Passados exatamente 30 anos de sua morte, o gênio do artista uruguaio dos quadrinhos Alberto Breccia (1919-1993) ressurge em um primoroso trabalho de emolduramento de clássicos do conto latino-americano moderno. Escorado nas costas da literatura de Jorge Luis Borges (argentino), Gabriel García Márquez (colombiano), Juan Rulfo (mexicano), Alejo Carpentier (cubano), Juan Carlos Onetti e Horacio Quiroga (uruguaios), Breccia produziu, entre 1975 e 1985, versões gráficas de obras-primas da narrativa curta desses autores.
A editora Veneta lança em português, pela primeira vez, a edição brasileira de Versiones, essa coletânea de adaptações que Breccia (ao lado de Carlos Trillo e Juan Sasturain, que deglutiram os textos) forjou e foi publicada em 1993. É tudo em preto e branco, exceto um detalhe em vermelho sangue no conto A Galinha Degolada, de Horacio Quiroga. Aos contos originais, o trio Breccia-Trillo-Sasturain somou referências mais contemporâneas (como um livro de Horace McCoy sobre uma mesa) e outras âncoras culturais, mas sem tocar na essência da arte desses autores.
O conto de Borges, O Fim, trata de um tema que lhe é caro: o duelismo. Ao mesmo tempo, superpõe camadas de esfarelamento da consciência da morte, na figura de um homem velho “sem falar desde a manhã em que morrera seu lado direito”, Recabarren, que observa o ritual do enfrentamento e da vingança com olhos de fim do mundo. “Há uma hora durante a tarde em que a planície está prestes a dizer algo, nunca diz ou talvez diga infinitamente, e somos nós que não entendemos”.
O destino compulsório em Juan Rulfo, o enredamento social como força do destino em Alejo Carpentier, a impotência de decidir o destino em Onetti, o glorioso destino de decidir pela ruína em García Márquez, a força cruel e ligeiramente perversa do destino em Quiroga: há um fio muito tênue ligando as histórias escolhidas por Breccia para esse volume (ou escolhidas por Breccia ao longo dos anos para seu próprio deleite).
Utilizando diversas técnicas de desenho, Breccia examina questões de narrativa internas dos contos, como o ritmo, a fluidez, a necessidade ou a neutralidade da ação, o terror implícito que vira explícito como na tradição expressionista. Obra-prima da narrativa latino-americana em si, o álbum (traduzido por Marcelo Barbão) parece aquinhoar, se apetecer ao leitor, a questão colocada nos dias atuais sobre a capacidade de a inteligência artificial produzir obras de arte. Não há hipótese de uma máquina, algum dia, chegar a um naco da assombrosa compreensão de um desses escritores sobre a natureza humana – e é precisamente por não ter condições de chegar a isso que a máquina deve acelerar a descartabilidade dessas emoções que, de tão fundas, chegam ao definitivo mistério.
VERSÕES - Alberto Breccia, Juan Sasturain e Carlos Trillo. Veneta Editora, 79 páginas, 80 reais