Condômino da Colónia da Rabicha, em Lisboa, tenta lembrar em qual bloco mora para tirar uma soneca

Nós gatos já nascemos pobres. Porém, já nascemos livres.

Em Lisboa, Portugal, a prefeitura da cidade levou bastante a sério a canção de Chico Buarque de Os Saltimbancos, de 1977.

Em um estacionamento com pomar na nostálgica vizinhança na Rua de Campolide, no bairro homônimo de Lisboa, havia uma confluência muito grande de gatos de rua, bastante maior do que a que habita as desconfiadas arquibancadas da Vila Belmiro, em Santos (SP). A comunidade cuidava como podia dos felinos, mas havia um descontrole e também perigo – no inverno, vivendo ao relento, para não morrerem de frio, diversos gatos se enfiavam nos motores quentes dos carros que, quando ligados, podiam lhes ser fatais. A reprodução desenfreada também fazia aumentar para além da atenção possível o povoamento de gatos.

Juntas, comunidade e prefeitura criaram então o programa CED (Capturar-Esterilizar-Devolver). O habitat escolhido pelos felinos foi batizado como Colónia da Rabicha. Sim, os gatos vadios também têm o direito de viver vadiamente felizes (e não serem obrigados a atacar o Fernando Gabeira ao vivo na vã tentativa de livrá-lo de seu cativeiro de plantões acerca da delinquência política na TV). As moradias da gatolândia passaram a ser objeto de estudo de especialistas e dois tipos de casinhas foram desenvolvidas para o local – a colônia de gatos tem a proteção legal da Câmara Municipal de Lisboa e um dos abrigos projetados venceu um prêmio do Orçamento Participativo da cidade. Em vez de carrocinha, condomínio. Em vez de virar sabão (são apenas marcados por um pequeno corte na orelha esquerda, para monitoramento), uma nova vida de proprietários sem hipoteca.

Há um programa de alimentação regular e balanceada da gataiada mantido pela comunidade. “Por favor, não alimente os gatos com restos de comida nem deixe resíduos neste local”, diz um aviso da prefeitura em um dos abrigos-modelo. Recomendam apenas trocar a água pura dos potinhos. Os gatos gostam de visitas, mas não de chamego demasiado. Têm sua própria agenda pessoal e não parecem querer fazer o papel de fofoletes de ocasião.

O nome rabicha poderia ter se derivado da presença dos gatos ali, mas é mais ou menos como saber o que veio primeiro: o ovo ou a galinha. O bairro onde vivem já tinha esse apelido no século 19, antes mesmo de ser rebatizado como Campolide. O Túnel da Rabicha, hoje chamado de Rossio, foi iniciado em 1887. “Rabicha” é porque a Quinta que ali havia tinha a forma de um rabo de animal.

É claro que a iniciativa pode provocar um debate: mas não seria melhor recolher os gatos e dar-lhes um humano de estimação para cada? Eles poderiam dar um destino melhor aos donos. O problema é que as questões relativas aos problemas dos animais de rua (assim como o das pessoas em situação de rua) são tão controversas que suas soluções são alongadas ad eternum. A Colónia da Rabicha é charmosa exatamente porque não parece querer definir uma solução perene e irrefutável. Não sei por que razão, mas a descoberta por acaso da Rabicha me conectou imediata e diretamente ao novo e inédito poema de Fernando Pessoa descoberto pelo seu biógrafo, Ricardo Zenith, e divulgado em junho pela revista literária Lote, em Lisboa. O poema foi rascunhado nas costas de um texto do heterônimo Álvaro de Campos. Zenith anotou que o esquema métrico e de rimas do poema – rima no primeiro, segundo e quarto versos – o caracterizam como um ruba’iyat (plural de ruba’i) que Fernando Pessoa escreveu ao estilo do poeta e cientista persa Omar Khayyam, do século 11:

A ave canta livre onde está presa

O servo dorme e o sonho lhe é surpresa

Liberta-te, mas nega a liberdade

Poder e não querer, eis a grandeza

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