Em junho de 2013, o ex-técnico da CIA Edward Snowden viaja de Hong Kong para Rússia, numa tentativa de se livrar do cerco norte-americano: ao vazar informações sigilosas de segurança dos Estados Unidos, ele passou a ser tratado como um espião. Três anos depois, o dramaturgo inglês Mike Bartlett (autor de Cock e Love, Love, Love) escreve Selvagem, peça inspirada no personagem Snowden e, particularmente, no limbo que se tornou essa ida dele junto aos arqui-inimigos russos, quando o mundo não sabia se o denunciante era um herói ou um vilão. Vinte anos depois do megavazamento, Selvagem entra em cartaz em São Paulo, numa montagem tropicalizada e com jeito de “déjà-vu”.
Na trama, o ator Ricardo Henrique interpreta Snowden, enquanto Erika Puga e Rodrigo Bolzan são dois personagens anônimos e desconhecidos até mesmo pelo protagonista, que parece estar preso em um lugar desconhecido. Embora solícitos, aparentemente querendo ajudar o denunciante, os papéis de Erika e Rodrigo servem com uma forma de por em dúvida os limites do controle e da manipulação. Em diálogos cifrados, embora precisos, não se saberá a quem eles servem, nem se poderão ajudar o protagonista a sair daquele estado de isolamento forçado.
Quando Snowden denunciou ao mundo um grande esquema de espionagem mundial via Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), a população mundial acreditava que ainda gozava de alguma privacidade – a despeito de as redes sociais já fazer parte da vida de milhões. Em 2016, quando Bartlett escreveu a peça, ele estava preocupado com uma questão nevrálgica: em quem devemos ou podemos confiar? A crise de credibilidade já se fazia presente, e as dúvidas eram muitas: acreditar nas instituições, nas nações, nos bancos, na religião, em quem, afinal? Mas agora, em 2023, o mundo dá sinais de que essa deixou de ser uma questão central. Expor é a moeda corrente nas redes sociais.
Selvagem, em cartaz no Sesc Ipiranga, traz de volta essas discussões, repaginada com um texto mais conectado com os tempos presentes. O humor inglês cede lugar a um tom mais cômico, abrasileirado quando pode. Dirigida por Susana Ribeiro e idealizada pela DeSúbito Cia e Ventania Cultural, a peça apresenta um texto até então inédito de Bartlett no Brasil, mas já atropelado pela velocidade dos tempos atuais.