu nada que eu me lembre assim. Talvez também porque eu estava sempre com o cabelinho alisado, branquinha. Será?
PAS: Por que você alisava o cabelo?
EV: Ah, porque era a moda, todo mundo alisava. Meu cabelo é bem durinho, tem que dar um trato nele, se não…
PAS: Às vezes a gente nem nota o que está acontecendo, mas você estava tentando despistar, talvez? Não só você, mas se isso era a moda… Não estava na moda a pessoa preta ter o cabelo do jeito que ele é?
EV: Não. Sempre alisei nessa época. Na verdade assumi meu cabelo há pouco tempo.
PC: E é lindo.
EV: É lindo, verdade.
PAS: Hoje tem até um ventilador no palco para o cabelo ficar esvoaçante [risos].
EV: Não pensei nisso, não, é porque começo a transpirar e cai suor dentro do olho. Eu estava com uma toalhinha lá.
PAS: Você acha que lá nos anos 1960 e 1970 as pessos viam você como uma cantora negra ou branca?
EV: [Pausa.]
PAS: Você se via como o quê?
EV: Neguinha.
PAS: Mestiça?
EV: É. Sou parda, né? Ai, meu Deus do céu [ri].
PAS: É o que faz de você a rainha do samba-rock, não? Não ia ser uma loira que ia ser a rainha do samba-rock.
EV: É? Doris Monteiro gravou antes. Não sei quem é que me deu esse título, sinceramente.
PAS: Doris, que era branca, gravou samba-rock, mas não foi “a rainha do samba-rock”.
EV: Não sei quem me deu esse título, sinceramente. Eu preciso pegar essa coroa.
PAS: E você não sabe quando também, isso é tão importante… Quando o samba-rock passou a ser chamado de samba-rock?
EV: Quem poderá nos responder?
PC: Uma coisa que sei é a partir do pessoal que foi fazer o dia do samba-rock, Marco Mattoli e toda uma turma que criou, pela Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Eles consideram o início do samba-rock em 1985. Em vários momentos que a gente conversa, Beth se confunde um pouco em relação ao termo. Às vezes ela diz que chamavam de balanço, que era um samba suingado.
PAS: Também se falava em sambalanço.
PC: É. O que falam como data inicial é do primeiro disco do Branca di Neve. Depois de ter tocado com muitos artistas que estavam fazendo isso e de acompanhar os bailes, ele sacou que tinha como fazer uma música para baile, e daí essa ideia de dizer “eu vou fazer um samba-rock”. Até chegar nesse momento, eram essas fusões. Se for pegar um Jackson no Pandeiro, só não tinha o nome.
EV: E tinham os bailes.
PAS: Você tocava em bailes?
EV: Cheguei a ir, como que era o nome do DJ, meu Deus?
PAS: Você frequentava a Chic Show? [Beth cita o DJ paranaense Tony Hits, mas ninguém se lembra o nome de Luizão, idealizador da Chic Show.]
EV: Cheguei a ir uma vez, nossa, quase tive um treco.
PAS: No bom ou no mau sentido?
EV: No bom, menino, casa lotada, nossa, 3.000 neguinhos, sei lá.
PAS: Foi como público?
EV: Não, ele me chamou para me apresentar para o público. Ele lá na vitrola: “Vou chamar para vocês uma cantora que vocês gostam muito, Elizabeth Viana!”. Entrei, a negada toda assim, muda. Ele: “Querem ver?”. E soltou “Meu Guarda-Chuva”. Menino, lembro essa emoção até hoje. Eu chorei, quando tocou “Meu Guarda-Chuva” eles deram um pulo assim. Foi muito lindo, foi muito lindo. Aquilo eu nunca vou esquecer na minha vida, estava um pouco afastada da música nessa época, tinha sido mãe, estava cuidando. Porque eu também queria ter filho, casa, marido.
PAS: E na época em geral as mulheres tinham que escolher um ou outro.
EV: É, então parei muito, mas esse momento nunca vou esquecer. A hora que tocou foi uma gritaria.
PC: Que ano será que foi isso? Você já tinha filho?
EV: Já, tinha Camila. Ela nasceu em 1977. O samba-rock sempre esteve nesses bailinhos.
PAS: Só não sei se tinha esse nome ainda. Existe um livro de um gaúcho falando sobre o samba-rock no Rio Grande do Sul [Trata-se de Suingue, Samba-Rock e Balanço, de Mateus Berger Kuschick, 2013]. Existem uns samba-roqueiros gaúchos, como é que se explica isso?
EV: Luis Vagner.
PAS: Bedeu.
EV: Diz que era forte lá o samba-rock. Cheguei a cantar, a fazer show lá, na época do “Meu Guarda-Chuva”.
PAS: Ela não sabe, mas foi ela que levou o samba-rock para o Rio Grande do Sul [risos].
EV: Não, acho que não…
PAS: Luis Vagner era roqueiro de jovem guarda nessa época, ainda não fazia samba-rock, não.
EV: Será? Olha…
PAS: Pode ver que a galera que faz samba-rock é toda mestiça, Bebeto, Luis Vagner, Elizabeth Viana. Existe o dia do samba-rock? Qual é? Como definiram o dia?
PC: Existe em São Paulo. É dia 31 de agosto.
PAS: Você cantou bastante no Rio?
EV: Cantei.ra muito programa de televisão. Ai meu Deus, preciso anotar isso tudo que vou esquecer.
PC: Estamos fazendo isso justamente para isso.
PAS: Está ficando gravado.
EV: Pois é…
PAS: O mistério do samba-rock, quem vai explicar o samba-rock?
EV: Jorge Ben não explica?
PAS: Ele não gosta nem que usem esse título…
EV: É mesmo? Eu achava que tinha começado com ele.
PAS: Começou, mas a dúvida é se chamava samba-rock. O samba-rock é um som inspirado no Jorge Ben, mas não quer dizer que ele criou sabendo que estava criando e querendo criar. E aí parece que os paulistas pegam essa bandeira, tanto é que quem deu essa honraria foi a Assembleia de São Paulo. Os cariocas não usam tanto esse nome. Em algum momento você cantou na Globo?
EV: Cantei. Cantei naquele programa do Topo Gigio, lembra?, um ratinho que era um sucesso.
PAS: Quando digo que o samba-rock não é uma coisa tão consolidada, é porque a Globo é que manda, e a Globo é Rio, e no geral o Rio não parece levar muita fé nos cantores de samba que não são de lá, no que se encaixam você, Luis Vagner, Bebeto, Branca di Neve…
EV: E eu estava sempre lá. Será que foi esse programa que abriu as portas? Topo Gigio era famoso, cantei o “Guarda-Chuva”. Fizeram uma edição, eu cantava com um guarda-chuvinha rodando. Meu pai fez o guarda-chuva.
PAS: Existe esse vídeo?
EV: Eu queria achar, viu?, o Topo Gigio. No Rio cantei também no programa do Flávio Cavalcanti, A Grande Chance, no Rio.
PAS: Era no Rio, mas não era na Globo.
PC: Você cantou depois de já ter ganho, como cantora já estabelecida?
EV: Foi, eu ganhei aqui em São Paulo, Emílio Santiago ganhou no Rio. Então eles me levaram para o Rio para me apresentar lá. Flávio tinha o programa aqui em São Paulo e no Rio.
PAS: Emílio é outro que não era só cantor de samba, mas as gravadoras queriam sempre enquadrar ele no samba.
EV: É?
PAS: Acontecia com todos, Leny Andrade, Alaíde Costa, os cantores negros que não queriam fazer só samba. As portas da Globo não estavam muito abertas para vocês…
EV: Cantei na Globo lá no comecinho, bem no começo. Inclusive, perdi meu contrato com a Tupi por causa disso. Me convidaram, fui falar com o diretor da Tupi, ai, meu Deus, preciso lembrar o nome dele. Pedi para fazer esse programa que estava no auge, era muito sucesso. Ele falou: “Se você for, nós não vamos renovar com você”. Lembro que o cachê que eu ia ganhar na Globo era o triplo do que eu ganhava por mês da Tupi. É claro que fui, o programa estava com muito sucesso, né? Aí não renovaram na Tupi.
PAS: E a Globo também não seguiu chamando você?
EV: Não seguiu.
PAS: Aí é que está, você não era da patota de lá.
EV: É, né? Pode ser. Eu ficava toda semana no programa desse homem, meu Deus do céu, como era o nome? Era sucesso também. “Meu Guarda-Chuva” estava estourado no Rio. Tocava muito lá.
PAS: A música é a cara do Rio de Janeiro, como Jorge Ben também é.
EV: É, né? Acho estranho, porque era muito forte lá. Lembro que o divulgador me levava nos lugares e estava tocando samba-rock, e aqui em São Paulo quase nada. De repente parou lá, não tem mais isso lá.
PC: Você fazia Silvio Santos também, não?
EV: Ah, é, fazia muito Silvio Santos, o programa do Silvio que tinha aqueles três cantores, Qual É a Música?. Eu cantava toda semana.
PAS: Antes da sua geração, tem toda uma série de cantoras que eram negras, mas isso ficava meio despistado – Elizeth Cardoso, Angela Maria, Dolores Duran, Dalva de Oliveira…
EV: A Dalva era negra?
PAS: No mínimo mestiças, todas eram.
EV: Eram, né? Olha, eu, sinceramente, não tenho nada a dizer nesse sentido. Nunca senti nada. Não sei se não reparei. Sempre fui bem recebida nos lugares. Não sei. Pode ser, do jeito que eu era…
PAS: Você e todo mundo, porque esse assunto não era falado abertamente.
EV: Não, né?
PAS: Nenhuma dessas pautas comuns de hoje em dia, racismo, machismo, homofobia… Ficava debaixo dos panos, mas tinha.
EV: E agora você acha que melhorou?
PAS: Agora pelo menos a gente fala do assunto. Se eu viesse aqui 15 anos atrás, provavelmente não ia te fazer perguntas sobre isso, porque a gente nem pensava nesses assuntos. Estava sufocado, trancado no baú.
EV: E agora não pode nem falar que é pretinha… Mas não é muito exagero?
PAS: Os pretos é que decidem se é exagero ou não, né? Se você disser que é, é você quem manda.
EV: O que tem? Eu sou preta, e daí? Qual é o problema?
PAS: Se você tem orgulho de falar isso, você pode. O que não pode é um branco decidir por você ou falar isso para te depreciar.
EV: Se me chamar de preta, e daí? Eu sou preta. Eu tenho orgulho da minha cor. Eu gosto.
PAS: Você se parece com Elizeth Cardoso, até fisicamente.
EV: Todo mundo falava isso, que eu parecia com Elizeth.
PAS: O que foi a viagem para o Japão?
EV: Nós fomos em 24 brasileiros. Era um parque, um lugar de um japonês só, com hotel, parque, boate, e a casa dos brasileiros, onde ele recebia os brasileiros. De cantora era só eu, e tinha os batuqueiros. Eu cantava só com ritmo. A mulher que mandou o pessoal mandou o namorado dela para tocar. Você imagina, no dia seguinte ele falou: “Não vou tocar hoje, estou com o dedo todo inchado” [risos]. O cara não sabia tocar. Terrível. Fui para o Japão e para o Uruguai. Cantei no Festival de Piriápolis, no Uruguai. Estavam Toni Tornado, Antonio Marcos.
PC: Já vasculhei isso, tem registro do festival, mas não tem registro desse ano em que ela foi. Tem algumas coisas no acervo digitalizado da Biblioteca Nacional.
PAS: É difícil achar informações sobre Elizabeth Viana na internet.
PAS: Com Elza Soares você chegou a cruzar profissionalmente?
EV: Cheguei, a gente fez um programa juntas, acho que no Silvio Santos. Perguntei como ela mantinha aquela forma, ela falou: “Tomo café com leite, sem açúcar” [risos].
PAS: E Wilson Simonal?
EV: Fiz o programa dele uma vez.
PAS: Ele veio antes do samba-rock, mas o suingue tinha tudo a ver, não? A pilantragem é uma das origens do samba-rock.
EV: É, eu até gravei pilantragem, [cantarola “De Cigarro em Cigarro”, sucesso de 1953 na voz de Nora Ney] “vivo só sem você/ que não posso esquecer/ à espera de alguém/ e esse alguém não me quer”, tudo em ritmo. Aí emendava imitando Maysa [cantarola “Ouça”, 1957], “ouça, vá viver a sua vida com outro bem”, tudo em pilantragem, era legal. Era música antiga, e a gente transformou em pilantragem.
PAS: Sobre o show no Espaço Brasital, é bacana fazer um evento todo voltado para a terceira idade.
EV: Não é? E fui eu que dei a ideia. Cheguei a mandar o projeto para a primeira produtora, botaram muitas bandas, mas nunca me colocaram. Inclusive ela falou que eu era muito cara. Tá bom, muito cara. Como? Pagar músicos, tudo. Sem noção, ainda bem que foi embora.
PAS: E por que que o show rolou agora?
EV: Por causa do prefeito.
PAS: Agora ele viu que você tem potencial de atrair público… O salão é enorme.
EV: É, estava bonito, parabéns para nós. Também não achei que era tão grande, por isso que passei mal quando vi, meu Deus, socorro. Abri a boca, aquele eco, senhor do céu, que susto que levei. O cara falou que Toquinho esteve aqui, tinha não sei quantas mil pessoas e o som estava assim também. Aí, pronto, passei mal, fico muito ansiosa em cada vez que vou cantar. Parece que é sempre a primeira vez. Não tem como, não consigo ficar calma. Depois que eu entro aí vou, pisei no palco, já melhoro. Será que é espírito que baixa?
PC: A gente tinha um eco de três segundos. Se você bate uma palma, essa palma fica soando durante três segundos no espaço.
EV: É do próprio salão o eco. Nossa, não tem como tirar isso aí?
PC: Tem como tirar o evento de dentro do salão [risos].
EV: Credo. Tem outro espaço aqui em São Roque, no Recanto da Cascata, que é tipo um parque, ao ar livre. É uma concha, aí o som fica melhor.
PAS: Beth, você lançou só um álbum nesses anos todos. Chegou a preparar outras coisas que não saíram? Tem gravações inéditas?
EV: Estou com uma música inédita do Jorge, que ele mandou para mim através de um rapaz.
PAS: Isso é recente?
EV: Já faz anos, está guardado faz anos. Mas sei lá, não fez “pin!”, não. Gosto de cantar quando eu sinto, sabe? Tem que fazer “pin!”.
PAS: Por que ele te mandou?
EV: Porque esse produtor foi atrás dele lá e pediu uma música. Era amigo, na época era produtor do Luis Vagner. Pediu, ele mandou essa fita cassete, que deve estar por aí.
PC: Beth tinha amizade com Luis Vagner.
EV: Tinha, era meu irmão. Ele era maravilhoso, uma pena. [Pedro César toca no celular a gravação caseira da música inédita de Jorge Ben Jor, cantada por ele.]
EV: Pode ser, se der uma roupagem muito boa… Ele fala “Rose Boogie”.
PAS: Ah, não é ruim, não. É muito Jorge Ben, suingada [ela começa a cantar junto]. Muda para “Beth Boogie” [risos]…
PAS: Quantas pessoas devem ter uma inédita de Jorge Ben em casa?
EV: É bem ele, né?
PAS: As pessoas mudam, ele não vai fazer um “Meu Guarda-Chuva” mais.
EV: Não.
PC: [Muda a música.] Esta aqui é a fita do Luis Vagner para ela.
EV: Luis Vagner deixou uns sambas lindos, que eu queria gravar. [A voz do autor anuncia uma parceria com Bedeu e canta: “Elizabeth Viana, Elizabeth”.]
PAS: Percebi que dessa ela gosta mais [risos].
EV: Ele gravou com piano, com teclado, lá no hotel dele. Deve ter jeito de recuperar. Tem umas músicas inéditas dele, meu Deus, eu quero gravar, são tão lindas.
PAS: Você conviveu com o pessoal da jovem guarda?
EV: Convivi mais com Waldirene, que também era empresariada pelo Corumba.
PAS: Você começou o show cantanto “Coqueiro Verde”, de Roberto e Erasmo. Chegou a cantar no programa Jovem Guarda?
EV: Roberto acho que conheci no programa do Simonal que fui fazer. Eu estava no camarim, Roberto chegou com a turma dele. Era apaixonada por ele, nossa, quase tive um treco. Ele cumprimenou todo mundo, aí chegou em mim e falou: “Elizabeth Viana! Como é que é mesmo aquela tua música?” [cantarola a introdução de “Meu Guarda-Chuva”]. Diz que o segurança dele era apaixonado por mim, ficava tocando essa música o tempo todo. Roberto Carlos me conhecia? Quase desmaiei, imagina. Foi lindo. Diz que o segurança tinha um pôster meu na cabeceira da cama, acha?
PAS: O segurança devia gostar de samba-rock. E Erasmo Carlos?
EV: Erasmo não conheci. [Pedro toca um bolero inédito de Luis Vagner, na voz da própria Elizabeth.]
PAS: Ela gosta de um samba-canção também, de um bolerão. Além de Roberto Carlos, quem eram seus ídolos na música?
EV: Roberto Carlos [ri], Angela Maria, Elis Regina. Adorava Elis, nossa! Deixa eu pensar. Gilberto Gil, amo. Adorava o som que ele fazia, fazia o eletrônico com bateria ao vivo. sempre gostei disso também.
PAS: Jorge não precisamos citar…
EV: É, Jorge, Jorge Ben também…
PAS: Mas agora vi que não é uma fanática no Jorge Ben, consegue até não gostar de uma música dele.
EV: É [gargalha].
PAS: Justamente a que ganhou de presente.
PC: Você conta que quando ganhou o programa A Grande Chance Fernando Faro te perguntou o que você gostaria de cantar, e você falou Jorge Ben, ou foi Faro que sugeriu?
EV: É que eu adorava, era fanática pelo Jorge Ben. Falei com ele realmente, e aí ele falou com Jorge.
PC: Então foi uma iniciativa sua?
EV: É, porque, nossa, eu curtia demais o Jorge Ben na época.
PAS: Na verdade ela desvaloriza um pouco as próprias façanhas?
EV: [Ri.] É? Tá bom. Eu fiquei meio traumatizada, sabe? Paizinho, eu te amo, mas ele me tolhia muito. Eu ia dar entrevista e ele falava: “Você não fala nada, deixa que eu falo”.
PAS: Você não dava muita entrevista, então?
EV: Não. Tanto que para começar a falar demorou, eu tinha trauma, meu Deus do céu, e agora? Me dava branco. Ainda hoje tenho uns probleminhas com isso.
PAS: Desculpa estar aqui [risos].
EV: Não, ótimo, estou aprendendo, depois de velha [ri].
PAS: Se seu pai decidia tudo, pode ser que as coisas ruins ele tenha não tenha deixado chegar até você?
EV: Pode ser, porque ele era muito protetor. Tinha músico que falava: “Poxa, mas seu pai não larga você, não?”. Naquela época era normal, né? Eu era zerinho, zerinho, como dizia Mussum. No show que fazíamos no Rio, eu descia de um tobogã, e Mussum me recebia, segurava na minha mão e dizia: “Zerinho, zerinho!” [gargalha]. Figura, saudades dele.
PAS: O que você cantava nesse show? Era samba-rock, ou não necessariamente?
EV: Ah, eu cantava o “Guarda-Chuva”. Que mais? Acho que era samba-rock, “Guarda-Chuva”, “Se Você Quiser”, não sei direito se me lembro. Como vai saber isso?
PAS: Tinha uma parte que era só você, com Os Originais do Samba?
EV: É, com Os Originais. E na outra eram Márcia e Jair.
PAS: E vocês cantavam todos juntos?
EV: Não. Cada um fazia uma apresentação.
PAS: Deviam ser várias músicas, e ela esqueceu todas.
EV: Esqueci. Só lembro do “Guarda-Chuva”.
PC: Quando você foi gravar “Meu Guarda-chuva” Os Originais gravaram a base e você gravou a voz, ou foi com todo mundo junto ali?
EV: Gravamos a base, e depois eles fizeram o coral comigo.
PAS: Jorge Ben gravou também nessa música?
EV: Não, foi um outro guitarrista, que era muito bom.
PC: No “Sem Bronquear” também eram Os Originais?
EV: Eram, gravaram comigo.
PAS: Estavam lá inventando o samba-rock e não sabiam.
EV: Será, menino?
PC: Se for pensar, Beth gravou realmente poucas músicas, né?
PAS: São poucas e marcantes. Se fossem mais, seriam marcantes também, provavelmente.
PC: A gente conseguiu levantar os fonogramas que ela já gravou, a sequência dos compactos.
EV: Tem “Tataê”, do Gilson de Souza.
PAS: Que era um sambista.
EV: Era, fez “Poxa“, que canto em show.
PC: A versão de “O Sonho” do Egberto Gismonti é muito boa e não tem nada a ver com as outras.
PAS: Quem fez o arranjo?
EV: Luiz Arruda Paes. Foi ele que fez “Meu Guarda-Chuva”, “Se Você Quiser mas sem Bronquear”, “Segredo”.
PAS: Você mora em São Roque há quanto tempo?
EV: Fiquei uns cinco anos em Mairinque, que fica aqui perto, nesse sítio que falei. Depois vim pra cá. Meu filho está com 33, faz uns 20 e poucos anos que estou aqui. Encontrei meu lugar. Já voltei para São Paulo três vezes, mas não deu certo. Eu aqui respirei, sabe? É outra coisa, muito melhor. De trabalho é complicadinho. Depois que já estava morando aqui, trabalhei em São Paulo, numa firma americana de fazer bonecas e ursinhos, no Shopping Ibirapuera, uns anos atrás. Pegava o trem pra ir lá, não tinha carro, como eu sofria. Voltava todo dia. Mas era bem legal, a criança ia, escolhia o ursinho, que estava vazio. Aí tinha uma máquina que enchia o ursinho, a criança acompanhava, a gente cantava as musiquinhas, botava o coração no ursinho, roupinhas. Tinha de todo tipo de roupa para os ursos.
PC: Tipo um ursinho de pelúcia self-service?
EV: Nossa, tinha uma mulher que gastava R$ 1.000 num ursinho. Era só para milionário mesmo. Não deu certo. A firma faliu.
PC: Sempre nesse dilema, “sou artista, mas preciso de emprego”.
EV: Nem fale, viu? Isso foi uma vizinha minha que me chamou. Foi bom. Mas esse negócio do ônibus eu sofria, porque descia do trem, pegava ônibus para São Roque, chegava na cidade e não tinha ônibus para ir para minha casa. Muitas vezes tive que ir a pé, era bem longinho. Já passei por muitas. Tem aquela música do Gilberto Gil [canta “Extra II (O Rock do Segurança)”, de 1984], “um dia rico, um dia pobre, um dia no poder/ um dia chanceler, um dia sem comer”. Não, sem comer nunca fiquei, graças a Deus.
PAS: E ele, por outro lado, nunca saiu do poder.
EV: Não, né?
PC: Você se casou três vezes ou duas?
EV: Três. O primeiro ainda foi de papel, os outros só juntei. O primeiro deu 12 anos, o segundo, 12 anos e o terceiro, 5. Ó, tá vendo? Os três já morreram, não matei. O terceiro era bandeonista, abandonei, saí correndo, Deus me livre. Tinha transtorno bipolar. Minha vida dá um livro, hein? “Em Assis, eu fui feliz [risos].”
PAS: “Em São Roque, cantei samba-rock [risos].” Hoje em dia você não tem contato com Jorge Ben Jor?
EV: Jorge é todo cheio de coisa. Uma vez eu fui ver um show dele, aí o empresário, esse menino que trouxe a fita, falou: “Vamos lá no camarim, vou levar você para ver o Jorge”. Ele estava de costas assim, passando uns negócios, nem se virou. Ele não atende ninguém antes de entrar no show. Não falei com ele, e depois também não falei.
PAS: Sempre pensei que Jorge deu uma namoradinha em Bebete…
EV: Não, todo mundo acha isso, nunca.
PAS: Ela não vai confirmar nunca…
EV: Nunca. Os meninos brigam, inclusive, “ah, Jorge cantou você”. Nunca.
PAS: A esposa Domingas já existia?
EV: Já. Mas não, juro. Se tivesse alguma coisa eu falaria. Imagina, bobona, que é isso? Não. Ele não faz meu tipo. Não faz meu tipo.
PAS: É um tipão…
EV: Não, nem um pouco. Ele era mulherengo?
PAS: Olha isso, Bebete perguntando isso para nós! Bebete, vamos embora!
EV: Eu contei para você como foi, menino.
PAS: Você contou a história oficial [risos]. Eu só acredito um pouco porque você era bem novinha e tinha esse pai.
EV: É, é. Inclusive, acho que quando fui na casa dele, meu pai foi junto. Meu pai não desgrudava de mim. Inclusive a mulher dele estava lá. Ele morava no Ibirapuera.
PAS: A música não existia ainda?
EV: Não existia ainda. Ah, meu Deus! No Rio tinha um cantor fazendo sucesso, também disseram que a gente estava namorando. Imagina, eu nem nunca tinha chegado perto do homem.
PAS: Djavan?
EV: [Risos.]. Não. Paulo Diniz? Paulo Diniz, saiu até na revista Intervalo, foto minha e foto dele. Está vivo?
PAS: Não, morreu, faz pouco tempo. Paulo Diniz era muito bom. Você não cantou músicas dele?
EV: Não. Ele estava com sucesso na época e inventaram isso. Tem muita gente boa que não teve reconhecimento. É só para quem está na mídia, para quem tem grana, né? Tem que pagar ainda para cantar nos programas?
PAS: Olha, não sei. Eu apostaria que tem que pagar para as plataformas digitais.
EV: Os meus discos estão no Spotify, não vejo um tostão.
PC: Mas não foi você que colocou, nem a gravadora, né?
EV: Não fui eu que coloquei, nem a gravadora. Não está oficial.
PAS: Você nunca foi atrás das gravadoras para resolver isso?
EV: Fui, esse carrinho que eu tenho foi um dinheiro que consegui numa daquelas coletâneas que saíram, não lembro sei da Som Livre ou da BMG. As duas lançaram “Meu Guarda-Chuva”, aí entrei no discão. O advogado ganhou a causa, ganhei acho que R$ 28 mil. E no caso da outra coletânea não deu certo, por quê? Uma deu certo, a outra não. Do LP não tenho a master, José morreu.
PC: Já tentei ir atrás disso também. Falei até com aquele carinha que era um grande lojista ali perto de Osasco, Natalino. Foi ele que fez a prensagem independente. Mas ninguém sabe onde estão esses materiais originais.
EV: No “Pisou na Bola” Natalino me deu R$ 30. Encontrei Branca di Neve na Barra Funda, na escola de samba, contei isso, ele falou: “Beth, você está louca, isso vendeu para caramba, o que é isso?”. Ficou puto da vida.
PAS: A master do LP deve ter ficado com seu marido, que depois morreu, e aí?
EV: Não, acho que não, porque ele era sócio de um argentino, e o cara foi embora para a Argentina. Morris era o nome do cara, não sei o sobrenome. Pode ser que esteja com ele, né? Mas como saber? Vai saber se está vivo também. Deve ter o nome dele na capa do disco, porque era sócio.
PAS: Os compactos todos da RCA podiam ser reunidos num álbum. Esse acervo hoje pertence à Sony Music, tem alguém lá que é o responsável por isso.
PC: É, mas tem que chegar com advogado mesmo. De alguma forma, dá pra tentar subir as músicas de um jeito um pouco mais profissional, digitalizar tudo numa qualidade boa. Dá para gerar o fonograma a partir das informações que existem, dar os créditos direitinho para os autores. Só que isso vai subir sem autorização, e eles podem dar o take down.
EV: [Em meio almoço servido por Beth, o assunto já está disperso, ela volta a comentar o show da noite anterior no Espaço Cultural Brasital.] E aquela mulher querendo cantar comigo? Me deu uma dura depois, “sou cantora, já fui miss São Roque”. Eu falei: “Ai, que legal” [risos]. Devia ter uns 80 anos, queria cantar comigo, como é que eu vou deixar alguém que não conheço cantar comigo? Não vai dar. Ela ficou brava, “por que você não deixou eu cantar com você?”. Ai, meu Deus, que horror. Mas era uma senhorinha, será que vou ficar assim também? Podem pedir música, se eu souber canto, se não souber não vou cantar. Sabe o que me deixava irritada nesta cidade? Convidam você para um churrasco na casa de um amigo, quando chega lá está todo mundo esperando você para cantar.
PAS: Você está morrendo de fome e tem que cantar?
EV: E tem um carinha que mal sabe tocar o violão e está lá para me acompanhar. Uma vez falei: não, não vou cantar. Não cantei, aí disseram que eu era banqueira, que estava botando banca. Pelo amor de Deus, não entendem. Acham que cantar é assim, que é fácil cantar. Não valorizam, acham que cantar é fácil, que qualquer um pode cantar, infelizmente. Tem uns bêbados chatos…
PAS: Vocês têm que ter um jogo de cintura que não é pouca coisa, não.
EV: Essa velhinha saiu com raiva porque não deixei ela cantar. A moça que estava com ela viu, puxou ela para ir embora. [Assuntos à deriva, Beth elogia dois artistas cariocas, Luiz Melodia, de que ela costuma cantar “Pérola Negra”, e Geovana, compositora e cantora suingada de samba.] Geovana estava trabalhando de cuidadora. Tadinha, ela tem umas músicas legais. Penso às vezes em pegar umas músicas dela, [cantarola “Quem Tem Carinho Me Leva”, de 1975] “gosto de fazer amor/ quem tem carinho me leva”. Eu tinha até o telefone dela. Ela me deu quando fizemos juntas uma entrevista para um filme.
PC: E Itamar Assumpção, você conheceu?
EV: Conheci, mas en passant, bem de leve. Acho que conheci ele na casa do Corumba. “Nego Dito” é legal, hein? Tenho um videozinho cantando “Nego Dito”, a irmã dele [a atriz e cantora Denise Assunção, que morreu neste ano] me escreveu para agradecer. Você precisava cantar essa junto comigo, Pedrinho.
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