Pharoah Sanders (1940-2022) foi um músico que parecia uma parabólica do Universo, um artista do cosmos profundo. Captava ordenação e caos com igual naturalidade, como se compreendesse que a existência era feita de mais que dualidades. É bem conhecido o vídeo no qual ele toca a composição Kazuko, de 1982 (do disco Journey to the One, Theresa Records, 1979). Ele está na penumbra dentro de um túnel abandonado perto da ponte Golden Gate, em São Francisco. Na desolação de um lugar esquecido pelo seu criador, o saxofonista entra no túnel caminhando e tocando uma canção de sublime harmonia, como se entrasse numa catedral. Na metade do túnel, sentado no chão, está Paul Arslanian, que o recepciona tocando um instrumento chamado harmonium (que parece uma sanfona pesada demais, portanto deitada). Progressivamente, a música vira desconstrução e desidratação, um mergulho no caos urbano, uma zoada de buzinas imaginárias. Ao final, após ter submetido o ouvinte a esse desenraizamento, Sanders reintroduz a experiência meditativa, de recomposição espiritual, à maneira de um mestre sufi.
Epígono do saxofone tenor, Pharoah morreu em sua casa em Los Angeles neste sábado, aos 81 anos. Todas as headlines lembrarão que ele foi um dos colaboradores íntimos de John Coltrane, que o conheceu nos anos 1960 e, mesmo saxofonista como ele (na verdade, uma entidade da música), o chamou para integrar seu estrelado grupo. Após a morte de Coltrane, em 1967, Pharoah seguiu compondo e gravando com a viúva deste, Alice Coltrane, maestrina e compositora.
“Toda a persona musical de Pharoah Sanders é a de uma consciência na consciente busca de uma elevação da consciência”, escreveu o poeta Amiri Baraka, que foi ligado ao movimento beat e é tido como o “Malcolm X da Literatura”.
Pharoah esteve no Brasil diversas vezes – em 2010, tocou no Sesc Pinheiros. Em 1998, eu o entrevistei por telefone. Ele contou que sonhava conhecer Salvador e os ritmos afro-brasileiros da Bahia porque tinha uma intuição de que ali tinha coisa que o interessava. Também disse que passou os anos 1960 desempregado. Ele contaria mais tarde à New Yorker tudo que tinha se passado consigo nos anos iniciais.
Pharoah, que nasceu Farrell Sanders em Little Rock, Arkansas, começou tocando bateria na igreja. Mas queria tocar clarineta. Um dia, um fiel mais idoso da igreja morreu e sua clarineta foi posta à venda no quadro de anúncios da paróquia. Pharoah então comprou o instrumento por 17 dólares. No colegial, já vivendo em Oakland, Califórnia, e habilidoso no instrumento, ele pensou no que queria da vida e decidiu que queria mesmo era tocar saxofone. Trocou a clarineta por um sax tenor novinho, mas não ficou satisfeito, buscava um instrumento mais batido. Trocou o novo por um muito usado. Era então um estudante de artes visuais, coisa que abandonou. Então alguém lhe aconselhou: “Se o que você quer é o jazz, você tem que ir para Nova York”.
Em 1962, Pharoah foi e viveu como homeless no início. Arrumava trabalhos eventuais por 5 dólares ao dia, ocupava-se em sobreviver. Disse que às vezes doava sangue para conseguir 10 ou 15 dólares extras e se manter de pé. Arrumou então uma banda para tocar consigo no Greenwich Village. Não lembrava mais dos nomes, mas um deles era o baterista Billy Higgins (1936-2001), que também viveu nas ruas. Em 1964, Pharoah passou a tocar com a lendária Sun Ra Arkestra, que tinha se mudado de Chicago para Nova York. O bandleader da orquestra, Sun Ra (1914-1993), o recrutou, lhe deu novas e excêntricas roupas e o convenceu a mudar o nome para Pharoah. Um ano depois, encontrou John Coltrane, 14 anos mais velho, que o convidou a juntar-se à sua banda, tornando-se mestre-parceiro; Pharoah estreou já no lendário álbum Ascension (Impulse!), de Coltrane, e o resto é história.
Sua lenda firmou-se. Ornette Coleman uma vez sentenciou que ele era provavelmente o melhor sax tenor do mundo. Mas não era só a performance que Pharoah parecia perseguir: a respiração do seu som é, em si, um movimento de geração de energia autônoma, uma disciplina que parece mais antiga do que ele, de descolamento do mundo e aprofundamento espiritual.
É exemplar como Pharoah expressa isso num dos seus hinos musicais, The Creator has a Master Plan (O Criador tem um Plano Fundamental, em tradução minha), do seu disco Karma, de 1969, uma das canções que deram régua e compasso para o acid jazz e boa parte do hip hop mais esclarecido dos anos 1980 e 1990. A circularidade da composição, sua liquidificação híbrida, a psicodelia, tudo é visionário ali. A canção tem scats e vocais de Leon Thomas, e seus versos do finalzinho são de importância fundacional para o ativismo pacifista dos anos seguintes: “O Criador tem um plano fundamental/Paz e felicidade para cada um”.