Os “Retratos Fantasmas” (e afetivos) do Recife de Kleber Mendonça

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Imagem de foliões de carnaval para o cartaz de "Retratos Fantasmas", filme de Kleber Mendonça Filho
Imagem de foliões de carnaval para o cartaz de "Retratos Fantasmas", filme de Kleber Mendonça Filho - Foto: Divulgação

Cineasta recorre a filmagens feitas por ele há 30 anos para contar abandono dos cinemas de rua da capital pernambucana; produção foi pré-selecionada pelo Brasil para tentar concorrer ao Oscar 2024 na categoria de Melhor Filme Internacional

Em muitos casos, um filme começa a ser gestado muito tempo antes de ser propriamente planejado. Há um processo não controlado de amadurecimento da ideia. Um tempo para que ela faça sentido e possa ser devidamente explorada até chegar na telona.

Foi assim com Retratos Fantasmas (2023), longa-metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, que entrou no circuito comercial das salas de cinema do país em 24 de agosto e 2 de novembro na plataforma Netflix.

Esse tempo de maturação durou 30 anos até que Kleber conseguisse construir sua jornada afetiva sobre o Recife, passando pelo amor à mãe e historiadora Joselice Jucá e ao cinema a partir de um baú de recordações filmadas por ele mesmo desde a juventude.

Na primeira parte do filme, o personagem principal é o apartamento no bairro de Setúbal, zona sul do Recife, em que o diretor viveu a partir de 1979 com a mãe e o irmão, e onde ele filmou seus primeiros curtas e o premiado longa O Som ao Redor (2012).

A passagem do tempo vai das imagens de infância e da mãe, às filmagens em VHS de encontros com os amigos e das primeiras produções cinematográficas caseiras, inicialmente amadoras e, depois, profissionais. No meio disso tudo, as inúmeras reformas do próprio apartamento.

A montagem de Retratos Fantasmas brinca com a linha do tempo, o passado e o presente, entrecortados. O mesmo acontece entre a realidade e a ficção: as imagens do cotidiano do apartamento em família e as imagens roteirizadas e encenadas para os filmes.

Passam pelos mesmos cômodos, o Kleber estudante universitário no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 e a atriz Maeve Jinkings interpretando Bia em O Som ao Redor mais de 20 anos depois. O texto em off, na voz do próprio diretor, vai costurando a narrativa.

Marca do cinema de Kleber, os impactos do tempo sobre a cidade – aqui representada pelo abandono da casa vizinha tomada pelos cupins, como em Aquarius (2016) – estão presentes nessa primeira parte também no horizonte visto da sacada sendo tomado gradualmente pelos arranha-céus.

Na segunda parte do filme, Kleber sai da sala de casa para as salas dos cinemas de rua do Recife. Não para o seu auge entre os anos 1950 e 1970, mas para o período de decadência nos finais dos anos 1980 e começo da década de 1990.

É quando entram em cena as imagens dos cinemas Trianon e Art Palácio, no centro do Recife, às vésperas do seu fechamento, quando o próprio Kleber filmou os últimos dias das salas para trabalhos documentais do curso de cinema na UFPE.

As pontes do Centro do Recife, sobre o Rio Capibaribe, são uma paisagem recorrente. A Ponte Duarte Coelho que separa de um lado o Trianon e o Art Palácio e, do outro, o Cinema São Luiz (ainda hoje em atividade), é um personagem à parte. Por onde desfilam Janet Leigh e Tony Curtis, em imagens captadas numa visita ao Recife nos 1960.

A Ponte da Boa Vista aparece com o ator Antonio Cadengue vestido de vampiro em cena do filme Noturno em (Ré)cife Maior (1981), de Jomard Muniz de Britto.

De novo, passado e presente se confundem. Agora, na cena filmada do alto de uma performance dos Guerreiros do Passo durante a prévia de Carnaval do bloco Escuta Levino, em 2022. Numa avenida lotada do Centro do Recife, os passistas revivem o cenário da festa nas primeiras décadas do século 20, que ganham ainda mais realismo em preto e branco, marcando a alegria violenta do frevo de rua, filho legítimo da capoeira.

Nessa segunda parte de Retratos Fantasmas, a câmera de Kleber e de outros cineastas pernambucanos homenageados e citados passeiam pelas ruas da cidade e pelos letreiros expostos por décadas nas sacadas externas dos cinemas com os nomes dos filmes em exibição no São Luiz, no Moderno, no Veneza…

O público tomando as calçadas e ganhando as ruas após as exibições. Mais do que parte da paisagem, os cinemas de rua mobilizavam o fluxo de pessoas e as rotinas do centro do Recife e de muitas outras capitais do país.

Personagem central dessa segunda parte do filme de Kleber é o último projecionista do Trianon, Seu Alexandre (Moura), filmado e entrevistado pelo diretor nos dias finais de funcionamento do cinema. Uma outra voz que entra em cena, para além do off do autor, e dá em seus depoimentos a dimensão do tanto que se perdeu com a morte dos cinemas de rua.

Na última parte do filme, o longa vira um curta, do documentário vamos para a ficção. E a voz em off se materializa na aparição de Kleber, no papel dele mesmo, contracenando com o ator Rubens Santos, que faz um motorista.

Passageiro no Uber, o diretor passeia de carro pelas ruas noturnas do Recife de hoje, de poucos cinemas e muitas farmácias.

Um final em primeira pessoa

Me permitam, caro leitor e cara leitora, assim como Kleber fez no seu filme, participar em primeira pessoa das últimas linhas desse texto. Jornalista e autor dessa resenha, assisti Retratos Fantasmas na sessão de pré-estreia, no dia 19 de agosto, de um Cine Brasília lotado (sim, existe um cinema de rua, ou melhor, de quadra, em Brasília, digno de receber Fantasmas).

Recifense como o diretor, e na faixa dos 50, revi na telona muitas das salas de cinema que eu mesmo frequentei nos anos 1980 e 1990. Nelas vi todos Os Trapalhões, ET, Guerra nas Estrelas, Gandhi, e também os filmes de Hitchcock, Woody Allen, Bertolucci…

Mas não é preciso ser do Recife para sentir-se próximo do que Kleber nos apresenta. O que se passou na capital pernambucana também foi vivido em praticamente todas as capitais do país e grandes cidades do mundo. O próprio Kleber já disse que espectadores do filme em Cannes, na França, se identificaram com esse Recife que só conhecem pelo cinema.

Retratos Fantasmas não é um filme saudosista. Ele visita o passado para dialogar com o tempo presente. Trata da cidade, como o apartamento da infância do diretor, que se transforma permanentemente, portanto, ainda uma obra em movimento. Ao mesmo tempo memória e possibilidade.

Mais do que um filme de roteiro, é um filme de montagem. Dá a impressão de que foi sendo estruturado, em colagens de imagens, aos poucos. A partir dos arquivos físicos e da memória afetiva do próprio autor.

É por isso mesmo que talvez os analistas mais experimentados – ou mau humorados – possam questionar o ritmo ou a estrutura de Retratos Fantasmas, mas o filme merece ser visto não só pelo documento histórico que se constitui, mas pelas reflexões que desperta sobre o direito à cidade e o acesso à cultura.

E o faz de uma perspectiva fácil de engajar a muitos de nós na medida em que também possamos recorrer a nossas próprias memórias afetivas e nossos arquivos de imagens para levar às telas outras tantas histórias que precisam ser contadas.

* Resenha produzida para o Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP)

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