Ho Chi Minh
Ho Chi Minh em imagem supostamente registrada por um fotógrafo carioca

Uma atmosfera de fábula atravessa o filme O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh, da jornalista e cineasta Claudia Mattos, um filme de ficção disfarçado de documentário (e/ou vice-versa), no qual não é possível distinguir nitidamente o que é história e o que são fake news. O ponto de partida é dado pelo diretor e ator afrobrasileiro Luiz Antonio Pilar, a partir de memórias de infância sobre seu avô, Sebastião Luiz dos Santos, também conhecido pelo apelido de Faca Cega, por jamais ter se cortado enquanto exerceu a função de cozinheiro na Marinha.

Começa a fábula: no início dos anos 1910, Faca Cega teria tido como seu auxiliar na cozinha de um navio que singrava o planeta o jovem Ho Chi Minh (1890-1969), futuro líder comunista vietnamita que desempenharia papel determinante na emancipação da então chamada Indochina do domínio colonial exercido pela França, na Guerra da Indochina (1946-1954), e, a seguir, na libertação do Vietnã do imperialismo orquestrado pelos Estados Unidos, durante a Guerra do Vietnã (1955-1975). Aportando no Rio de Janeiro em 1911, o futuro revolucionário teria trabalhado como garçom na cidade e, levado pelo amigo Faca Cega, conheceria a aurora do samba na mitológica casa da baiana Tia Ciata (1854-1924), na chamada Pequena África, junto à zona portuária carioca.

Tia Ciata
A mitológica Tia Ciata, em cuja casa na chamada Pequena África, junto à zona portuária carioca, o samba se desenvolveu entre frequentadores africanos, afrobrasileiros, islâmicos, judeus, ciganos e (talvez) orientais, segundo depoimento de sua bisneta Gracy Moreira

Bisneta de Ciata, Gracy Moreira dá depoimento contextualizando as festas que congregavam africanos, afrobrasileiros, islâmicos, judeus, ciganos e (talvez) orientais em torno da figura de sua bisavó. Fica no ar uma entre inúmeras perguntas: haveria um ponto de conexão entre os pagodes de fundo de quintal da história carioca e os pagodes vietnamitas?

A fábula se adensa: em 1910, aos 18 anos, Faca Cega teria participado da Revolta da Chibata liderada pelo “almirante negro” João Cândido na Baía de Guanabara, e sobreviveu ao degredo de revoltosos nos seringais do Acre. “Foi meu avô que apresentou o comunismo a Ho Chi Minh. Sem isso não teria acontecido a Guerra da Indochina nem a Guerra do Vietnã”, afirma Pilar no making of do documentário incluído dentro do próprio. “Durante seis dias, eu parei o Brasil”, diz a voz de João Cândido, em depoimento registrado em 1968 pelo Museu da Imagem e do Som (MIS). “Para a França, só ela era civilizada”, afirma um historiador parisiense de feições entre indianas e chinesas, por sobre imagens de cabeças vietnamitas decapitadas pelos colonizadores franceses, numa versão oriental do fim do bando de Lampião no Nordeste brasileiro, e de senhoras respeitáveis que se divertem jogando migalhas a crianças negras famintas.

Mãe de Luiz Antonio Pilar, a grande atriz Léa Garcia, até hoje lembrada pela novela global escravista Escrava Isaura (1976), surge falando do pai Faca Cega, na cena mais impactante de O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh. A disputa aberta com o filho pelas reminiscências da família é digna de compor antologias com momentos altos do cinema brasileiro.

Léa Garcia e Luiz Antonio Pilar
Léa Garcia é entrevistada pelo filho, Luiz Antonio Pilar, em “O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh”

O redemoinho histórico acondicionado no filme liquidifica personagens e episódios históricos cornucópicos como a pandemia de gripe espanhola de 1918-1919, o encontro de Ho Chi Minh com Charlie Chaplin a bordo de um navio, a inauguração do bondinho do Pão de Açúcar em 1913, a Revolução Russa de 1917 e a rebelião marinha retratada n’O Encouraçado Potemkin (1925) de Serguei Eisenstein, as memórias do ator Haroldo Costa, (do histórico Teatro Experimental do Negro) sobre Pixinguinha na casa de Tia Ciata, a música contemporânea de candomblé de Mateus Aleluia e d’Os Tincoãs, os versos do poeta vietnamita assassinado Ang Sing, o nascimento do bairro carioca de Ipanema, a participação-relâmpago do jornalista e cronista João do Rio, o destino da namorada ruiva francesa de Faca Cega na mesma prisão que encerrou o Conde de Monte Cristo na costa de Marselha…

“Neste filme, tudo é ficção, menos as verdades”, explicam, para confundir, os letreiros finais de uma narrativa que se desenvolve sempre com humor cáustico, vivaz e mobilizador. Aos espectadores, ficam as tarefas de distinguir verdades de mentiras na trama inclinada à esquerda, inclusive em contraste com a sistemática de criação e disseminação de fake news pela extrema direita bolsonarista. Do céu, do inferno ou de algum terceiro lugar, o cineasta Orson Welles solta uma sonora gargalhada.

"O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh", de Claudia Mattos

O Rio de Janeiro de Ho Chi MinhDe Claudia Mattos. Brasil, 98 min.

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