O bolsonarismo trocou medalhas entre si neste sábado, 2 de julho, no prédio da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, enrugando os tapetes de uma histórica trincheira antibarbárie. A escolha do lugar, a Biblioteca Nacional, e do prêmio, a Ordem do Mérito do Livro, não foi por acaso: a matilha bolsonarista estabeleceu como método, desde janeiro de 2019, o escárnio como estratégia de avanço (ou de simples demonstração pública de desprezo em progresso mesmo).

Assinados pelo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, o militante católico ultraconservador e olavista jr. Luiz Carlos Ramiro Júnior, os certificados da Ordem do Mérito do Livro foram entregues a 118 pessoas. O primeiro nome a provocar rumoroso debate público, ao ser anunciado, foi o do deputado Daniel Silveira. Não tanto pelo olímpico distanciamento de Silveira de qualquer coisa que tenha relação com um livro, já que a própria cúpula da gestão cultural do governo não tem a menor intimidade com temas da cultura. Mas pelo fato de que o deputado é um condenado a 8 anos e 6 meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal – só escapou da cadeia por uma canetada do presidente, que lhe concedeu a (des)graça presidencial, mergulhando o País um pouco mais no abismo institucional.

Há exatamente um mês, Jair Bolsonaro criou outra medalha para ungir seu séquito de fanáticos: a Ordem do Mérito do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A ideia, evidentemente, é condecorar aquilo que ele considera mérito de segurança pública – Bolsonaro relativizou até a ação dos policiais rodoviários federais que sufocaram à morte um cidadão dentro de uma viatura em Sergipe, em maio. O mandatário acredita que se confere respeitabilidade por decreto.

Uma das características do fascismo dos anos 1930 e 1940 era condecorar-se. Condecorar a si e aos seus. Como lembrou o escritor e filósofo italiano Umberto Eco no texto Ur-Fascismo (uma conferência proferida na Universidade Columbia, em abril de 1995), na Itália de Benito Mussolini preponderavam dois prêmios artísticos: o Premio Cremona, que “era controlado por um fascista inculto e fanático como (Roberto) Farinacci, que encorajava uma arte propagandista”, e o Prêmio Bergamo, “patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai”.

O historiador, ensaísta e ex-prefeito de Roma Giulio Carlo Argan definiu o Prêmio Cremona, outorgado entre 1939 e 1941, como “um prêmio da pintura fascista, que era péssima pintura”. Já o Premio Bergamo, que teve quatro edições (entre 1939 e 1942), foi criado por Giuseppe Bottai, ministro da Educação.

Quem aceitava as condecorações do fascismo de Mussolini? Bom, primordialmente, fascistas ou, ainda, intelectuais cuja fé na desmemória pública era muito maior do que seu zelo pela construção da verdade ética. É muito difícil alegar inocência nesse tipo de confraternização.

Como o bolsonarismo é um decalque desbotado de todas as doutrinas ou subdoutrinas autoritárias que o antecedem, tem copiado isso diligentemente. A diferença é que o medalhismo presidencial obedece quase a um roteiro de filme de Sacha Baron Cohen.

Em novembro do ano passado, o próprio Bolsonaro condecorou e entregou a si mesmo a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico na classe de Grã-Cruz. No mesmo decreto, condecorou quatro de seus ministros, entre eles o caído Milton Ribeiro, então na Educação, demitido após flagrantes de negociação de propina com pastores, e o notável Eduardo Pazuello, flagelo da saúde pública nacional em tempos recentes. Em junho do ano passado, o presidente já tinha condecorado a própria mulher, Michelle Bolsonaro, além dos filhos Flávio e Eduardo Bolsonaro.

Então, depois de toda essa nobre linhagem condecorada em cascata, por que ainda estamos escandalizados com as patacas concedidas pela Fundação Biblioteca Nacional?

Bom, talvez seja bom examinar os outros nomes do convescote da direção temerária da Biblioteca Nacional. À parte as presenças de pura provocação, como os aspones Daniel Silveira e Hélio Lopes, as medalhas distinguem, verdadeiramente, aquilo que o governo considera totens de lealdade aos seus princípios de desmonte e desqualificação do aparato cultural.

Para começar, a presença do atual presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Alex Braga Muniz, é reveladora. Muniz é réu na Justiça Federal por acusação de improbidade administrativa, cristalizada em ações de paralisação deliberada do mercado audiovisual brasileiro. Também foi “medalhado” Felipe Pedri, ex-secretário Nacional do Audiovisual, local onde foi abrigado após voltar de um rumoroso trem da alegria da Secom a Dubai e por ter apoiado um médico assediador brasileiro preso no Egito. Lucas Jordão, atual secretário de Fomento à Cultura (e advogado do ex-vereador baiano Alexandre Aleluia) foi outro subordinado que recebeu uma pataca.

Logo abaixo, está o nome de Soraya Santos, madrinha de Alex Muniz na Ancine, responsável por aparelhamento no setor e deputada federal ativa na área do audiovisual sob o bolsonarismo (assim como outros nomes, como Carlos Portinho e Aureo Ribeiro).

Soraya, que foi gestada no ninho do malfadado Eduardo Cunha, é estafeta do Centrão e postula uma vaga como ministra do TCU. Há também um ex-assessor internacional da Ancine na gestão Christian de Castro (também réu na Justiça) na lista, Adam Jayme Muniz.

Samuel Malafaia é irmão de Silas Malafaia e deputado estadual no Rio de Janeiro. É, portanto, da tropa de choque do extremismo religioso bolsonarista. Outro bolsonarista furioso é o deputado estadual carioca Dr. Serginho, também agraciado. Já Alexandre Ramagem saiu da segurança pessoal de Bolsonaro para enfiar a Polícia Federal em um sombrio período, assim como também chefiou o ninho de arapongas do governo, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

A autocondecoração é que dá o tom na maior parte das medalhas. Ricardo Borba D’Água Almeida Braga é o atual diretor do Arquivo Nacional, objeto de uma ação do Ministério Público Federal para que seja afastado das funções por não cumprir os requisitos legais. Tamoio Athayde Marcondes é o sexto presidente da Funarte na gestão Bolsonaro, responsável por interditar acervo histórico da instituição no Centro do Rio.

Em seguida, em outra inflexão típica do bolsonarismo, vêm os militares, sempre afeitos ao “condecoracionismo”. Luciano Antonio Sibinel, por exemplo, é general de brigada no Rio de Janeiro. João Alberto de Araújo Lampert é Capitão de Mar e Guerra e diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha. Fábio Cajueiro é Coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Evidentemente, há outros profissionais do real métier da cultura no rol, como condimento que usam para conferir credibilidade às escolhas alheias à Ordem do Mérito do Livro. Mas alguns deles declinaram rapidamente da nomeação, como os escritores Marco Lucchesi e Antônio Carlos Secchin. A decana Nélida Piñon, que já integra conselhos como o da Fundação Casa de Rui Barbosa, não recusou a comenda.

Se as medalhas fornecessem, como acredita esse governo, a certeza de que portam algum atalho para a respeitabilidade, seria interessante checar com atenção o destino de muitas das que foram recentemente conferidas pela presidência da República. Um exemplo: a “transição” para o abismo representada por Michel Temer condecorou, em 6 de novembro de 2018, um certo médium chamado João de Deus com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito do Trabalho. Pouco depois, o médium foi condenado a 110 anos de prisão em 6 processos de violência sexual, dos muitos que ainda vai enfrentar. Um equívoco cheio de medalhas é apenas um equívoco mais pesado.

ATUALIZAÇÃO (segunda-feira, 4 de julho, 15h45):

No último sábado, 2, no momento em que eram outorgadas as Medalhas do Mérito do Livro na Biblioteca Nacional, quatro historiadores da lista de agraciados recusaram a distinção. São eles: José Murilo de Carvalho, Lucia Bastos Neves, Guilherme Pereira das Neves e Marcello Otávio Neri de Campos Basile. Eles enviaram a seguinte mensagem à FBN:

Ao presidente da Fundação Biblioteca Nacional

Luiz Carlos Ramiro Jr.

Por mais que os signatários abaixo apoiem os esforços da presidência da FBN para deenvolver uma política consistente e plural para a instituição, participando inclusive de algumas de suas iniciativas, não podem, porém, conservar a Medalha da Ordem do Mérito do Livro em alusão ao Bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022), com que ontem foram contemplados. Por razões éticas, julgamos impróprio compartilhá-la com outros agraciados à tarde desta ocasião, cujos nomes não haviam sido previamente divulgados.

Por este motivo, vimos, por meio desta, recusar a distinção. As medalhas logo serão devolvidas, acompanhadas do respectivo diploma, sempre que pertinente, na primeira oportunidade, ao longo da próxima semana.

Com a consideração devida,

José Murilo de Carvalho
Lucia M. Bastos P. Neves
Guilherme Pereira das Neves
Marcello Otávio Neri de Campos Basile

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