Dona de uma carreira musical bissexta, de apenas cinco álbuns desde o fundador Outros Sons (1982), a cantora Eliete Negreiros é também filósofa e acadêmica e publicou dois livros sobre aquele que parece ser seu compositor mais querido, Paulinho da Viola, frutos de mestrado e doutorado em filosofia. O novo livro Amor à Música guarda outra característica, de parentesco vago com o jornalismo: reúne 52 artigos que ela escreveu entre 2011 e 2014 e publicou originalmente na extinta revista de esquerda Caros Amigos e no blog Questões Musicais, da revista Piauí.
Embora identificada com as inovações formais e estéticas da chamada vanguarda paulista, ao lado de seus pares Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, Eliete se aproximou gradativamente das tradições musicais brasileiras anteriores, e é principalmente nessas que estão ancorados os textos do volume Amor à Música, assinado por ela como Eliete Eça Negreiros. A referência constante a Paulinho da Viola reitera seu vínculo com o sambista moderno revelado nos anos 1960 e hoje convertido em mestre quase octagenário do samba. As invenções musicais do amigo Arrigo são ressaltadas e louvadas com particular afeto nos artigos “Arrigo Barnabé: Labirinto e Mirante” e “Caixa de Ódio: Arrigo Barnabé Interpreta Lupicinio Rodrigues“. De resto, tudo no livro é amor à tradição, a começar pelo artigo de abertura, “A Love Supreme”, devotado ao saxofonista e compositor estadunidense de jazz John Coltrane.
Os pilares da música gravada no Brasil, especialmente no campo do samba, são os sustentáculos da coleção de textos e do amor pela música de Eliete, já abordados por ela em formato propriamente musical, nos álbuns Canção Brasileira – A Nossa Bela Alma (1992) e 16 Canções de Tamanha Ingenuidade (1996). Ao samba (e/ou ao choro) a autora se rende em artigos sempre amorosos sobre Ernesto Nazareth, Ismael Silva, Pixinguinha, Ismael Silva, Wilson Baptista, Assis Valente, Lamartine Babo, Cartola, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Lupicínio, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e Candeia. De artistas também pertencentes à chamada era de ouro, mas não necessariamente ao samba, os escolhidos são o cantor Orlando Silva e o compositor Orestes Barbosa, enquanto o baião nordestino é representado solitariamente no artigo “Luiz Gonzaga e a Linguagem dos Pássaros”. As consequências da bossa nova, que revolucionou tudo a partir dos anos 1950, são temas de poucos, mas intensos artigos para Johnny Alf, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powell e Paulo Moura.
A tradição da geração heróica dos anos 1960 e 1970 aparece não só nas menções a Paulinho da Viola, mas no capítulo “Fragmentos de um Discurso Tropicalista” e em artigos de homenagem aos pós-sambistas (ou não-sambistas) Capinan, Dominguinhos, Luiz Melodia, Eduardo Gudin e Passoca. A intertextualidade entre música e outras artes comanda capítulos sobre o poeta Manuel Bandeira (com lugar semelhante ao de Paulinho da Viola no coração da cantora-escritora), o cineasta Rogério Sganzerla e o escritor argentino Julio Cortázar, além de cruzamentos polvilhados com filósofos variados de épocas diversas (Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Friedrich Nietzsche, Blaise Pascal, a brasileira Olgária Matos, Jean-Paul Sartre, Jean-Jacques Rousseau, Michel de Montaigne…). O “amor à música” do título se justifica mesmo nesses capítulos, de considerações sobre os vínculos de tais criadores com a canção brasileira e/ou a MPB.
A cerca de uma década passada entre a escrita dos textos e sua publicação em livro evidencia as profundas transformações vividas pelo Brasil nestas primeiras décadas do século 20, em termos musicais e também extramusicais. Ao discorrer sobre os sambas “Só Dando com uma Pedra Nela” (1932), de Lamartine Babo, e “Ai, Que Saudades da Amélia” (1942), de Ataulfo Alves e Mário Lago, Eliete não se vê forçada a mencionar a misoginia constitutiva das duas canções (chegando às raias da violência física na primeira), algo que seria impraticável nestes revoltos anos 2020.
Do mesmo modo, chama atenção a reduzida presença feminina nas digressões de Eliete: Isaura Garcia, Elizeth Cardoso, Alaíde Costa e Nara Leão (além da cubana Omara Portuondo) são as poucas cantoras destacadas em capítulos próprios num oceano masculino. Apenas duas mulheres compositoras, a pioneira absoluta Chiquinha Gonzaga e a pré-bossa-novista Dolores Duran, merecem artigos próprios (e igualmente apaixonados). Também o assombro exprimido diante de uma jovem fã que lhe pergunta se “Feitio de Oração” (1933, de Noel Rosa) é de autoria da própria Eliete vem acompanhado da tradicional conclusão queixosa sobre a ignorância das gerações mais novas sobre a música brasileira – diante da pequena fã, a artista não considera que, sim, por que não?, “Feitio de Oração” poderia ter sido de sua autoria. A propósito, a Eliete Negreiros compositora aparece em apenas quatro canções gravadas, “Espanto” (1982), “Estranho Coração”, “Outros Mares” (essa com Eduardo Gudin) e “Encanto Noturno” (todas de 1989).
Eliete Eça Negreiros não se atira a aventuras interpretativas em Amor à Música, detendo-se quase sempre em transmitir informações já indexadas nas enciclopédias sobre os objetos de suas paixões. Soa engraçado quando ela menciona a reação de Manuel Bandeira a uma entrevista do maestro Heitor Villa-Lobos, que afirmava não ser músico. “Isso, com licença, é tapeação. Villa-Lobos para mim é músico e nada mais. Pensamento? Nunca vi mentalidade maia confusa. Temperamento? Ouvido? Isso sim”, reagiu Manuel, segundo Eliete. Mais recatada, a autora não se permite voos como o comentário iracundo do poeta, e ancora na interpretação poetizada e na sensibilidade artística os atributos mais altos de sua escrita.
Minoritárias no livro, as reminiscências sobre a própria produção musical são preciosas, como quando a autora comenta a faixa-título de seu LP de 1982. “A música ‘Outros Sons’, de Arrigo e Carlos Rennó, era, em si, um manifesto: uma nova sonoridade era criada a partir da incorporação de procedimentos musicais e literários da arte de vanguarda à música popular brasileira, com alusão à ‘Sagração da Primavera’ de Stravinsky. Composição atonal, com rítmica original, ‘Outros Sons’ é um ritual que sagra o encontro entre o primitivo e o moderno, o som dos tambores, ‘rataplãs retumbantes, tantãs, tombadoras, tambores,/ sacra sã sagração, sagra o clã em calmantes louvores’, a música de Stravinsky e a literatura de James Joyce, ‘bababadalga ragta kami narron, konbronton neron tuon tun trovar, nons kon’, som da queda no Finnegans Wake“, documenta Eliete, inscrevendo-se ela própria, com Arrigo, no panteão inesgotável das tradições.
Amor à Música – De Cartola, Paulinho da Viola, Cortázar, Nara Leão, Rogério Sganzerla… De Eliete Eça Negreiros. Edições Sesc, 304 pág., R$ 70.