A música brasileira inicia a última semana de maio fortalecida e enriquecida por diversos matizes do Brasil afro-indígena, com Moacir de Todos os Santos, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, Canto Sedutor, em parceria de Mônica Salmaso e Dori Caymmi sobre a música de Dori com Paulo César Pinheiro, Oríkì, de Iara Rennó (com participações de Criolo, Carlinhos Brown, Tulipa Ruiz e Lucas Santtana, entre vários), e os EPs Notas de Tempo Nenhum, de Tetê Espíndola, e Rainha, da estreante MC Dricka.
Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz
Moacir de Todos os Santos, Rocinante
Das muitas más notícias que a covid-19 trouxe para a música brasileira, uma especialmente contundente foi a morte do baiano Letieres Leitte, entre muitos motivos porque não fazia tempo que ele tinha começado um voo solo (e acompanhado pela Orkestre Rumpilezz) mais consistente, e há muitos indícios de que não estava nem perto de atingir o clímax da música que trazia guardada por dentro. O que fica como testemunho, tão eloquente quanto a morte dele por essa enfermidade, é o álbum póstumo Moacir de Todos os Santos, com a releitura afro-jazz-percussiva de sete das dez Coisas (1965) musicais matriciais deixadas pelo maestro pernambucano Moacir Santos (1926-2006), que constituem um monumento sólido e maciço na história cultural brasileira. O monolito foi repetidamente apropriado e alçado à fama por músculos não-pretos, apanhado das mãos negras que colhiam o algodão branco para a “democracia racial” brasileira. É a história de 522 e mais anos vividos no teatro de guerra protagonizado pelo triângulo Europa-África-América do Sul, e a experiência pessoal de Letieres também passou pela cena conflagrada, nos muitos anos em que foi diretor musical de artistas da axé music, como Ivete Sangalo etc.
É eloquente demais que Letieres tenha gravado Moacir de Todos os Santos, retomando parte de Coisas, como trabalho derradeiro antes de morrer cedo demais, aos 61 anos. A liberdade não foi tão gentil com Letieres quanto ele foi com a (ou pela) liberdade, mas o desfecho foi definido antes do começo, e o legado existe graças à gravadora (se é que esse termo ainda faz sentido) independente Rocinante, que fez pela obra de Letieres, ou melhor, pelo Brasil, algo parecido com o que a gravadora Forma fez pela obra de Moacir Santos (pelo Brasil) 57 anos atrás. De resto, é menos falar do que ouvir o som percussivo afro-brasileiro que vai ecoar por décadas e séculos à frente, se houver séculos e décadas à frente. E esperar que a Rumpilezz siga adiante, mesmo sem o farol-guia.
Mônica Salmaso e Dori Caymmi
Canto Sedutor, Biscoito Fino
Aos 51 anos, a cantora paulistana Mônica Salmaso segue as pisadas insinuadas por intérpretes como Nana Caymmi e explicitadas por outras como Joyce Moreno, e grava um disco inteiro em duo com a voz morna de Dori Caymmi, batizado Canto Sedutor, nome também da faixa de abertura, composta (assim como o repertório inteiro) pela histórica parceria carioca de Dori e Paulo César Pinheiro.
Se em 2005 Joyce brincou com a origem carioca mergulhada em mar baiano de Dori e dela própria (parceira de décadas do baterista baiano Tutty Moreno) na faixa-título da parceria Rio-Bahia, o encontro Rio-São Paulo de berço baiano de Canto Sedutor põe ênfase na melancolia da música de Dori, da poesia de Paulo César Pinheiro, do canto de Mônica, em última (ou primeira) instância do universo palmilhado por toda a família musical do “buda nagô” Dorival Caymmi, por Joyce e Tutty Moreno, pelo núcleo paulistano Pau Brasil (de Rodolfo Stroeter), por Tom Jobim, pelos afro-sambas pós-caymmianos de Baden Powell e Vinicius de Moraes e assim por diante e para sempre.
Ecoam, nessas trilhas, os afro-sambas regravados por Mônica com o violonista e arranjador paulistano Paulo Bellinati (em Afro-Sambas – Baden Powell e Vinicius de Moraes, de 1995), ecoa a faixa-título brincaste de Rio-Bahia, em que Joyce brincava de ser carioca enquanto fazia de conta que Dori era baiano: “Ele não sabe se fica, mas possa ser que não vá/ se eu ofereço canjica, ele só quer mungunzá/ vive plugado na rede enquanto eu vou trabalhar/ acontece que ele é baiano/ acontece que eu não sou de lá/ ela tão sofisticada, me convidou pra sambar/ mas quer botar feijoada dentro do meu vatapá/ vive rezando pros santos, mas chama o meu orixá/ acontece que ela é carioca/ acontece que eu não sou de lá”. Talvez “ele” fosse Dorival, reencarnado no filho carioca, de qualquer maneira com resultados amorosos e divertidos: “Tem tanta gente no mundo, gente de todo lugar/ fui ancorar na Bahia, quase que eu fico por lá/ eu deslumbrado com o Rio, tanta beleza no ar/ mesmo estranhando esse frio, acho que vou me mudar”.
Canto Sedutor, de pés bem enraizados no chão apesar dos pios mitológicos da sereia, soa bem mais sério, concentrado e triste que o encontro Joyce-Dori. O repertório se divide entre composições inéditas (“Canto Sedutor”, “Raça Morena”, “A Água do Rio Doce”), cancioneiro gravado originalmente por Dori, com “Velho Piano” (1982), “História Antiga” (1991), “Flauta, Sanfona e Viola” (1994 em inglês, 2010 em português), “Delicadeza” (2010), “Quebra-Mar” (2010), “Vereda” (2011), “O Passo da Dança” (2014), “À Toa” (2014) e “Voz de Mágoa” (2016), mais dois clássicos eternizados na voz da irmã Nana, “Desenredo” (1976) e “Estrela do Mar” (1980). Fora a beleza lancinante dessas duas últimas, Canto Sedutor brilha em dois momentos em especial: nas inéditas “Raça Morena“, praieira com jeito de interiorana (“sou de uma raça morena/ da cor de beira de mar/ ando em qualquer chão de estrada/ piso em qualquer chapadão”), e “A Água do Rio Doce“, que sangra os desastres não-naturais assinados pela Vale (do Rio Doce): “Á água do rio tem medo de gente”.
MC Dricka
Rainha, Som Livre
Propagandeada como “rainha dos fluxos” e/ou do “trap funk”, a funkeira paulista MC Dricka, de 23 anos, lança seu primeiro EP (de 21 minutos), Rainha, com sisudez e introspecção bem paulistas, mais próximas do (t)rap do que do funk consolidado nas últimas décadas a partir do Rio de Janeiro. Com passagens eventuais por costumes bem conhecidos de várias vertentes funkeiras – tamborzão, ostentação, sexualidade impositiva, padrões estéticos bionicados (ou harmonizados) -, a jovem MC busca uma identidade própria que não está plenamente definida, mas tampouco soa como cópia de ninguém mais.
“A mensagem que eu quero passar pro meu público é que a gente não pode depender de ninguém, a gente tem que depender da gente mesmo, temos que ser felizes com pouco ou com o tanto que temos”, afirma ao lançar Rainha, perseguindo difícil trilha preta-feminista já percorrida por Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona, Nega Gizza ou Karol Conká, mas fazendo um som que não se parece com o de nenhuma delas. Sem dar espaço para o deboche funkeiro tipicamente carioca, Dricka chega mesmo a soar quase romântica (em “Não Tem Volta Não”, por exemplo), demonstrando como pode ser – e é – amplo o arco da moderna música dita periférica.
Tetê Espíndola
Notas de Tempo Nenhum, independente
Três anos depois do belo e fronteiriço álbum Recuerdos, dividido com a irmã Alzira E, a sul-matogrossense Tetê Espíndola volta ao ambiente urbano e underground em Notas de Tempo Nenhum, de caminho híbrido entre a música sinfônica e a vanguarda paulista (não-)pop, em interpretações viscerais/nativas para seis canções escritas pelo marido Arnaldo Black (autor de “Escrito nas Estrelas”, de 1985, com Carlos Rennó) e por Hilton Raw.
“Pesado de Estrelas” se comunica com o enlevo de festival de quase quatro décadas atrás, agora sem nenhum propósito em soar pop ou conformado às convenções musicais de tempo nenhum: “Ia em favos de coral/ gardênias e suor/ ia retinto de anarquia/ de uma ternura imensa/ salubre inebriado/ na quilha dos conventos/ do dia das manhãs”. Entre títulos como “Vulgar” (“que poder/ tão vulgar/ cruza a São João”), “Objetos” e “Écran Triste – 3 Saudades”, parece, de fato, boiar no tempo e no espaço.
Iara Rennó
Oríkì, independente
No sétimo trabalho de uma carreira solo sempre experimental iniciada em Macunaíma Ópera Tupy (2008), a cantora e compositora paulistana Iara Rennó, filha de Alzira E e Carlos Rennó e sobrinha de Tetê Espíndola, lança Oríkì, trabalho de afro-jazz-vanguarda-paulista integralmente devotado às evocações (oríkìs) aos orixás de matriz africana, cujos nomes, curiosamente, quase nunca são explicitados nas letras, deixando ao ouvinte um possível jogo de adivinha. Com textos de Iara e/ou de Antonio Risério, são 13 peças solo ou divididas com Criolo (“Patakorí O”, para Ogum), Curumin (“Uma Flecha – Òkè Aró”, para Oxóssi), Tulipa Ruiz (“Feito Chuva – Arroboboi”, para Oxumaré), Carlinhos Brown (“Pedra de Raio – Káwo Kábyèsí Ilè”, para Xangô), Anelis Assumpção (“Éèpà Ripá Ọya O”, para Iansã), Lucas Santtana (“Dentro da Boca – A Tótó”, para Omolu), Thalma Freitas (“Babá Orí”, para Oxalá) e o trompetista estadunidense Rob Mazurek (na faixa de abertura, a saudação coletiva “Àgò Mo Júbà Orí Ọkàn Oríkì”, proferida pela voz do ogan baiano Ronaldo de Oxalá).
O chamado se completa com “Laròyé L’Ọ̀nà” (com sintetizadores pilotados por Kiko Dinucci) para Exu, “Ewe O” (com récita do linguista e músico Dámilaré Faladé, para Ossain) “Saluba” para Nanã (“ela é eterna/ ela é origem”), “Ave Leve (Ore Yèyé O)” para Oxum e “À Flor D’Água (Odòyá)” para Iemanjá. Assim como aconteceu com os álbuns gêmeos Arco e Flecha e Arco, de 2016, Oríkì terá uma segunda metade, prometida para 2023 e denominada Ori Okàn. Com produção iniciada há 13 anos, Oríkì vem à luz num Brasil implodido pelo pico bolsonarista, e cada advento como esse é, por si, uma vitória contundente contra o protofascismo e seus adoradores e/ou comparsas. Não bastasse, tem tudo e mais um pouco a ver com Moacir de Todos Santos, Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, Moacir Santos e outras Coisas que o racismo “cordial” brasileiro não consegue exterminar, por mais ódio que sinta e por mais força que faça.