Antes de ser um gênero, o rap também ficou como sinônimo de uma espécie de junção das palavras “rhyme & poetry”” por vezes “rhythm & poetry”, denominação criada para descrever um gênero musical que combinava batidas pré-gravadas ou recortadas literalmente de gravação de discos em fitas cassete com o canto falado, rimado sobreposto a esses sons, nascido nos guetos novaiorquinos no final da década de 1970.
Gênero musical profundamente identitário e combativo, que denunciava o racismo, a pobreza e a violência dos negros pobres norte-americanos, o rap se espalhou nos anos seguintes por outras cidades americanas e fincou praça em diversos países onde havia a mesma combinação: pobreza, violência e discriminação direcionadas à juventude negra.
A partir da década de 1980, as periferias das grandes cidades brasileiras adotaram o rap, o hip-hop, como ferramenta de expressão e de denúncia, produzindo nomes tão expressivos como Thaíde & DJ Hum, Racionais MC’s, Sabotage (em São Paulo) ou GOG (em Brasília). A linguagem musical, a maneira de cantar e até elementos do imaginário agressivo foram incorporados a diversos outros estilos de música pop por aqui.
O rap, no entanto, ainda que também tenha se aberto a mais influências musicais, do soul e das formas do pop negro, do samba de várias origens ao brega, ao mesmo tempo que viu outras formas de música jovem e negra surgir no Brasil, permanece muito fiel ao seu conjunto de princípios, como se pode constatar em dois ótimos álbuns lançados neste ano: um do baiano Baco Exu do Blues e outro do paulistano Criolo.
Um desses fundamentos no rap é a centralidade da palavra e da capacidade de contar histórias e criar cenários por meio das letras. O baiano que atende pelo nome artístico de Baco Exu do Blues, por exemplo, desde que estreou em 2017 com Esú, combina letras de amor (“bebendo vinho/ quebrando as taça/ fudendo por toda casa/ se divido o maço, eu te amo, desgraça/ eu te amo, desgraça/ eu te amo, desgraça/ eu te amo de graça/ te amo, desgraça”) com um leitura aguda do que é ser pobre, preto, periférico e, ainda por cima, rapper em Salvador.
Seu estilo de cantar menos nervoso e as influências do blues – mas também do soul e do rhythm’n’blues contemporâneos – lhe conferiram um sotaque muito peculiar no rap dos anos 2010. Com referências fartas à cultura religiosa afrodescendente, à literatura e às artes, o impacto de seu primeiro álbum rendeu prêmios e indicações de melhor disco brasileiro de 2017 pela revista Rolling Stone Brasil em quinto lugar. No segundo álbum, Bluesman (2018), Baco mergulha ainda mais na investigação ou no amor pelo blues, em um disco quase todo de músicas lentas, sensuais, uma delas homenageando diretamente o mestre B.B. King.
A pandemia aguçou a face crítica de Baco, que logo no início de 2020 lançou o single “Eu Amo Cardi B. e Odeio Bozo”, espécie de rap-manifesto que sampleia a frase “this shit is getting real”, da cantora norte-americana em vídeo que viralizou nas redes, e afirma: “Trabalhadores na rua/ o papa é pop, quarentena é pop/ Cardi B. fez mais que o presidente/ porra, amo o hip-hop”. A faixa foi lançada em Não Tem Bacanal na Quarentena” (2020).
Em seu quarto disco, QVVJFA – Quantas Vezes Você Já Foi Amado? (selo 999), ele volta à forma do primeiro disco, com uma série de notáveis canções de amor doídas (e algo safadas), incursões pela MPB com voz sampleada de Gal Costa em “Lágrimas”, colagem dos versos de Jorge Mautner em “Lágrimas Negras”, e versos próprios: “É que me ensinaram a/ não ter medo de bater, de apanhar, ser baleado ou atirar/ o perigo mora em minha memória/ Cássia, eu sou poeta, mas não aprendi a amar/ é que tudo que eu ouvi sobre esse tal amor me assusta”.
Baco também acena para o novo rap queer, chamando a participação de Gloria Groove em “Samba em Paris”, e para o velho samba, novamente com os samples de Vinicius de Moraes em “Tempo de Amor”: “Ah, bem melhor seria poder viver em paz/ Ssm ter que sofrer/ sem ter que chorar”.
Num álbum quase conceitual, as 12 faixas parecem ter sido amarradas pela pergunta do título do disco, “quantas vezes você já foi amado?”, com toda a angústia suscitada por essa questão e por todas as dúvidas possíveis também que uma certa fama, pelo menos nas redes sociais, suscita.
Já o álbum do paulistano Criolo, o “menino bom” do Grajaú, tornado um pop star do rap com o álbum Nó na Orelha, de 2011, e, sobretudo, com o hit “Não Existe Amor em SP”, uma balada triste e melancólica que, de alguma forma, traduziu um sentimento profundo de isolamento na cidade grande e, depois, tornou-se hino, meme e até emprestou o nome para um movimento político contra a candidatura de Celso Russomanno à prefeitura de São Paulo.
Sobre Viver também é um disco de retomada para Criolo. Aqui, o reinício é do amargor e da ironia de Nó na Orelha, amenizados de certa forma nos álbuns seguintes como Convoque Seu Buda (2014) e Ainda Há Tempo (2016, regravação de parte do álbum homônimo de estreia, de 2006), em que Criolo aprofundou um olhar pacificado, quase religioso. Ele explorou a voz profunda e as técnicas vocais, com queda para a grandiloquência romântica, e uma espécie de suavidade musical que apontava tanto para o samba-rock como para o soul brasileiro.
No disco deste ano, revemos o rapper do Grajaú, vencedor de batalhas de MCs e profundamente tributário à escola paulistana de rap. Não à toa, é o primeiro disco que não tem produção de Daniel Ganjaman, cujo papel em Nó na Orelha está muito próximo da co-autoria. É, de certa forma, um disco de revolta e de dor, marcado pela morte de sua irmã por covid, que aparece em “Cleane” (nome da irmã) e “Pequenininha”, para a mãe que sobreviveu à filha: “O que pra vocês é vitimismo, pra nós é nossa vida/ abandono e o descaso são temperos deste coração/ eu prometi que ia ser rico e cuidar dos meus irmãos/ cuidar da minha irmã, agora só em prece/ ela não tá mais aqui, é que esse mundo não te merece”.
Disco feito de raiva, desespero e denúncias, recheado de achados de produção da dupla Tropikillaz, que também é co-autora de várias faixas, Sobre Viver como que cala a boca de muitos detratores de rappers como Criolo (e também de Emicida, Rael e Fióti) que supõem que qualquer tentativa de dialogar com outros gêneros e outras poéticas é capaz, por si só, de roubar a contundência e a autenticidade de sua música. Nem deve ter sido esse o drive de Criolo para cantar com tanta potência em faixas como “Diário do Kaos”, “Moleques São Meninos, Crianças São Também” e “Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer”.
“Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” é rap bravo na forma de um libelo antirracista: “Uma mãe que chora, o xis da questão é que/ pretos ganhando dinheiro incomoda demais/ sociedade que só respeita o que o bolso traz/ querem me ver rastejar, ver meu povo se humilhar/ sou preto do gueto, mantenho o respeito/ favela em primeiro lugar”. Novamente, Criolo relembra quem é e de onde veio.
A parceria com Milton Nascimento, com quem gravou em 2020 o EP Existe Amor, com “Não Existe Amor em SP” e a clássica “Cais”, prossegue com “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão”. E aí ouvimos a voz de Milton, artista que já foi bem esquivo com a questão racial, cantar coisas como”“por que nobre não manda seu filho pra morrer com anel de doutor?/ é que aqui só morre pobre/ isso a TV não mostrou”.
Sobre Viver e QVVJFA, cada um à sua maneira e com seus artistas de frente quase opostos no jeito, são discos que mostram que o rap brasileiro vai bem, obrigada. E que, talvez, sua poética incisiva seja a linguagem que mais precisamente cantará o Brasil pós-pandêmico. Dois excelentes álbuns para dar vazão à dor e ao vazio da terra arrasada pelo descaso e pelo desmonte.
Bia Abramo é jornalista e pesquisadora de música. Escreve sobre cultura e comunicação digital para a revista Focus. Este texto foi publicado orginalmente na edição 69.