“Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria/Que o mundo masculino tudo me daria/Do que eu quisesse ter”. E lembro perfeitamente que as primeiras mulheres que jogaram sob sete palmos de terra aquelas minhas epidérmicas convicções adolescentes (que Gilberto Gil tão magistralmente registrou na sua super-canção) apareceram na universidade e foram duas: a professora Linda Bulik e a diretora de teatro Nitis Jacon. Ao conhecê-las, especialmente Nitis, que me foi mais próxima, tudo desabaria: elas eram mais inteligentes, mais bem-informadas, mais bem preparadas para o debate cotidiano, mais conscientes das necessidades do futuro, mais sensíveis e generosas do que eu jamais poderia ser.

Além de intelectual brilhante, Nitis Jacon de Araujo Moreira, que morreu nesta terça-feira, 19, em Arapongas (PR), aos 88 anos, brandia à frente de sua ação um compromisso com a mudança social, a elevação cultural, o empoderamento do corpo, a revolução permanente. Ao inventar o Festival Internacional de Teatro de Londrina (o Filo), um dos mais longevos e importantes do País (seu embrião é de 1968), pó de pirlimpimpim derramado sobre sua agricultável província paranaense, ela inverteu totalmente os axiomas do êxito e da necessidade. Tratou de nivelar por cima, nada de subestimar os espectadores, os leitores, os receptáculos humanos sem os quais a arte não se realiza.

Pelas mãos de Nitis Jacon, o público dos interiores travou contato com o butô fundamental de Kazuo Ohno (mestre japonês que abraçou árvores no calçadão de Londrina), com o brutalismo do grupo catalão La Fura Dels Baus, com o teatro antropológico do Odin Teatret da Noruega, entre centenas de outros atos cênicos de total radicalidade, de zero concessão ao senso comum. O resultado: teatros lotados, novos grupos nascendo o tempo todo, meninos do Jardim do Sol largando o punk rock e virando dramaturgos, outros deixando Cornélio Procópio para trás para reinventar o Rio de Janeiro. Nitis sambou em cima dos algoritmos de massificação, de viralização, de disseminação de influências.

Sua ação artística teve um impacto político colossal, análogo ao que Zé Celso Martinez Corrêa operou em São Paulo com o Oficina (em termos comportamentais) e ao que Ruth Escobar impôs também em São Paulo (no sentido de intercâmbios culturais). Sua companhia teatral era uma zona franca para as liberdades, das políticas às sexuais. O destemor com o qual liderou atos de enfrentamento do status quo chegou próximo do heroísmo. Por muito tempo, ela colocou Londrina no centro das atenções do mundo, cumprindo a utopia de derrotar a província na própria província.

Em 1979, o Grupo Proteu, criado por Nitis, realizou em Londrina a primeira montagem brasileira do espetáculo Calabar, o elogio da traição, que encerraria o festival no Teatro Ouro Verde. A peça tivera sua divulgação pelos meios de comunicação proibida, mas, apesar da falta de anúncios, o teatro ficou lotado, o que levou a repressão política a baixar no local para averiguar se estavam desobedecendo as determinações da Censura. Com o público assustado dentro do teatro, Nitis foi à polícia política explicar que não houvera quebra das proibições, a afluência de pública fora espontânea e a peça estava sendo exibida a portas fechadas. Em 1981, encenou O Quintal, de João das Neves, logo após sua proibição pela ditadura na Feira Brasileira de Opinião.

Nitis me permitiu entrevistar o dramaturgo italiano Eugenio Barba no Aeroporto de Londrina. Atuava na linguagem e também na comunicação, promovendo a região Norte do Paraná, levando trupes insondáveis do teatro mundial a estâncias termais da vizinhança. Os amigos que se engajavam na sua companhia reapareciam com o sorriso da liberação, do destravamento, e uma vez nós lotamos as primeiras filas do teatro para acompanhar uma amiga emancipada na prodigiosa Bodas de Café, que reuniu 29 atores para recontar uma saga de colonização.

A última vez que encontrei Nitis foi ainda na direção do FILO, em seu bunker no Edifício Julio Fuganti, no centro de Londrina. Ela sabia que eu tinha sido ungido por aquele tipo de ascensão provisória e ganhara um posto num jornal de metrópole, e foi uma pacientíssima anfitriã, embora ali já estivesse passando o bastão do festival para o filho, Fernando. Se eu escrevesse que morreu uma “grande dama do teatro”, estaria cometendo uma heresia. Nitis Jacon nunca foi uma “dama”, foi uma guerreira do teatro.

De família de poucas posses, Nitis Jacon de Araújo Moreira nasceu em 1935, na cidade de Lençóis Paulista, em São Paulo. Na infância e adolescência, trabalhou na limpeza do colégio onde estudava para ajudar a custear seus estudos. Cedo se mudou para Curitiba, onde cursou o ginásio no Colégio Estadual do Paraná. Em Londrina, quando foi criada a universidade estadual, foi convidada pelo reitor para dirigir o Setor de Cultura. Tornou-se funcionária e passou a estimular a organização do movimento teatral na cidade, criando o curso de Artes Cênicas, e seu grupo passou a cumprir também uma agenda nacional. Casou-se com o médico Abelardo Araújo, militante de esquerda que foi perseguido, preso e processado pela ditadura. Exilado, Abelardo levou Nitis e seus três filhos para Londres, onde viveram durante dois anos. Ao regressarem, Abelardo foi preso, e Nitis retornou à universidade. Foi quando começou a trazer ao Brasil, ao improvável Norte do Paraná, grupos de outros países que também sofriam restrições por conta de suas posições políticas. O pequeno festival universitário tornava-se o Festival Latino-Americano de Teatro. Claro, também a acusaram de centralizadora, como a Antunes Filho, talvez um efeito colateral típico desse duplo papel entre Dioniso e a malha burocrática do mundo real.

“Chegamos até o México com a peça ZY DRina, de autoria minha, que ganhou diversos prêmios. Fomos até à África e alguns lugares da Europa. A partir daí, o Festival tornou-se Festival Internacional de Londrina (FILO), como é conhecido atualmente”. Isso foi em 1988. Nitis também enveredou pela carreira docente, e foi vice-reitora da Universidade Estadual de Londrina entre 1994 e 1998. Em 2002, assumiu a direção do Teatro Guaíra, de Curitiba, a convite do então governador Roberto Requião. Nesse meio tempo, achou energia para voltar a cursar Medicina, curso que tinha abandonado na juventude. Formada, começou a trabalhar em um hospital psiquiátrico e passou a se dedicar com mais assiduidade à medicina psiquiátrica. Em 2010, lançou o livro Memória e Recordação – Festival Internacional de Londrina – 40 anos, sobre sua aventura de pioneira no teatro.

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