“Balinha de Coração” é de longe a faixa mais divertida do novo álbum de Pabllo Vittar, o em geral sombrio (mas festivo) Noitada. É interpretada ao lado de Anitta, o que apimenta a receita e confere à canção pop eletrônica de dois minutos e 16 segundos potencial instantâneo de gerar alvoroço em dose dobrada. Em contrapartida à diversão pop mais desbragada, é também um instante em que a cantora maranhense de 29 anos anda na corda bamba no alto de um edifício de mil andares. A faixa seguinte, “Derretida”, confirma que não é fortuito, já que a narradora canta, desafiadora (mas protegida pela terceira pessoa do singular), que “ri na cara do perigo”. Qual é o perigo?

O climão começa no interlúdio “Calma Amiga“, também com Anitta, com voz inicialmente desacelerada, estourada no grave, e logo em seguida vem o aviso risonho e baratinado de Pabllo, já em rotação normal: “Ai, caralho, eu tô chapada!”. “Balinha de Coração” brota então: “Quer provar, quer provar/ minha balinha de coração?/ hoje eu vou te dar/ só não acostuma, não”. A tal balinha, diz Anitta, “bate forte e o teu corpo arrepia/ Bubbaloo banana, o dedinho caramelizando/ boto gostosinho, você vai ficar babando”. E o refrão cantado por Pabllo, muito parecido com o de “Sua Cara” (2017, com o grupo norte-americano Major Lazer e também com Anitta), amplia sugestões sexuais e químicas: “Prova minha balinha que é de coração/ derrete na boca e te dá tesão”.

A vida noturna urbana é sobre sexo e drogas recreativas de pista de dança, nada de novo no front do pop desta e de outras épocas. “Balinha de Coração” foi composta por integrantes do Brabo Music Team, coletivo onipresente na trajetória de Pabllo desde ao menos o álbum Vai Passar Mal (2017, com sucessos sedutores como “K.O.” e “Corpo Sensual”). É assinada por Rodrigo Gorky, Maffalda, Pablo Bispo, Ruxell, Zebu, TAP e Raphael Andrade, componentes e/ou satélites do time hitmaker em escala industrial de Pabllo (que chega a contar com 15 compositores, no caso da faixa “Descontrolada“, com a punk-funkeira carioca MC Carol). Almeja se tornar hit do primeiro carnaval brasileiro pós-covid, tal como aconteceu em 2017 com o arrasa-quarteirão (hoje proscrito das plataformas musicais) “Todo Dia” (“eu não espero o carnaval pra ser vadia/ sou todo dia”), cantado em duo com o rapper paulista Rico Dalasam, co-autor da canção com Gorky e Maffalda. Carnaval made in Brazil é festa popular habitada por foliões adultos, sexo e drogas recreativas, tudo OK, onde é que mora o perigo afinal?

O anjo soturno de Pabllo ilustra “Noitada” (Mataderos/Sony Music)

Acontece que a rotação de “Balinha de Coração” se acelera ao agudo (sem o efeito caricato que Gretchen buscava ao cantar com Os Três Patinhos), tornando infantis as vozes de Pabllo e Anitta e embaralhando, na ambiguidade, signos de balinhas de coração, azedinhos de morango, chicletes de banana, caramelos viscosos, portões de escolas primárias, loiras do banheiro e o aparato todo da noitada (ou de “todo dia” de carnaval). Não é nada que já não estivesse desde sempre em Chapeuzinho Vermelho, no “Lobo Bobo” de João Gilberto, em “Les Sucettes” (pirulitos) oferecidos por Serge Gainsbourg para a voz adolescente de France Gall chupar, na “Aula de Piano” de Vinicius de Moraes, em Xuxa, na “Dança da Cordinha” de É o Tchan etc. etc. etc. Desta vez, vem verbalizado por uma artista pop de grande carisma, pertencente ao sempre vulnerável e marginalizado espectro LGBTQIAP+, cuja vigorosa persona drag, mesmo sem usar vozinha de criança, tem tido apelo junto ao público infantil. Há perigos na esquina (inclusive o do moralismo também infantilizado)? Quais são eles?

“Derretida”, na sequência, faz o desvio de volta ao fio adulto de Noitada, sob golpes de eletrônica de pista. “Loucura/ libido/ você ri na cara do perigo/ teu gosto/ bandido/ estou refém desse tesão maldito”, desliza a voz alta de Pabllo. O álbum segue daí por diante por trilhas de sexualidade livre e trocadilhesca (nada que Carmen Miranda não tenha feito há quase um século), em “Penetra” (com o cantor de pagodão baiano O Kannalha), “Apetitosa” (com o funkeiro Tchelinho, do Heavy Baile) e “Culpa do Cupido”.

Entre “Balinha de Coração” e “Derretida”, há uma faixa cuja audição está por enquanto trancada nas plataformas digitais. Significativamente chamada “Cadeado”, pode vir, em momento oportuno para o marketing, a contornar, inverter, alterar ou reforçar o destino ainda desconhecido do avanço do eletropop de Pabllo e Anitta ao imaginário. Desde já, no entanto, “Balinha de Coração” fumega como batata quente na boca corriqueiramente fechada da sociedade brasileira. O interesse e a maturidade que o Brasil terá (ou não) para debater o que está em jogo nesse sombrio conto de fadas dará a medida de quanto ainda permanecemos coletivamente sequestrados pelas artimanhas do neofascismo.

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