Lucas Santtana: nós somos a natureza

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Lucas Santtana idealiza a felicidade humana sobre a Terra em "O Paraíso" - foto Jérome Witz

O Paraíso, novo álbum do músico, compositor e produtor baiano Lucas Santtana, inaugura o ano musical de 2023 mais como substituto que como sucessor de seu trabalho anterior, o tristonho e pessimista O Céu É Velho Há Muito Tempo. Se aquele veio à luz no primeiro ano do governo neofascista e comentava o que tínhamos virado e o que queríamos para nós em 2019 (em faixas de nomes semi-explicativos como “Brasil Patriota“, “Ninguém Solta a Mão de Ninguém“, “Um Professor Está Falando com Você” e “O Melhor Há de Chegar”), O Paraíso se deixa impregnar pelo otimismo da re-eleição e terceira posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Sim, sim, sim, o paraíso já é aqui/ não precisa morrer/ se quiser descobrir/ só precisa entender/ onde você vive”, formula a solar faixa-título, anunciando um álbum distante da tristeza ao violão do antecessor. Exilado em Paris, Lucas procura na natureza o fim do túnel dos anos horríveis que ainda não se dissiparam, desde a capa de humor naturalista (colonialista?) assinada pelo francês Jérome Witz. Tal como o paraíso possível para humanos e não-humanos é aqui na Terra e não noutro lugar, a natureza cantada pelo artista não é algo apartado dos humanos e afastado de suas megalópoles, como preconiza o ultracapitalismo. Isso ele pontifica a seguir, em “What’s Life”, sobre texto em inglês da bióloga estadunidense Lynn Magulis (1938-2011), co-responsável pela teoria da endossimbiose e pela hipótese de gaia, que, se pudéssemos condensar em uma frase simplória, preconizavam que somos organismos vivos dentro de outros organismos vivos, das mitocôndrias dentro de nossas células ao planeta Terra e além. “We are the nature”, proclama a voz sintetizada de Lucas, a um só tempo reverenciando e satirizando o homem-máquina de “The Robots” (1978), no grupo eletrônico alemão Kraftwerk, para o qual nós, humanos, éramos/somos os robôs.

O Paraíso orbita em torno desses e de outros conceitos (pro)positivos e aconchegados no mundo natural, reverberando uma sensação geral de alívio, mesmo sem entrar diretamente nos temas da política dura como fez O Céu É Velho Há Muito Tempo. A urgência ecológica está presente em faixas como “Vamos Ficar na Terra” e “La Biosphère“, mas não se desprende de modo algum dos elementos políticos, revogando portanto o que costumava acontecer nas investidas em temas ambientais de artistas brasileiros a partir de “O Progresso” (1976), de Roberto Carlos. A doce balada “Vamos Ficar na Terra” contrapõe-se ao neofascismo, não o bolsonarista, mas aquele disseminado por Elon Musk: “Ela se chama ganância/ casou com o fidalgo consumo/ tiveram milhares de filhos/ todos se chamam defunto/ eles compraram uma nave/ partiram pra outro planeta/ que nem respirar lá se sabe/ e o que dirá sobre a mesa/ ô, Ninha, vamo ficar na Terra/ aqui dá pra plantar e o que se colhe, come/ pra matar a sede, bebe água na fonte/ tem rio e cachoeira pra tomar um banhozinho”.

Além das potentes criações próprias, Lucas Santtana imprime o mesmo tom retrofuturista do cancioneiro de O Paraíso em duas releituras delicadíssimas, de “The Fool on the Hill” (1967), dos Beatles, em dueto com a cantora francesa Flore Benguigui, e de “Errare Humanum Est” (1974), de Jorge Ben (Jor), autor favorito que o acompanha desde o álbum de estreia de 2000, batizado EletroBenDodô. O mestre carioca também parece influenciar do samba-rock baiano de letra pontuda “Muita Pose, Pouca Yoga“, interpretado ao lado da brasileira radicada na França Flavia Coelho. “Na foto ninguém é real/ deixe de stories/ don’t touch the screen/ toque em mim/ pratique logout, baby/ o celular não é seu lar/ falta carícia nessa porra”, Lucas e Flavia provocam a juventude kraftwerkizada pelas redes sociais. O engajamento, aqui, é contra a escravização dos seres humanos por celulares e computadores, essas cópias do cérebro humanos que quisemos instalar no nosso exterior, mas que nos sequestrou para dentro delas. “Cresça e desapareça/ ter paz é não ser visto/ ninguém é foda, todos fodidos”, arrematam, bem mais realistas que a rainha da Inglaterra.

No bloco final, “A Transmissão” soa anacrônica, agora que aprendemos a fazer de conta que os coronavírus nem existem. Mas o alerta permanece atual e válido para aqueles ou quaisquer tipos de vírus: “A quantos corpos será necessária a transmissão/ pra humanidade então entender o sinal?/ e quantas mortes serão necessárias para você/ finalmente entender/ que estamos muito mal?”. Em espanhol ao som de grilos, “Sobre la Memoria” dá o último retoque, lembrando que tudo é questão de não esquecer o que fizemos no verão passado e, frequentemente, continuamos a fazer em moto contínuo.

"O Paraíso" (2023), de Lucas Santtana
O Paraíso. De Lucas Santtana. No Førmat!

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