O diretor paraibano-pernambucano Paulo Caldas engendrou um modo superlativo de empreender uma viagem de volta ao Nordeste natal, pelas asas do cinema. Para realizar o documentário O Circo Chegou, caiu na estrada com uma trupe circense na rota Sudeste-Nordeste, rasgando o Brasil de São Paulo até Alagoas. A motivação parte de José Wilson Moreira Leite, dono do Circo Spadoni e fundador do Circo Escola Picadeiro (atualmente instalado em Osasco), onde se formaram e/ou desenvolveram companhias como Nau de Ícaros, Parlapatões, La Mínima e Acrobáticos Fratelli.

O Circo Spadoni atravessa o Brasil em “O Circo Voltou”

Natural de Major Isidoro, em Alagoas, Zé Wilson empreende o retorno à cidade batizada com o nome de seu bisavô materno, para apresentar o Spadoni na cidade natal pela primeira vez. A caravana segue pelas estradas simbolicamente interrompidas da ponte Sul/Sudeste-Norte/Nordeste, em caminhões, trailers e unidades de filmagem (essas últimas ocultas atrás das câmeras). Náufrago no apocalipse que se introjetará no metaverso, o circo mostra fibra de sobrevivente, acampando lá e cá, montando lona, às vezes nem isso, enquanto a equipe de cinema cinema se ancora (segundo informam os letreiros do final) em hotéis de Três Corações, Mariana, Conselheiro Lafaiete, Itaobim (Minas Gerais), Vitória da Conquista, Jequié, Feira de Santana, Paulo Afonso (Bahia), Piranhas, Arapiraca (Alagoas).

Em cidades pequenas, comunidades quilombolas e aldeias indígenas, a lona não chega a subir, e a trupe familiar faz apresentações ao ar livre, que a câmera acompanha com paixão. Ergue-se, implícito, o parentesco cigano desencontrado entre o Spadoni, o Quilombo Vila Santa Efigênia (em Furquim, Minas Gerais), a Comunidade Quilombola de Cinzento (Planalto, Bahia), a Aldeia Fazenda Canto Povo Xukuru-Kariri (Palmeira dos Índios, Alagoas). Entretenimento e ética comunitária se entrelaçam em encontros complexos de identidades, profissões e populações marginalizadas.

Zé Wilson (à esq.) entre os Xukuru-Kariri

Pedro, filho menino de Zé Wilson e da trapezista-bailarina-mágica-Mulher Maravilha Alessandra Leite, faz a narração do filme e desenvolve trabalho infantil-familiar como o palhaço Perereca, enquanto os adultos se dividem entre motoristas e malabaristas, heróis do globo da morte e montadores de picadeiro. Em cenas consecutivas de O Circo Voltou, Caldas mostra o trabalho pesado na subida da lona, inclusive com engajamento feminino, e o choro de Zé Wilson, um “emotivo” declarado. Tudo fulgura demasiadamente humano, mas nos detalhes as relações entre os sexos e entre velhos, jovens e crianças não se parecem com as estabelecidas pelos cidadãos urbanos não-nômades. “Tem dias que a gente não aguenta a cara do outro, mas tudo bem”, graceja uma artista-trabalhadora circense. Zé Wilson conta como foi educado pelo professor Clemente, que viajava junto com o circo. “O circo é parecido com a luta indígena”, observa um indígena Xucuru-Kariri, dando dimensão tanto da parecença quanto do estranhamento.

Alessandra, Zé Wilson e Pedro à margem do rio São Francisco

Em cena de grande lirismo, Zé Wilson, Alessandra e Pedro banham os pés no rio São Francisco e atiram flores de homenagem às águas que levaram Domingos Montagner (1962-2016), ator global cuja companhia circense, La Mínima, iniciou-se no Circo Escola Picadeiro. A família chora abraçada e emocionada, em especial o menino que terá pela frente o dilema de continuar ou não a tradição aparentemente em vias de extinção. A câmera poética de Paulo Caldas acompanha os acontecimentos com desenvoltura, assistindo de dentro das casas dos moradores das comunidades à passagem do circo, que anuncia no alto-falante a chegada do “incrível homem das quatro pernas”. A tecnologia, a internet e o metaverso parecem pequenos demais diante da imensidão de O Circo Voltou.

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