Quando a moderna música brasileira tomou Forma

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Baden Powell, Roberto Quartin e Stan Getz
Baden Powell, Roberto Quartin e Stan Getz gravam, em 1965, o disco que permanece inédito até hoje - fotos Kuarup

O livro Tempo Feliz – A História da Gravadora Forma, do jornalista Renato Vieira, lança luz sobre uma casa fonográfica carioca que teve vida efêmera, mas deixou cravados na história trabalhos musicais maiúsculos como o fundador Coisas (1965), do maestro Moacir SantosOs Afro-Sambas de Baden e Vinicius (1966), com Baden PowellVinicius de Moraes Quarteto em Cy, e a trilha sonora do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), por Glauber Rocha Sérgio Ricardo.

Vinicius Moraes e Glauber Rocha
O poeta Vinicius Moraes e o cineasta Glauber Rocha se encontram num lançamento de disco da Forma

Vieira se debruça sobre episódios perdidos no tempo, como a gravação interrompida de Stan Getz Meets Baden Powell, do gênio fluminense do violão com o saxofonista estadunidense que já se rendera à bossa nova em Getz/Gilberto (1964), o bem-sucedido disco de jazz que lançou “Garota de Ipanema” (1963) para o mundo, em parceria com João Gilberto e participação de Tom Jobim ao piano. O encontro com Baden sairia supostamente em parceria com o mitológico selo estadunidense Verve (que lançou Getz/Gilberto) e permanece inédito até hoje. Tempo Feliz documenta também projetos não realizados e as tentativas frustradas dos jovens produtores e empresários Roberto Quartin Wadi Gebara Netto, sócios na Forma, em encampar a gravação do primeiro LP de Chico Buarque e contratar uma Elis Regina prestes a explodir como intérprete da moderna música brasileira dos anos 1960.

Moacir Santos grava "Coisas" (1965)
Moacir Santos grava “Coisas”, pedra fumental do jazz afrobrasileiro, da afrobossa e do afrossamba

“Isso não é uma coisa muito comum, isso é uma coisa rara, mas nós estivemos perto de pessoas que vieram a ser muito bem-sucedidas. Não demos sorte”, afirmou o também arquiteto Gebara Netto, em entrevista a Vieira pouco antes de sua morte, aos 81 anos, em 2019. Quartin, jovem de 22 anos em 1964, quando iniciou a aventura de excelência da Forma, morreu em 2004, aos 62 anos. Com a gravadora imersa em dívidas, Quartin deixou a empreitada e as dívidas para Gebara pouco mais de dois anos após sua fundação. Em 1967, depois de tentar continuar com o sócio-investidor-herdeiro e futuro cineasta Miguel Faria Jr., de 21 anos, Gebara vendeu a marca e as matrizes para a Companhia Brasileira de Discos, pertencente à multinacional Philips. A Forma permaneceu operante até 1971, como selo coadjuvante da Philips, o mesmo que aconteceu com a igualmente mitológica Elenco, de Aloysio de Oliveira, inspiradora da filosofia artística e editorial de Quartin.

A Forma entrou em atividade em 1964 com o LP Inútil Paisagem – As Maiores Composições de Antonio Carlos Jobim, do pianista carioca e futuro arranjador internacional Eumir Deodato, então com 21 anos. Além de refletir o prestígio mundial crescente que a bossa nova conhecia desde o show coletivo no Carnegie Hall de Nova York, em 1962, o samba-jazzístico Inútil Paisagem era um disco instrumental como seria parte substancial do catálogo Forma.

Vieram o segundo lançamento, Novas Estruturas, do pianista carioca Luiz Carlos Vinhas (24 anos), ainda em 1964; em 1965, Bossa Três em Forma!, do trio de Vinhas, e o já citado Coisas; e em 1966, Desenhos, o LP de estreia do saxofonista carioca Victor Assis Brasil (21 anos), com Edson Lobo no baixo, Chico Batera na bateria e Tenório Jr. (que morreria em Buenos Aires em 1976, assassinado por militares argentinos, aos 34 anos) no piano, Tempo Feliz, de Baden Powell com o gaitista carioca Maurício Einhorn, e, já sem a presença de Quartin, a estreia homônima do Quinteto Villa-Lobos e um LP ao vivo da violonista fluminense Rosinha de Valença (25 anos). Três desses morreram tão ou mais jovens quanto Quartin: Rosinha aos 63, em 2004, Vinhas aos 61, em 2001, Assis Brasil aos 36, em 1981.

Um disco instrumental a mais no legado da Forma é o curioso A Viagem (1966), da dupla estadunidense Mitchell & Ruff, gravado durante passagem do pianista e do saxofonista pelo Rio de Janeiro, com repertório exclusivamente brasileiro/bossa-novista e acompanhamento dos músicos locais CandinhoDurval FerreiraSergio Augusto e Chico Batera.

A história da Forma com a música brasileira cantada começou em traje de gala, com a trilha musicada pelo paulista Sérgio Ricardo para o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, do baiano Glauber Rocha. “Se entrega, Corisco/ eu não me entrego não” foram os versos que restaram mitológicos tanto para o cinema quanto para a música do Brasil. Sérgio Ricardo, também cineasta, lançaria pelo selo a seguir a trilha de seu próprio filme, Esse Mundo É Meu (1964), conduzida pelo maestro paulista Lindolfo Gaya. Outro projeto dessa natureza foi Liberdade, Liberdade (1965), trilha sonora do musical de mesmo nome, inspirado na linha aberta pelo show Opinião (1965), com a mesma Nara Leão, mais declamações de textos políticos (e a época controversos) pelos atores Paulo Autran Tereza Raquel e pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho.

Roberto Quartin com o Quarteto em Cy
Roberto Quartin com o Quarteto em Cy

Ainda em 1964, a Forma promoveu a estreia homônima das cantoras baianas do Quarteto em Cy, que também publicaria pela gravadora de Quartin e Gebara o álbum Som Definitivo (1966), com acompanhamento do Tamba Trio de Luiz Eça, também arranjador das dez faixas. Diferentemente do longevo Quarteto em Cy, três outros cantores lançados pela Forma, todos cariocas, tiveram vida curta como artistas de frente do palco: Chico Feitosa, compositor do clássico bossa-novista “Fim de Noite” (lançado em 1960 em gravações Alaíde Costa e de Sérgio Ricardo), com Chico Fim de Noite Apresenta Chico Feitosa (1965), a futura psicóloga Ana Margarida (21 anos), em Voz (1965), com arranjos de Luiz Eça, regência de Mario Tavares e participações erudito-populares do Quinteto Villa-Lobos e do Tamba Trio, e Dulce Nunes em Dulce (1965), com arranjos e regência do maestro petropolitano Guerra-Peixe.

Roberto Quartin e Ana Margarida
Quartin com Ana Margarida, que se mudou para os Estados Unidos no mesmo ano em que lançou “Voz” e morreu em Roma, em 2017, aos 73 anos

Então esposa do pianista Bené Nunes, Dulce imprimira seu nome na história da bossa nova participando do musical Pobre Menina Rica (1964), de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, e seguiria adiante na profissão de arquiteta, com a atuação musical restrita a cantar em diversos discos de Egberto Gismonti, seu marido durante os anos 1970. Segundo Renato Vieira narra no livro, Pobre Menina Rica deveria ter sido protagonizada por Elis Regina, então com 19 anos, mas o arranjador do projeto, Tom Jobim, impôs o nome de Dulce, completamente inexperiente como cantora. “O maestro fez sua vontade valer, mas não entregou os arranjos. O golpe havia sido sacramentado meses antes, e Jobim teria ficado com receio de se envolver em um projeto com músicas que tratavam de questões sociais logo depois da entrada dos militares no poder, sendo então substituído por Radamés Gnattali“, escreve Vieira. Dulce Nunes morreu aos 90 anos, em junho de 2020, de covid-19.

Dulce Nunes e Baden Powell
Dulce Nunes grava pela Forma em 1965, com Baden Powell ao violão

Seguindo característica de honra da Forma, de esmero máximo inclusive nas partes gráfica e técnica, o livro Tempo Feliz meruglha na documentação e recupera as fichas técnicas e todos os textos originalmente publicados nas contracapas dos LPs, assinados por Tom Jobim (no primeiro lançamento, de Eumir Deodato), Ronaldo Bôscoli, Glauber Rocha, Cacá DieguesMillôr FernandesManuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Arminda Villa-Lobos (viúva de Heitor Villa-Lobos), Sérgio Porto, Quartin e Gebara. Textos explicativos respectivos de Vieira detalham mais profundamente as histórias e circunstâncias, e só derrapam por repetir muitas informações já registradas nas reproduções dos textos de época. As críticas de época aos trabalhos da Forma na imprensa também são investigadas pelo autor.

Renato Vieira encerra a história quando Wadi Gebara entrega o catálogo da Forma para a Phillips, depois de lançar em dois volumes o espetáculo coletivo gravado ao vivo Vinicius: Poesia e Canção (1966), com o próprio Vinicius, Cyro Monteiro, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu LoboFrancis Hime e orquestra sinfônica.

A Forma seguiu como selo da Philips, lançando material de qualidade artística como a trilha tropicalista do filme Brasil Ano 2000 (1969), de Rogério Duprat, um álbum do conjunto de Roberto Menescal e as estreias em LP de Ivan Lins, do violonista paraense Sebastião Tapajós, do Trio Mocotó e do grupo de rock O Terço, além de compactos inaugurais de Gonzaguinha Cesar Costa Filho, ambos integrantes, com Ivan Lins, do Movimento Artístico Universitário (MAU).

Nenhum lançamento da Forma teve vendagem expressiva, o que faz da aventura fonográfica de Roberto Quartin e Wadi Gebara Netto uma história de fracasso, em termos comerciais. É como o chamado mercado compreendeu o projeto à época ou o compreenderia provavelmente em qualquer tempo. Pelo curto período que durou e pelas encrencas em que se meteu, no entanto, continua espantoso, 58 depois depois, que entre os pouco títulos da Forma houvesse dois trabalhos que redefiniram parâmetros e revolucionaram a música brasileira, as Coisas de Moacir Santos (que morreria em 2006, aos 90 anos, em Pasadena, nos Estados Unidos, onde se exilou a partir de 1967) e os Afro-Sambas de Baden e Vinicius.

Uma prova do arco de influência extenso das Coisas do maestro pernambucano Santos é o lançamento, agora mesmo, do álbum Moacir de Todos os Santos, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, de releituras afro-jazz-percussivas das “Coisas”, bancado por um selo independente dos anos 2010, Rocinante. Ex-diretor musical da axé music dos anos 1990 e dono de formação erudita na Áustria, o baiano Letieres não teve tempo de ver Moacir de Todos os Santos publicado: foi mais um artista que morreu de covid-19, no ano passado, aos 61 anos.

No monumental Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius, por fim, estão contidos alguns clássicos popularíssimos do cancioneiro nacional, entre eles “Canto de Ossanha“, o canto de Ossanha traidor, interpretado até na abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, por uma Elza Soares disposta a “homenagear” o golpista então recém-empossado na presidência Michel Temer. “Quero fazer um disco para vocês com essas músicas, sem cobrar nada”, disse Baden Powell a Wadi Gebara em 1965, segundo Renato Vieira ouviu de Gebara para a pesquisa histórica de Tempo Feliz.

Concebidos por um diplomata e poeta branco e um compositor e violonista mestiço (que no futuro maldiria o candomblé e se converteria à religião evangélica), os afro-sambas conseguiram o que a excelência do maestro negro Moacir Santos não tivera força política para conquistar um ano antes: a reafricanização da bossa nova carioca e, por consequência, de toda a música brasileira. Era essa a Forma.

(Leia mais aqui sobre Moacir de Todos os Santos, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, e sobre outros lançamentos musicais da semana.)

"Tempo Feliz - A História da Gravadora Forma" (2022), de Renato Vieira

Tempo Feliz – A História da Gravadora Forma. De Renato Vieira. Kuarup, 212 pág., R$ 57.

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