Planet Hemp volta ao ataque em ritmo de punk rap

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Planet Hemp, 29 anos depois - foto Fernando Schlaepfer
Planet Hemp, 29 anos depois - foto Fernando Schlaepfer

“Quando o instrumento do medo não funciona, a gente adquire um poder inimaginável”, declara o compositor Marcelo Yuka (1965-2019) nos primeiros segundos do álbum Jardineiros, primeira produção inédita da banda de rap carioca Planet Hemp em 22 anos. O prelúdio surge em sintonia perfeita com o momento histórico do Brasil, quando a fábrica de medo social e pânico moral se torna a principal artilharia eleitoral usada pelo grupo neofascista para paralisar o país e convencer a população de que tudo deve permanecer como está (ou melhor, piorar).

Marcelo D2, o rosto mais conhecido do Planet Hemp, trilhou descaminhos nos anos sangrentos que separam como um abismo 2013 e 2022, aderindo gostosamente ao antipetismo, ao impeachment de Dilma Rousseff e à bandeira genérica anticorrupção aos moldes superficiais transmitidos à classe média pela mídia e pela elite. Em 2019, já sob governo de extrema direita, outro dos integrantes da banda, BNegão, viu um show que fazia no Festival de Inverno de Bonito ser interrompido com violência pela Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, enquanto a prefeitura do município repudiava manifestações de rebeldia política por parte dos artistas convidados para o festival (naquele momento, era voga repudiar o presidente e o ex-juiz corrupto em eventos públicos ligados à cultura).

Esse e vários episódios do início do governo neofascista norteavam então um cerco de silenciamento da classe artística, algo que o Planet Hemp conhecia já em 1997, quando toda a banda foi presa por suposta apologia ao uso de maconha (afinal de contas a razão de existência do Planet Hemp desde 1993). Por essas e outras, Jardineiros, lançado uma semana antes do segundo turno das eleições de 2022, vale como uma declaração valente de que o aparato repressivo do Estado não pode tudo e de que não bastam um cabo e um soldado para que os militares no poder cortem pela raiz uma plantinha chamada cultura brasileira.

Jardineiros retoma o estilo punk rap do primeiro CD, Usuário (1995), e o primeiro de vários raps-rocks furiosos do álbum, “Distopia”, incita a retomada da rebelião libertária, com participação especial do rapper paulistano Criolo. A fórmula pregada, à maneira do que Yuka ensinou, é meter medo em quem tradicionalmente reserva o monopólio do medo: “Os que detêm o poder precisam ter medo/ medo do povo/ eles mentem, mentem, mentem pra te deixar vulnerável/ qualquer um que acredita cegamente é manipulável”. “Distopia” soa como um manual antifascista feito à risca para desmascarar o Brasil bolsonarista: “Vai ser isso mesmo, vai?/ isso mesmo até quando?/ fé cega, radicalismo, sério?/ só pode tá zoando/ tá tudo errado, irmão/ então pega a visão/ pobre defende rico/ empregado, o patrão/ político vira herói/ juízes, super-heróis/ estão acima das leis/ acima de tudo, acima de nós”.

O alvo são os tiranetes rastaqueras do momento, mas os rapazes rebeldes de 1997, hoje na faixa dos 50 anos, ainda patinam na ingenuidade juvenil, numa atitude de rejeição apriorística ao “sistema” que tem tudo a ver com o espantalho da antipolítica, um discurso essencialmente politizado, bolsonarista por (falta de) excelência, como indicam outros versos de “Distopia”: “Todo mundo briga/ todo mundo fodido/ não tem mais mocinho agora/ todo mundo é bandido”. Não deixa de ser irônico ouvir a reprimenda moral “todo mundo é bandido” da boca do Planet Hemp, um projeto político-cultural nascido para desafiar leis, normas e instituições.

“Taca Fogo” reforça o combate ao poder de plantão que conduz Jardineiros de alto a baixo: “Eu tenho a minha palavra, ela tem valor e a verdade é nua e crua/ não preciso de uma arma, seu bunda mole, pra ter respeito na rua/ vivem em seus condomínios, malditos minions fazendo arminha com a mão/ tem coisa mais cafona, rico roubando em nome de Deus cristão?”. “Eles Sentem Também” se soma ao bonde da crítica: “Pastor em nome de Deus se junta a miliciano/ o diabo já tá aqui e o povo passando pano”. “Puxa Fumo” sublinha o recado: “O povo cantou, favela pega visão/ não tem futuro sem partilha/ nem messias com arma na mão”.

O guerrilheiro urbano incendiário desenhado em “Taca Fogo” é um herói da desobediência civil, que parte dos Panteras Negras para o presente, mas está bem menos para Carlos Marighella (um político com rosto, nome e sobrenome) que para os black blocs e anonymous de 2013: “Bomba no meio dos porco, camisa na cara só pra ver o que pega/ não nasci pra ovеlha, vida passiva, obediência cega”.

A outra linha mestra de Jardineiros, obviamente, é a verve de oposição à criminalização da maconha, a começar pelo próprio título do álbum. A faixa “Jardineiro” explica o sentido do nome: “Jardineiro não é traficante/ ouça o que eu tô lhe dizendo, cumpadi:/ não compre, plante”. Provando os efeitos das próprias contradições, o bolsonarismo que clama por liberdade de expressão para disseminar fake news fica sem discurso para seguir na toada censora e criticar versos como “veja quem lucra com a proibição e você vai descobrir quem sustenta essa guerra/ mentes criminosas doutrinam mentes adormecidas/ pra seguir demonizando a Cannabis sativa/ (…) militares e políticos sempre saem ilesos/ estão envolvidos com tráfico, mas nunca foram presos”. “Taca Fogo” não perdoa as ondas de hipocrisia moral-militar e pergunta “dе quem é os 39 quilos?”, em referência ao sargento da Força Aérea Brasileira preso com cocaína no avião que transportava a comitiva presidencial à Espanha, em 2020.

“Senhoras e senhores/ os maconheiros mais famosos do Brasil estão de volta/ com vocês, Planet Hemp”, anuncia o nostálgico rap “O Ritmo e a Raiva”, com participação especial de Black Alien, ex-integrante que participou dos álbuns Os Cães Ladram mas a Caravana Não Para (1997) e A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000), mas não se reincorporou ao Planet Hemp no reencontro atual. “Perdemos o Skunk, o super-herói/ entrou BNegão, Gustavo Niterói/ tocando o terror, fogo no parquinho/ e a concorrência corrói, corrói”, Gustavo Black Alien revisa as idas e vindas.

A vinheta “Planeta Maconha” ilustra como o nome da banda poderia ser ainda mais bacana do que pôde ser 29 anos atrás. “Já tô com o isqueiro na mão, pronto pra revolução/ moleque bom dando trabalho, fumando pra caralho”, canta “Taca Fogo”. “Puxa Fumo” reivindica “liberdade pra todos praticantes da jardinagem libertária/ agricultura celeste” e investe contra o falso moralismo dominante na sociedade brasileira: “O coxinha acha que me xinga, me chama maconheiro sem-vergonha/ botam seus medos, preconceitos, traumas em cima da maconha/ o presidente já fumou/ o filho dele já fumou/ ninguém morreu, olha a viagem/ todo mundo já fumou”.

“Amnésia” foge ao padrão e aborda o transe da erva no registro do humor, e não do protesto. Produzida pela dupla Tropkillaz (Zegon Laudz), “Ainda” é outra faixa que escapa às regras gerais, trocando o punk nervoso pelo funk carioca, sem desperdiçar discurso: “Aquele maconheiro ainda é nós, chapa quente/ os que bate de frente/ eu sou do Planet Hemp”. Exceção noutro sentido, a ultrachapada “Remedinho” se expande para além das fronteiras canábicas: “Remedinho pode, cocaína não/ cervejinha pode, bagulhinho não”. Trechos como “vozes e mais vozes na minha cabeça/ torcendo pra que nada de mau aconteça” exprime o ônus de paranoia na soma das drogas legais e ilegais. “A porta de entrada pras drogas é delegacia”, crava o último rap viajandão de Jardineiros, “Onda Forte”. “A planta é vida e segue proibida/ agrovenenos seguem liberados a serviço da morte”, arremata, inserindo mais uma variedade de drogas no contexto.

“Meu Barrio”, sobre maconha e política, integra o rapper argentino Trueno ao protesto, balanceia melhor as palavras de ordem e acaba expondo a fragilidade do discurso anticorrupção tipo classe média que os Planet Hemp e boa parte da classe musical (e da sociedade) brasileira costumam adotar. “Luta por terra, luta por teto, demandas do pueblo/ nuestros ancestros/ união, hermanos/ estamos por pierto/ arriba, abya yala/ do sul del mundo para todo universo/ sem perder la ternura, jamás/ assim nos disse Ernesto”, rima o rap portunhol, substituindo a pauta de classe média passivo-agressiva por temas ultrapolitizados como direitos dos sem-terra e dos sem-teto, integração latino-americana, direitos indígenas, geopolítica anti-imperialista e declaração de amor a Che Guevara (um político revolucionário). Nem sempre a insistência juvenil nos bordões “contra tudo e contra todos” é a atitude mais inteligente e engajada a se tomar, ensina o jovem Trueno (nascido em 2002) ao Planet Hemp e a nós, brasileiros.

“Meu Barrio” fica colada em “Fim do Fim”, de foco borrado pela indeterminação dos sujeitos opressores: “Nos censuraram por dizer a verdade/ aprisionaram o nosso presente/ incriminaram nossa liberdade/ deixando mortos nessa guerra vigente”. Quem seriam “eles”? Os políticos (sem exceção)? Os bolsominions? A branquitude? O mainstream? A Rede Globo? Os banqueiros? A elite econômica brasileira? Os imperialistas estadunidenses e europeus? E se o decreto (a)político de ser contra todos for sinônimo torto de não ser contra ninguém?, principalmente se você compõe o mainstream, como tem sido o caso do Planet Hemp nos momentos em que existiu nestes últimos 29 anos? “Sou o terror desse tal baile sem fim da burguesia”, tenta responder mais nitidamente “Eles Sentem Também”.

Essa é a faixa que, mais ao final de Jardineiros, retoma a senha desbloqueada por Marcelo Yuka, dirigindo-se novamente a uma terceira pessoa plural indeterminada: “Se você sangra eles sangram também/ o mundo é deles e é nosso também/ se estamos juntos não tem pra ninguém/ o medo que você sente, acredita, eles sentem também”. “Veias Abertas” faz algo parecido, mas dando nomes a bois gordos da burguesia, do neoliberalismo e das Forças Armadas: “Com sangue, terror e mentira/ assim a história vai sendo contada/ lucro em cima de vidas/ tudo pronto pra burguesada/ democracia no Brasil, puro conto de fardas/ militares no comando, espantalho bota a cara/ genocídio após genocídio/ as veias ainda estão abertas/ roubaram tudo que é nosso/ e nos jogaram no meio da guerra/ (…) dor dos antepassados/ gritos dos ancestrais/ papo neoliberal/ por aqui ninguém aguenta mais”. Não custa lembrar que, há 35 anos, os velhos Titãs já davam nomes aos bois, de modo ainda mais frontal.

Um último momento notável do álbum não está no conteúdo sonoro, mas em sua capa. Em meio a um mosaico de imagens, reluz à esquerda, em vermelho, uma pergunta crucial: “Com quantos pobres se faz um rico?”. Contabilizados os prós e os contras, o Planet Hemp promove um retorno memorável, também e talvez especialmente devido ao timing em que se dá o reencontro. Não acerta sempre, mas preserva sempre o tom destemido, transpirando coragem em cada um dos inúmeros temas espinhosos abordados em Jardineiros. Quando o instrumento do medo não funciona, a gente adquire um poder inimaginável.

"Jardineiros" (2022), de Planet Hemp

Jardineiros. De Planet Hemp. Som Livre.

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